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O Tempo da borracha

No documento Reinvenções daimistas: (páginas 139-145)

O Tempo da borracha

Antônio Luiz conseguia reunir em torno de si muitas pessoas, principalmente devido aos seus 12 casamentos, que não ocorreram todos de maneira simultânea. Ele teve esposas Iskunawa, Sharanaua, Katukina, Rurunawa, Shawanawa (Naveira, 1999). Entre as esposas, Angélica era a mais nova de um grupo de mulheres Shawanawa. As irmãs de Angélica se casaram com os filhos de Antônio Luiz. Quando este último morreu (na década de 1970), Angélica se juntou às irmãs e se tornou também esposa de Raimundo Luiz, primogênito de Antônio Luiz, que se tornou o cacique (e pajé) da seguinte geração. As esposas do chefe provenientes de outros povos não podiam falar sua língua e muito menos ensiná-la aos filhos e às filhas. Nesse sentido, os Yawanawá são o resultado dessas relações. Como outros povos do grupo linguístico Pano, os Yawanawá passaram pelo movimento de fusões-fissões-fissões descrito por Erikson (1993), sendo que a língua e o nome Yawanawá mantiveram a coesão do grupo. Na época de Antônio Luiz, ainda existiam guerras entre os Yawanawá e outros povos Pano. Em muitos casos, as guerras estavam associadas ao rapto de mulheres. Os conflitos envolviam acusações de morte por envenenamento e feitiçaria, que poderia ocorrer em encontros coletivos nos mariris (rituais de dança e beberagem de uni/ayahuasca). Entre as esposas de Antônio Luiz, algumas foram cativas de guerra ou teriam sido roubadas, como é o caso da esposa Katukina. As guerras geravam alianças e contra-alianças, e produziam a absorção hierárquica do outro e mudança de nome, introduzindo também uma alteridade interna (Naveira, 1999). Nesse tempo, as guerras e as festas chamadas mariris (os rituais de

121 dança, canto, o consumo das medicinas e as brincadeiras) eram produtoras de novas alianças, sendo os mariris momentos propícios para a realização de intercasamentos e, consequentemente, a produção de novas alianças com outros povos Pano. Nos mariris, havia também riscos de haver agressões xamânicas, com rezas e envenenamento, que poderiam provocar novos conflitos, vinganças e guerras. No tempo da borracha, apenas homens consumiam o uni (ayahuasca). Conta-se que a bebida era utilizada pelos guerreiros Yawanawá na noite anterior às investidas de guerra. Eles cantavam músicas que narravam a experiência da guerra, o roubo de mulheres jovens e a vitória na guerra. Assim como descreveu Naveira (1999), o uso do uni (ayahuasca) era uma forma de ter visões com a vitória antes da guerra, e de atingir de maneira xamânica os espíritos (yuxin) dos inimigos.

A Chefia de Raimundo Luiz Tui Kuru

A segunda fase do Tempo da Borracha é o período da chefia de Raimundo Luiz Tui Kuru, o chefe da segunda geração após o contato. Ele estudou durante três anos com padres católicos, na cidade de Einurepé. Nesse tempo, padres começaram a visitar a aldeia e faziam batizados. Para os Yawanawá, “tirar pecado do corpo” foi comparado a tirar uma doença ou espírito do corpo. Raimundo Luiz logo chegou à conclusão de que eles deveriam ter pouco poder, pois não curavam e não detectavam as mentiras na confissão (Naveira, 1999). Há muitas narrativas que afirmam que, durante o seu período de chefia, ele foi um grande cacique e pajé, tendo casado com três irmãs (Maria, Anália Saná e Angélica). Raimundo Luiz era uma pessoa eminente por possuir uma extensa rede familiar, três esposas, oito filhas e quatro filhos. Para os Yawanawá, apenas as pessoas eminentes conseguem reunir ao redor de si muitas pessoas para realizarem uma mesma atividade (Naveira, 1999). Na visão de Kenewmá Luíza55, neta de Raimundo Luiz, o casamento de Raimundo Luiz com as três irmãs e seus filhos e filhas resultaram no que é hoje o povo Yawanawá. Essa é uma visão muito característica à aldeia Mutum, onde vivem a maioria dos filhos e filhas de Raimundo Luiz, que se tornaram lideranças nessa aldeia. Os parentes mais próximos de Raimundo Luiz possuem mais prestígio e poder em

55 Filha da cacique Mariazinha de Jesus Neweni, da aldeia Mutum, e do cacique Biraci Nixiwaka, da aldeia Nova Esperança.

122 relação aos parentes mais distantes. Assim, há uma associação entre os gradientes de distância do parentesco e o poder e prestígio que a pessoa possui na aldeia.

