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A segmentação dos mercados e as mudanças no consumo como consequência da dualidade monetária e das novas formas de propriedade

1989-1993 Shock externo

3.3 OS REFLEXOS ECONÔMICOS E SOCIAIS DO PERÍODO DE AJUSTE ECONÔMICO

3.3.3 A segmentação dos mercados e as mudanças no consumo como consequência da dualidade monetária e das novas formas de propriedade

Até o início da década de 90 o Estado foi o principal e quase exclusivo ofertante de bens e serviços para a população cubana, e a distribuição dos mesmos era realizada de forma universal, igualitária e em grande parte gratuita. Poucos foram os períodos e pequenos foram os espaços em que existiu outra forma de distribuição dos bens e serviços à população. Criado em 1962, o mercado “normado” ou “racionado” foi uma medida que buscava promover uma distribuição equitativa dos bens de consumo essenciais a todos os estratos sociais que constituíam a sociedade cubana de maneira a garantir a satisfação das necessidades básicas da população. Com a crise da década de 90, que provocou uma redução na oferta de bens e serviços, o mercado racionado tornou-se o principal mercado para acesso aos bens de consumo, sendo a alternativa a esse, o mercado ilegal que oferecia bens e serviços a preços elevados. Segundo Díaz Acosta (2010, p. 356), “no final de 1990 partindo da situação econômica vigente se insistia que a única forma de manter uma distribuição mais justa possível e, sobretudo, dos componentes da cesta básica era mediante o racionamento (libreta) [...]”.

Mas as medidas conjunturais empreendidas pelo governo para enfrentar a crise e reativar a economia inseriram alternativas para o acesso aos bens e serviços por parte da população. Na verdade, os mecanismos criados terminaram por alterar substancialmente a estrutura de distribuição dos bens e serviços, criando um ambiente complexo e singular para o acesso ao

consumo. A dualidade monetária e a constituição de espaços de consumo sob regulações diferentes promoveram a segmentação dos mercados, conforme exposto no Quadro 4.

QUADRO 4 – SEGMENTAÇÃO DE MERCADOS: MOEDA E REGULAÇÃO

Tipo de mercado Tipo de moeda Controle

estatal S etor da populaç ão

Mercado racionado CUP Total

Mercados agropecuários:

MINAGRI* CUP e Parcial

MINCIN** CUP/taxa de câmbio Parcial

EJT CUP Parcial

Mercado em divisas CUC Total

Mercado informal ou negro CUP e CUC Nenhum

S

etor e

mpre

sa

ria

l Empresas estatais Cubanas 100% (incluindo as

S.A) CUP e CUC Total

Empresas com capital estrangeiros CUC, euro, dólar

USA Parcial

Sucursais CUC, euro, dólar

USA Mínimo

Empresas cooperativas CUP e CUC Parcial

Setor (privado) conta própria CUP e CUC Parcial * Ministério da agricultura; ** Ministério do Comércio Interior;

Fonte: In: SÁNCHEZ-EGOZCUE e TRIANA CORDOVÍ, (2010, p. 111). Adaptação do autor.

O mercado “normado” ou racionado, totalmente controlado pelo Estado contava com a “libreta” de abastecimento, em que cada família tinha uma quota de alimentos da cesta básica que cobria 45-55% do consumo familiar mensal a preços subsidiados em pesos cubanos retirados na “botega”, sendo que pessoas com enfermidades, famílias com crianças e grávidas possuíam quotas especiais. Ainda existiam os mercados paralelos estatais de ofertada liberada, onde a população podia adquirir outros produtos a preços subsidiados para complementar o consumo e proporcionar a satisfação das necessidades básicas de roupas, calçados, alimentos, medicamentos, entre outros. Esses mercados eram a principal forma de acesso ao consumo de bens para a satisfação das necessidades básicas da maioria da população cubana, em especial dos trabalhadores do setor estatal.

A partir de 1994, para estimular o aumento da produção agrícola das UBPC, o governo autorizou novamente o funcionamento dos mercados agropecuários, onde os cooperados foram autorizados a vender o excedente da produção agrícola depois de cumpridas as obrigações com o setor estatal. Os mercados agropecuários, constituídos pelos mercados estatais, privados com preços topados, feiras agropecuárias e outros, eram parcialmente controlados pelo Estado, e as transações realizadas em pesos nacionais e pesos conversíveis.

