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Esta discussão da implementação da Atenção Primária à Saúde e da Estratégia Saúde da Família no contexto da Reforma Sanitária Brasileira está situada dentro do processo de construção do Sistema Único de Saúde (SUS). O SUS é o produto das aspirações ideológicas e de luta de um conjunto de atores sociais que militaram intensamente para que o Brasil

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possuísse um sistema de saúde não excludente (VASCONCELOS E PASHE, 2009)

O Relatório do VIII Conferência de Saúde (1986) é a expressão máxima da conjunção de esforços para que o Brasil desse um salto no amadurecimento sanitário e que o sistema de saúde fosse a abertura de uma nova proposta de sociedade mais justa e igualitária. Segundo Andrade (2007), o SUS nasceu especificamente nos artigos 196 a 200 da Constituição Federal de 1988. As Leis 8080/90 e 8142/90 delinearam o formato do sistema de saúde e consolidaram os entendimentos dos pilares e princípios de sustentação do SUS: universalidade, integralidade e equidade.

A respeito dos três princípios fundamentais cabem algumas reflexões relevantes. A primeira das reflexões consiste no caráter universal dado ao sistema por parte do conjunto da Reforma Sanitária Brasileira. Por universalidade se entende:

A universalidade, portanto, é um princípio finalístico, ou seja, é um ideal a ser alcançado, indicando, portanto, uma das características do sistema que se pretende construir e um caminho para sua construção. Para que o SUS venha a ser universal é preciso se desencadear um processo de universalização, isto é, um processo de extensão de cobertura dos serviços, de modo que venham, paulatinamente, a se tornar acessíveis a toda a população. Para isso, é preciso eliminar barreiras jurídicas, econômicas, culturais e sociais que se interpõem entre a população e os serviços. (TEIXEIRA, 2011. p 03).

A universalidade é a utopia cotidiana do SUS, pois expressa o projeto de sociedade que o sistema visa a construir. Quando o autor deste trabalho se refere a utopia, o faz pelo fato de que existe nobreza em se pensar em um sistema de saúde que atenda a todos sem qualquer discriminação em um país tão desigual quanto é o Brasil, existe projeto político de que esta sociedade um dia se paute pelo princípio republicano de que a Lei a todos iguala a começar pelo acesso a saúde.

Esta proposta utópica esbarra na contradição básica pelo fato de não haver sistema que sustente uma proposta universal sem o aporte necessário de recursos para a efetivação do cuidado a todos. Neste sentido, o SUS vem sofrendo decréscimos relevantes nos seus aportes de financiamento. Segue um demonstrativo desta difícil trajetória:

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Ano Governo Principais Fatos

1988 J. Sarney Criação do SUS – Constituição Federal 1990

Collor de Mello

Lei nº 8080 – Lei Orgânica da Saúde (LOS) (25 artigos vetados)

Lei nº 8142 – Critérios de Repasse dos Recursos e de participação da sociedade.

1991 Norma Operacional nº 01/1991 (NOB 01/91) –

Critérios para o repasse de recursos no SUS iguais aos do INAMPS

1992 Crise no financiamento (gasto federal per capita cai de U$$ 80 em 1988 para U$$ 44 em 1992), vários hospitais privados rompem seus convênios com o SUS. 1993/1994 Itamar Franco Extinção do INAMPS

Início da recuperação dos níveis de financiamento NOB 01/93 – estabelece os primeiros critérios de gestão e de repasses financeiros na direção das diretrizes constitucionais (NOB 01/93)

Crise na Previdência Social e fim do financiamento do SUS com base em recursos previdenciários

Início da instabilidade das fontes de financiamento 1995

Fernando Henrique Cardoso

O ministro Bresser Pereira (Administração) tenta introduzir medidas neoliberais no SUS