Cacique Mariazinha relatou que, quando Raimundo Luiz era vivo, ele falou para cada um dos filhos e filhas o caminho que eles deveriam trilhar, e o lugar que eles deveriam ocupar na aldeia. Ele era considerado muito sábio e tinha a capacidade de profetizar. De acordo com a cacique, “Muito do que meu pai disse que ia acontecer, eu estou vendo acontecer hoje em dia”. Durante a chefia de Raimundo Luiz, a chegada da empresa Panacre no rio Gregório foi um acontecimento que mudou as relações entre os Yawanawá, os nawa e o seu modo de vida. Os donos da empresa compraram as terras que fazem parte do território Yawanawá. Nesse tempo, houve a fundação da aldeia seringal Kaxinawá e a intensificação do trabalho dos Yawanawá nos seringais. Assim, os Yawanawá começaram a trabalhar para os patrões da Panacre, em troca dos cobiçados produtos dos brancos, que eram vendidos no barracão. Esse período foi chamado de “o tempo do cativeiro” (Plano de Vida Yawanawá, 2014). Os Yawanawá terminaram por ficar dependentes de vários produtos dos nawa, como óleo, sal, entre outros objetos.

Os missionários protestantes da Novas Tribos do Brasil

No começo da década de 1970, Raimundo Luiz convidou os missionários da Novas Tribos do Brasil para morarem junto aos Yawanawá, no seringal Kaxinawá, época quando ainda trabalhavam para a empresa Panacre. De acordo com relatos da cacique Mariazinha, foi o líder Raimundo Luiz que convidou os missionários a subirem para o seringal Kaxinawá, porque ele queria que seus filhos estudassem, da mesma forma que os missionários ensinavam algumas crianças Katukina na aldeia Sete Estrelas. Os missionários ajudavam com remédios e montaram uma escola. Eles criaram um alfabeto Yawanawá, traduziram o Novo Testamento para a língua Yawanawá e também cantos cristãos. A história da presença dos missionários da Novas Tribos entre os Yawanawá é contada de maneira diferenciada por interlocutores da aldeia Nova Esperança e por interlocutores da aldeia Mutum. Os interlocutores da aldeia Mutum, sobretudo a cacique Mariazinha, enfatiza os aspectos positivos da presença dos missionários da Novas Tribos do Brasil na aldeia. Ela narra sobretudo como seu pai, Raimundo Luiz, era um grande amigo e seguidor dos missionários. Sendo que ele mesmo teria se tornado uma espécie de pajé-pastor, realizando cultos, com a leitura da bíblia na língua Yawanawá. Raimundo

123 Luiz participou ativamente das pregações dos missionários da Novas Tribos do Brasil. Ele se converteu, e sempre realizava comparações entre os mitos bíblicos e as históricas míticas ou histórias da tradição Yawanawá. O interlocutor Sales, filho primogênito Raimundo Luiz, contou que a cobra sucurijú é a jiboia, uma cobra muito poderosa e sábia. O espírito (yuxin) da sucurijú é o espírito dos antigos yube56, os super pajés, do tempo dos antigos. Segundo Sales, se uma pessoa encontra a sucurijú na mata, a pessoa precisa necessariamente fazer uma dieta (um período de resguardos e tabus sexuais e alimentares). Se a pessoa não faz a dieta, ela pode adoecer e morrer. De acordo com Sales, Raimundo Luiz, dizia que a cobra sucurijú é o mesmo que a maçã do jardim do Éden pois, através dela (e das dietas correspondentes), era possível adquirir todo o saber e conhecimento sobre o bem e sobre o mau.