Os preços dos produtos comercializados nesses mercados seguiam critérios de custos e equidade (SÁNCHEZ-EGOZCUE; TRIANA CORDOVÍ, 2010), mas possuíam como referência os preços dos produtos similares ofertados nas “Tiendas de Recuperación de Divisas”, por isso Nova González (2006) adverte que, em geral, os preços dos produtos ofertados nos mercados agropecuários eram elevados.

As “Tiendas de Recuperacion de Divisas - TRD” ofereciam produtos alimentícios não ofertados na libreta, artigos de higiene pessoal, utilidades para o lar, eletrodomésticos, entre outros, em pesos conversíveis. Os preços dos produtos ofertados nas TRD eram bastante elevados, pois sobre eles incidia um imposto que correspondia a no mínimo 200% sobre o preço dos produtos, tanto importados como nacionais. Com isso o governo conseguia captar as divisas em circulação e utilizá-las de forma a beneficiar toda a população, direcionando-as para suprir as necessidades de importação e financiamento dos gastos públicos (NOVA GONZÁLEZ, 2006).

Ainda no âmbito de acesso ao consumo por parte da população, existia a alternativa do mercado informal, chamado de mercado “negro”, onde eram ofertados produtos de procedência ilícita ou que estavam proibidos de serem comercializados. Sobre esse mercado, o governo não possui controle algum, tanto pesos nacionais como pesos conversíveis são utilizados na comercialização e os preços dos produtos são regulados pela oferta e demanda, sendo geralmente bem superiores aos dos produtos ofertados na libreta, mas inferiores aos preços dos produtos comercializados nas TRD (NOVA GONZÁLEZ, 2006).

A liberação para o exercício do trabalho por conta própria, em 1993, permitiu a constituição de um mercado onde trabalhadores poderiam oferecer alguns serviços como: reparos em geral, salão de cabeleireiro, carpintaria, táxi, costura e refeições rápidas. Esse mercado era parcialmente controlado pelo governo, as transações realizadas tanto em pesos nacionais como em pesos conversíveis e os preços eram regulados pela lei da oferta e da demanda. Ainda é possível identificar um mercado constituído por empresas associadas ao capital externo, que operam tanto na oferta de bens e serviços diretamente à população e aos turistas, como no mercado de bens intermediários, além das sucursais de empresas estrangeiras no país, como filiais da empresa de materiais esportivos Adidas.

Além de tornar o consumo de bens e serviços extremamente complexos, essa estrutura de segmentação de mercados criou disparidades no acesso da população aos bens e serviços e atingiu valores fundamentais da revolução como justiça social e equidade. Quando no início da Revolução foi estruturado um modelo econômico e social para a transição socialista em Cuba, buscava-se a construção de uma sociedade homogênea em que a diferenciação dos grupos sociais fosse dada pela qualificação educacional e que todos tivessem garantida a satisfação de suas necessidades básicas por meio da política de gratuidade e universalização dos serviços sociais e da distribuição “normada” de bens de consumo. Assim, o consumo foi dissociado de transações comerciais e de rendimentos monetários e durante a década de 80 Cuba tornou-se referência pela qualidade de vida alcançada. Díaz Acosta (2010, p.351) afirma que durante a década de 80 “a qualidade de vida alcançada pela sociedade cubana era vista como a ideal, que repudiava os desejos consumistas”, e proporcionou a reprodução de uma sociedade em que o consumo assumiu a dimensão de “consumo para ser” (NOGUERA, 2004), não sendo, portanto o centro da vida cotidiana da sociedade.

Porém, a diferenciação de rendimentos que permitiu a constituição de um grupo social de pessoas com renda elevada, associada ao surgimento dos mercados segmentados que ampliaram a oferta de bens e serviços, imprimiu contornos de pluralidade na capacidade de acesso ao consumo das famílias cubanas. Isso porque a maioria da população tinha seu consumo restrito aos bens e serviços ofertados no mercado racionado e paralelo de oferta liberada, cobrindo precariamente as necessidades mínimas de sobrevivência. Por outro lado, as famílias que auferiam renda elevada, além de terem garantida a satisfação de suas necessidades básicas no mercado racionado, podiam satisfazer seus desejos de consumo ao ter acesso a um conjunto de bens e serviços restritos ao restante da população devido aos preços elevados. É nesse sentido que Noguera (2004) fala que o consumo em Cuba começou a assumir contornos do “consumo para ter”, sendo esse mais um aspecto que reflete a diferenciação social que se constituiu no interior da transição socialista cubana como efeito do ajuste econômico.

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