1996 NOB 96 – reação a Bresser – normas de financiamento

e organização mais próximas dos princípios constitucionais

2000 EC nº 29 – Determina Mínimos de Despesas da União,

nos estados e nos municípios com a saúde

Norma Operacional de assistência à Saúde nº 01/2000 (Noas 01/00) – Regras para a regionalização e hierarquização da rede

2003/2010 Lula Redução de 21% dos recursos para a saúde Fonte: Rodrigues e Santos 2011

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Existe outro princípio do qual não restou escrito nos textos legais (não está na Constituição e nem nas Leis Orgânicas do SUS). Trata-se da equidade. A equidade se configura como uma iniciativa de corrigir distorções no acesso ao sistema que, supostamente, seria para todos (universal). Por equidade se entende o seguinte:

O ponto de partida da noção de equidade é o reconhecimento da desigualdade entre as pessoas e os grupos sociais e o reconhecimento de que muitas dessas desigualdades são injustas e devem ser superadas. Em saúde, especificamente, as desigualdades sociais se apresentam como desigualdades diante do adoecer e do morrer, reconhecendo-se a possibilidade de redução dessas desigualdades, de modo a garantir condições de vida e saúde mais iguais para todos. (Idem, 2011. p 05).

A equidade é um princípio ético do sistema de saúde. Embora não esteja escrito no arcabouço legal, é uma das matrizes de estabelecimento de cuidado e de elaboração de estratégias de acesso que superem as desigualdades ao SUS, sobretudo para seguimentos historicamente marginalizados das políticas públicas, em especial a de saúde.

O último princípio e muito importante, trata-se da integralidade. Este, certamente, é a expressão dos anseios de todos os movimentos de Reforma no país (sanitária, psiquiátrica e social). A integralidade é um marco civilizatório da população em relação ao entendimento sobre qual é a função do estado de bem-estar social: prover todos os meios possíveis e necessários para que a saúde dos indivíduos seja plena.

A noção de integralidade diz respeito ao leque de ações possíveis para a promoção da saúde, prevenção de riscos e agravos e assistência a doentes, implicando a sistematização do conjunto de práticas que vem sendo desenvolvidas para o enfrentamento dos problemas e o atendimento das necessidades de saúde. (Ibidem, 2011. p 06).

Em última instância, a integralidade é o fio que faz a costura do tecido de saúde na construção de um sistema universal que se propõe a dar conta de problemas complexos da sociedade. A integralidade é uma espécie de imperativo ético e estrutural para que os sistema de saúde se efetivem enquanto sistemas atentos ao cuidado das populações.

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É pela via da integralidade que se pode pensar em articulação intersetorial, em articulação setorial e em uma visão ampliada e complexa a respeito dos processos de saúde- doença envolvendo indivíduos e coletividades. O desejo de integralidade esteve presente no conjunto de propostas de diversas Conferências Nacionais de Saúde, bem como tem sido pauta da agenda de lutas de diversos movimentos sociais que reivindicam um modelo de saúde atentos ao cuidado.

A integralidade é um conceito fundamental de articulação de um sistema de saúde coerente e robusto quando existe espaço para expansão de práticas de acesso aos serviços, assistência adequada e no tempo certo aos usuários. Contudo, eis aqui outra contradição do SUS: como efetivar a integralidade sem um modelo de gestão que permita a oferta integral de serviços e do cuidado em saúde?

Uma das maiores dificuldades para a garantia do atendimento integral das necessidades de saúde reside na má organização e gestão da rede de ações e serviços que ainda se verifica na grande maioria dos estados e municípios. (RODRIGUES e SANTOS, 2011. p 108).

Ou seja, embora a integralidade seja um conceito central para efetivação do SUS em sua plenitude, existe a necessidade de articular efetivamente outro conceito muito importante: as redes de saúde. Sem redes bem concebidas e administradas, a integralidade não se concretiza no cotidiano dos serviços. A respeito das redes, a subseção a frente trará alguns subsídios para reflexão.