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O Sistema Orçamentário de Financiamento e o grande debate na economia cubana

2 A TRANSIÇÃO SOCIALISTA CUBANA: DOS ANTECEDENTES DA REVOLUÇÃO À EXTINÇÃO DO BLOCO SOCIALISTA

2.3 A CONFIGURAÇÃO DE NOVAS RELAÇÕES DE PRODUÇÃO: O INÍCIO DA TRANSIÇÃO SOCIALISTA CUBANA E A CONSOLIDAÇÃO DA DITADURA DO

2.3.1 O Sistema Orçamentário de Financiamento e o grande debate na economia cubana

O Sistema Orçamentário de Financiamento surgiu da necessidade de administrar as indústrias nacionalizadas durante os primeiros anos da revolução, buscando superar alguns problemas sociais como o desemprego e substituir as relações de produção capitalistas por novas relações sociais de produção. Para Che Guevara (2004), o desenvolvimento desse sistema poderia fundamentalmente: elevar a eficácia da gestão econômica do estado socialista,

construir e aprofundar a consciência socialista da massa popular e aumentar a coesão do sistema socialista mundial.

Nesse sentido, o sistema em estudo partiu de um conjunto de ideias e medidas práticas implantadas pelo Ministério da Indústria nas unidades produtivas que ficaram sob sua responsabilidade. Assim, segundo Tablada Pérez (1987, p. 68, tradução nossa) “o sistema orçamentário de financiamento foi o modo em que se organizou e funcionou a economia estatal cubana no setor industrial em uma fase bem inicial da Revolução socialista”. Quer dizer, esse sistema foi um modelo de direção centralizada da economia cubana, estruturado por Che Guevara como um instrumento da planificação na transição socialista de Cuba. Nesse sistema de direção centralizada, a empresa, também chamada de empresa consolidada, era vista como um conglomerado de unidades produtivas industriais agrupadas por afinidades tecnológicas, geográficas e destino dos produtos. As empresas controladas a partir de órgãos centrais aos quais estavam vinculadas as suas respectivas direções administrativas e submetidas ao plano. Todo o faturamento da empresa era contabilizado dentro do orçamento nacional do Estado, e deste a empresa recebia fundos que usava para pagar os salários, realizar investimentos e pagar outros gastos conforme aprovado no plano. As empresas não possuíam fundos próprios e o dinheiro funcionava apenas como unidade de conta. O desempenho era avaliado a partir do cumprimento do plano em relação à quantidade e à qualidade da produção e da produtividade do trabalho. Também é importante ressaltar a utilização conjugada de estímulos materiais vinculados ao desempenho individual e coletivo dos trabalhadores com estímulos morais, estando os salários limitados às faixas correspondentes à qualificação exigida para cada ocupação. As normas de trabalho estavam diretamente relacionadas à construção da consciência socialista necessária ao estabelecimento da fase superior do comunismo, em que trabalho deveria perder seu caráter exclusivo de meio de sobrevivência física (CHE GUEVARA, 2004).

Aqui se destaca ainda a relação entre as empresas, onde as transações não se constituíam em compra e venda de mercadorias, mas em transferências de produtos de uma unidade para outra. Essas transações eram marcadas pela ausência de relações mercantis e o dinheiro funcionava apenas como unidade de conta. Segundo Carcanholo e Nakatani (2006, p. 14)

As transações entre elas (empresas) eram simples transferências entre as unidades, não eram mercadorias compradas e vendidas, pois não ocorria transferência de propriedade. Nessas transações o dinheiro era considerado apenas como unidade de

conta e os preços fixados segundo determinados critérios baseados nos custos de produção.

O preço dos produtos não era definido segundo as leis do mercado, mas obedeciam a critérios estabelecidos pelo ministério, que levava em consideração também a importância dos artigos produzidos para a satisfação das necessidades básicas da população.

Esse sistema funcionou em Cuba nas empresas comandadas pelo Ministério da Indústria, porém, ao mesmo tempo também funcionou na ilha o sistema chamado de Cálculo Econômico, ou autogestão financeira. Esse era o modelo de planificação utilizado na União Soviética e nos demais países do sistema socialista mundial, que foi implantado em Cuba para as unidades de produções agrícolas ligadas à Junta Central de Planificação (JUCEPLAN). Segundo análise de Che Guevara (2004), as principais diferenças entre os dois sistemas estavam na forma como as empresas eram organizadas, na utilização do dinheiro, nos critérios de avaliação de desempenho e na forma de organização do trabalho. Para o sistema Cálculo Econômico, cada unidade produtiva era uma empresa com personalidade jurídica própria e o dinheiro funcionava como meio de pagamento para compra de matérias-primas, pagamentos de salários, investimentos e demais despesas necessárias ao funcionamento da empresa, isto é, as empresas possuíam fundos próprios e poderiam recorrer aos bancos para a contratação de empréstimos, inclusive com o pagamento de juros. O desempenho das empresas era avaliado pela lucratividade alcançada e o pagamento de salários aos operários por hora ou produtividade. As empresas deveriam cumprir as metas estabelecidas nos planos, mas o relacionamento entre elas se dava no mercado através de compra e venda de produtos e serviços, e o preço dado pela oferta e demanda, ou melhor, conforme as leis do modo de produção capitalista. As empresas estavam submetidas ao controle financeiro de órgãos centrais.