Na visão de Naveira (1999), Raimundo Luiz conheceu três bíblias: a dos católicos, a dos protestantes da NTB e os ensinamentos da pajelança dos próprios Yawanawá. Ainda de acordo com esse autor, esses três conhecimentos mantiveram uma independência, mais do que se misturaram em uma unidade sincrética. Entretanto, a partir do que pude depreender da convivência com os Yawanawá no Rio de Janeiro e na aldeia Mutum, há ainda na atualidade uma espécie de sincretismo entre a ideia do deus criador cristão e a noção dos Yawanawá sobre os espíritos (yuxin). Nuke sheni (nosso Deus) foi descrito por Sales como o deus criador invisível que está entre todas as pessoas, como regulador das relações. Mas também existem os yuxin, que são os espíritos da floresta, das medicinas, das ervas, das árvores e dos animais. Os Yawanawá consideram que esses espíritos se comunicam com as pessoas nos rituais através do uso das medicinas.57 Em conversas que tive o pajé Yawá e o pajé Tatá, eles utilizaram a palavra Cristo, para se referirem a um espírito bom.

Raimundo Luiz aprendeu a batizar os Yawanawá e também ensinava a Bíblia na língua deles. Havia missionários estrangeiros e brasileiros. Na versão de Shaneihu, filho primogênito do cacique Biraci, da aldeia Nova Esperança, nessa época, os mariris deixaram de ser realizados devido às proibições dos missionários. Eles diziam que o uni era coisa do diabo, que não deveriam tomar. E os pajés ficaram sem realizar muitas das suas atividades. Ficaram arredios, isolados do restante da comunidade, de alguma forma

56 Sobre os super-pajés Yube (Pérez Gil, 1999).

124 proibidos de colocar em prática seus conhecimentos xamânicos. Entretanto, na versão da cacique Mariazinha, da aldeia Mutum, os missionários brasileiros não insistiam para que os Yawanawá deixassem de tomar o uni (ayahuasca) ou deixassem de fazer os mariris. De acordo com esse relato, a conversão de Raimundo Luiz e de seus parentes foi uma conversão em massa ao protestantismo, e os Yawanawá foram deixando de fazer os mariris e as rodas de uni naturalmente, porque já se dedicavam a ir aos cultos, às reuniões para escutar sobre a Bíblia. Segundo a cacique, em uma ocasião quando os missionários já viviam entre os Yawanawá, houve um mariri e um pastor brasileiro participou de algumas brincadeiras. Essas brincadeiras tinham e têm uma forte conotação sexual, sendo jogos entre homens e mulheres (da mesma geração – casáveis – geralmente primos). A presença do pastor agradou muito as jovens mulheres, que queriam participar da brincadeira com o mesmo.

Provavelmente, o que ocorria era a condenação que os pastores realizavam em relação aos aspectos guerreiros e agressivos da ação xamânica. Para ser pajé, na época de Raimundo Luiz, era necessário saber fazer rezas para deixar outra pessoa doente ou para matar. Cacique Mariazinha afirmou que uma pessoa só se tornava xinaya se conseguisse matar outra pessoa utilizando o seu poder. Para comprovar que aprendeu, deveria matar outra pessoa ao menos uma vez. Mariazinha contou que, no tempo da liderança de seu pai, o pajé era aquele que tinha o poder de curar alguma doença – tirar os espíritos que estavam no corpo da pessoa causando doenças – mas também tinham o poder de matar outras pessoas, agredindo o seu yuxin (espírito) por meio da intervenção de outros yuxin. Ainda de acordo com ela, seu pai, Raimundo Luiz, promoveu uma espécie de purificação do xamanismo Yawanawá, solicitando que os pajés e os estudantes do xamanismo não mais realizassem agressões xamânicas através de rezas ou envenenamentos58.

Em uma ocasião quando Raimundo Luiz ficou doente, os pajés o aconselharam a completar seus estudos para se tornar pajé. Mas duas de suas esposas evangélicas não

58 Mariazinha narrou que, nos mariris do passado, se viesse alguém de outra aldeia que o pajé não gostasse, ele poderia pegar algum qualquer rastro deixado por aquela pessoa (um pedaço de pano, de cabelo, resto das fezes ou urina, etc) e poderia colocá-los em um pote de barro e enterrá-lo aos pés de uma árvore chamada Samaúma. Mariazinha contou que a Samaúma é uma árvore sagrada, pois nela vivem muitos espíritos, entre eles, espíritos ancestrais. Há espíritos de antigos pajés vivem nessas árvores, e os xinaya podiam se comunicar com esses espíritos, aprender com eles e solicitar que realizassem ações em seu favor. Ao enterrar o pote aos pés da Samaúma, o xinaya estaria prendendo o yuxin da pessoa dentro daquele pote, e o pajé podia pedir aos espíritos que viviam na Samaúma para matarem aquela pessoa. O espírito da pessoa ficaria ali preso, e ela começaria a adoecer. Mas o xinaya também poderia mudar de ideia, e poderia desenterrar o pote, libertando o yuxin e fazendo com que a pessoa recuperasse a sua saúde.

125 queriam que ele continuasse a aprendizagem, devido ao medo de que ele poderia adoecer ou matar outra pessoa. Por fim, ele não concluiu o resguardo necessário. Assim, Raimundo Luiz era chefe e tinha muitos conhecimentos do xamanismo Yawanawá. Ele já havia comido o coração de uma jiboia (ashuicá), iniciara os estudos e a dieta, mas rompera com o resguardo dois meses antes de terminá-lo. Devido a isso, teria se tornado o que Naveira (1999) chamou de pajé sem poder. Ele tinha o conhecimento sobre as medicinas, sobre as ervas, sobre os mitos, e podia inclusive profetizar, mas ele não tinha o mesmo poder que os pajés yube. Esse cacique se transformou em uma espécie de pajé-pastor, pois ele fazia pregações, e simultaneamente tinha os conhecimentos de xinaya. Devido à sua atuação, as ideias cristãs começaram a se misturar com o universo mítico e cosmológico Yawanawá. Ele batizava as pessoas e também contava a Bíblia na língua Yawanawá. Raimundo Luiz era cristão protestante e propagava valores cristãos para seus filhos e filhas, que atualmente são as lideranças da aldeia Mutum. Mariazinha, a cacique da aldeia, afirmou que ganhou o nome Mariazinha de Jesus porque nasceu no dia do Natal, 25 de dezembro, data do nascimento de Jesus Cristo, filho de Deus, segundo as religiões cristãs. Alguns dos filhos de Raimundo Luiz continuaram seus estudos com os batistas também na cidade de Tarauacá, e foram muito influenciados por eles. O filho Tashka, por algum tempo, quis estudar para ser missionário, pois “pensava que o caminho para os Yawanawá era o conhecimento da palavra de Jesus”. Kenewmá Luiza, a filha da cacique Mariazinha, também teve estudos na cidade em uma igreja cristã. Para os filhos e filhas de Raimundo Luiz, da aldeia Mutum, as transformações mais recentes que ocorreram nessa aldeia são resultados dos ensinamentos e das ações desse líder político e espiritual. Já na aldeia Nova Esperança, há a visão de que as transformações depois dos missionários ocorreram devido às ações do atual cacique Biraci59.

Segundo Shaneihu, filho de Biraci, no começo da década de 1980, os missionários das Novas Tribos do Brasil estavam presentes na aldeia. Existiam aproximadamente 120 Yawanawás, e toda aldeia era protestante. Quase não se usava mais as medicinas (o uni e o rapé), porque muitos tinham ficado com medo de usá-las. Segundo Shaneihu, até hoje há na aldeia pessoas que são evangélicas, e a própria mãe dele é evangélica: “eles ficam andando de um lado para o outro com a bíblia”. Mas, da população total das 8 aldeias,

59 Ouvi relatos que afirmavam que o último foi o promotor da purificação do xamanismo Yawanawá, buscando deixar de lado práticas associadas à agressão xamânica. Provavelmente, ambos realizaram juntos esse processo, já que Biraci foi sucessor de Raimundo Luiz, e liderou juntamente com o cacique anterior durante alguns anos.

126 com uma população aproximada de 900 pessoas, ele acredita que aproximadamente 70% praticam as práticas xamânicas Yawanawá com o uso das medicinas, e apenas 30% seguem com a religião protestante. Em suas “jornadas ancestrais” nas cidades do Brasil, onde realiza shows, apresentações culturais e até rituais com uni (quando estava acompanhado do seu avô, o pajé Yawá), o artista Shaneihu sempre afirma que foi devido à presença dos missionários protestantes na aldeia que a espiritualidade Yawanawá foi abalada, pois deixaram de fazer os mariris, de usar as medicinas (principalmente uni e rapé60) e houve a perda do uso da língua no cotidiano. Sua visão está muito alinhada à visão de seu pai, o cacique Biraci, da aldeia Nova Esperança.

No documento Reinvenções daimistas: (páginas 139-145)