O funcionamento desses dois sistemas em Cuba gerou debates intensos entre os intelectuais e políticos comunistas. E, ainda hoje, as questões não foram superadas entre os defensores dos diferentes sistemas. Ao resgatar esse debate Carcanholo e Nakatani (2006) falam das questões teóricas e práticas envolvidas nas discussões em relação aos dois modelos, ressaltando, porém, que a questão central do debate passa principalmente pelo entendimento que autores defensores dos dois modelos tinham em relação ao desenvolvimento das forças produtivas dentro de um processo de transição do modo de produção e sob a constituição de novas relações sociais.

Como questões de ordem teórica o debate girava em torno principalmente: do papel da lei do valor dentro do sistema de planificação, em que os defensores do Cálculo Econômico consideravam a lei do valor como necessária para regular a produção, e; a distribuição com base em critérios econômicos, entendendo que, dessa forma, seria possível garantir uma alocação ótima dos fatores de produção e impulsionar o desenvolvimento das forças produtivas. Por outro lado, ao defender o Sistema Orçamentário de Financiamento, Che Guevara aceitava que por um período a lei do valor continuaria atuando nas economias de transição socialista, mas estaria restrita ao setor da economia operado pela propriedade privada, em geral pequenos negócios e nas relações com o exterior. Com o desenvolvimento das novas relações de produção e da consciência socialista, a lei do valor deixaria de atuar em economias de transição como a cubana.

[...] o Che não desconhece a permanência da forma valor nas sociedades de transição, mas não concorda com sua vigência quando as transferências de produto são realizadas dentro da ‘grande empresa estatal’, uma vez que não ocorreria transferência de propriedade intermediada pela troca, pelo valor, pelo dinheiro. Além disso, o aprofundamento do caráter socialista da revolução implicaria no aprofundamento do grau de coletivização da propriedade e, portanto, na diminuição da abrangência das categorias mercantis-capitalistas (valor, mercadoria, dinheiro, etc.). (CARCANHOLO, M.; NAKATANI, P., 2006, p. 18).

Nas questões de ordem prática, o debate passa pela diferença no conceito de empresas entre os defensores dos dois sistemas, a divergência na formação dos preços em que no sistema Cálculo Econômico os preços eram estabelecidos pelas condições de oferta e demanda e no sistema defendido por Che Guevara era baseado nos custos de produção. Carcanholo e Nakatani (2006) acrescentam ainda o debate sobre o papel dos bancos nos dois sistemas. Dentro do Sistema Orçamentário Financeiro, o banco era simplesmente uma caixa contábil que registrava a movimentação de recursos, cumprindo o estabelecido no orçamento nacional, enquanto que no outro sistema, o banco mantém suas funções capitalistas de comercializar dinheiro a juros.

A questão dos estímulos materiais também é apresentada pelos autores como parte das divergências entre os sistemas, pois os defensores do Cálculo Econômico apresentavam a recompensa econômica monetária como a melhor forma de estimular os trabalhadores e aumentar a produtividade, e por outro lado, Che Guevara reconhecia a importância dos estímulos materiais, mas não os considerava fundamentais, defendia que os estímulos materiais deveriam ser combinados a estímulos morais criando uma consciência socialista, em que os primeiros iriam diminuindo conforme a transformação da sociedade e a construção de

um novo homem. Em relação ao crescimento da produtividade, para Che Guevara ela deveria ocorrer com a inserção de inovações tecnológicas no processo produtivo e com a elevação da qualificação dos trabalhadores.

A convivência desses dois modelos em Cuba perdurou até o início da década de 70, quando, diante de uma reflexão sobre a situação econômica do país, o governo decidiu adotar o Cálculo Econômico como modelo de planificação econômica. Segundo Pérez Villanueva (2010) essa escolha foi determinada pelo crescente intercâmbio comercial de Cuba com os demais países socialistas, condição que também levou o país a se tornar membro do CAME - Conselho de Ajuda Econômica Mútua - em 1972. Do ponto de vista da estratégia econômica adotada, a produção de açúcar continuou sendo a principal fonte de financiamento externo, com destaque para os preços vantajosos do açúcar alcançados no intercâmbio com os países do CAME. Assim, a produção e exportação do açúcar assumiu a posição de “locomotora” da economia cubana, não apenas pela renda gerada, mas pelo papel consolidado de indutora do desenvolvimento (PÉREZ VILLANUEVA, 2010).

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