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O Tempo do “resgate da cultura” e dos projetos econômicos

No documento Reinvenções daimistas: (páginas 148-157)

O tempo atual da revitalização da cultura e das alianças com os brancos/nawa é considerado a realização plena da profecia de Mukaveine, contada no início do capítulo63. Trata-se da realização da profecia, que teria sido elaborada por um super pajé yube, depois de ter realizado a dieta do coração da jiboia, considerada altamente eficaz:

“Você está entendendo? Já existia uma profecia, e nosso grande mestre, aquele que viu o Ashuicá [jibóia], que matou, comeu o coração dela e fez a dieta recomendada se transformou numa espécie de profeta” (Entrevista com Sales64, 2016).

Desde a década de 1980, os Yawanawá assumiram um novo discurso sobre a cultura, em uma busca do retorno ao passado e ao tempo dos grandes pajés, com o apoio dos parceiros nawa, seus conhecimentos, objetos e tecnologia. Os Yawanawá começaram um processo de reinvenção de sua própria tradição associada à pajelança, com o apoio de antropólogos (como os antropólogos acreanos Terri e Moura) e outros agentes externos nawa. O tempo do chamado “resgate da cultura” é considerado um novo tempo, relacionado à produção e realização de vários tipos de projetos econômicos junto aos parceiros e aliados nawa. Desde a década de 1980, os Yawanawá procuraram projetos econômicos para substituir a seringa. Mas foi a partir de 1992, quando Biraci participou da Eco 92, que o cacique obteve o contato com a empresa de cosméticos estadunidense

62 Biraci é sobrinho de Raimundo Luiz, sendo este filho de Antônio Luiz. Este, por sua vez, era sobrinho (de criação) do chefe anterior (Naveira, 1999). Biraci assumiu depois de Raimundo Luiz ter tentado, sem sucesso, que seus filhos assumissem o comando do grupo. Há um período de transição, no qual o cacique antigo lidera juntamente ao jovem cacique, para que esse aprenda e ganhe a confiança de todos.

63 De acordo com interlocutores de três gerações da aldeia Mutum (o jovem Iraçú, a liderança Tashka o pajé Tatá), as alianças com os nawa na atualidade são a realização da profecia de Mukaveine.

64 Sales foi estudar na cidade juntamente com seu primo Biraci. Ele é considerado na aldeia como uma pessoa especial pois, quando ele era apenas um bebê, o seu pai o banhou com as folhas do muká (planta que produz uma batata) e fez uma reza xamânica para ele. Isso ocorreu porque Raimundo Luiz já havia perdido diversos filhos pequenos. Ele o banhou com as folhas e visualizou o menino já crescendo. Ele afirmava, utilizando o poder mágico das palavras: “como é grande esse menino, ele já cresceu, como ele é saudável, que bonito é esse menino”. Nessa prece, o pajé determina o que irá acontecer, afirmando que a coisa almejada já está acontecendo. E espera-se que, com o auxílio dos espíritos (yuxin) da medicina muká, o que foi afirmado terá sua eficácia. Assim, devido a esse banho com Muká, afirma-se que Sales possui conhecimentos que o destacam em relação aos demais.

130 AVEDA. Então, a Organização de Agricultores Extrativistas Yawanawá do Rio Gregório (OAEYRG), liderada pelo cacique Biraci, conseguiu realizar uma parceria com essa empresa, e começaram a vender urucum, e incorporaram no seu cotidiano ainda mais objetos dos brancos (Ribeiro, 2005; Vereta-Nahoum, 2013). Depois da Eco 92, o cacique Biraci havia conseguido dinheiro, mas ainda havia “o problema da cultura” pois, naquela época, ainda viviam como seringueiros.

O turismo xamânico e as reinvenções das tradições

Como parte do projeto cultural Yawanawá, o cacique Biraci e o antigo chefe Raimundo Luiz, juntamente a outras lideranças, buscaram retomar os mariris, as festas com os cantos, as danças, as brincadeiras, com a visitação de pessoas de outras localidades. Buscaram também retomar o uso do uni (ayahuasca), do rapé, e de outras medicinas, como sananga e kambô. Isso ocorria na segunda metade da década de 1980 e década de 1990, época quando a população Yawanawá se mudava da antiga aldeia seringal Kaxinawá, aberta no tempo da borracha, e foram para a aldeia Nova Esperança. Segundo Jaime Lima, indigenista da FUNAI de Cruzeiro do Sul, por mim entrevistado em 2 de agosto de 2016, desde a década de 1980 e 1990, Raimundo Luiz se juntou aos seus filhos, junto com as novas lideranças (Biraci e Tashka, principalmente), para “resgatar” a cultura. Começaram a realizar momentos para retirar as roupas e realizarem pinturas corporais coletivas, relembrando os kenes (desenhos) que eram feitos antigamente. Raimundo Luiz relembrou como se fazia uma arma de madeira tradicional e ensinou a seus filhos.65 Os Yawanawá lembraram dos desenhos corporais (kene) (e também começaram a reinventá-los). Começaram a relembrar os cantos (saites), as danças, as brincadeiras e as formas de se usar as medicinas (uni, rapé). Houve uma consulta junto aos mais velhos para saber como deveriam ser feitos os mariris. Nos primeiros festivais, os parentes voltaram a se unir naqueles cinco dias, voltando a realizar suas brincadeiras e rituais que uniam os parentes que estavam distantes e também pessoas

65 Segundo Jaime, nesse período, entre algumas mulheres jovens de povos Pano do Acre começaram a falar com vozes estranhas, começaram a se comportar de maneira muito anômala. Elas foram chamadas de “as endemoniadas”. Segundo suas falas, elas diziam que o povo tinha que “retomar o conhecimento dos antigos” porque, do contrário, todos iriam morrer, e o povo ia acabar. Segundo esse antropólogo Jaime, o evento foi compreendido pelo pajé Tatá como um aviso dos espíritos dos ancestrais, que diziam que eles precisavam retomar o conhecimento dos antepassados.

131 de outros povos indígenas Pano. Além da presença de pessoas Yawanawá, também participaram pessoas de outros povos Pano e alguns aliados e parceiros nawa/brancos.

Esse processo foi chamado de resgate cultural, e associa a memória sobre o passado a inovações nas práticas, produzindo novas formas tradicionais de ser Yawanawá, em meio a um processo chamado também de reinvenção cultural (Oliveira, 2012). Essa reinvenção ocorre com o auxílio das novidades trazidas pelos novos aliados(as) nawa. Há muitas inovações e reinvenções culturais que vêm ocorrendo com os Yawanawá desde a década de 1980. Os mariris voltaram a ser uma forma de propiciar momentos para os jovens primos e primas se conhecerem nas chamadas brincadeiras66, que possuem uma forte conotação sexual e como um momento propício para encontros de jovens casais.

Decorrente desse novo cenário, surgiram novos atores no festival realizado na aldeia Nova Esperança: brancos que participavam com os Yawanawá das brincadeiras e em suas cerimônias com o uni, rapé e as demais medicinas. No final da década de 1990, algumas mulheres já começavam a tomar o uni/ayahuasca, e os festivais começaram a ter essas diferenciações, em relação aos mariris de décadas atrás. Entretanto, foi a partir de 2002 que as lideranças dessa aldeia iniciaram uma nova modalidade econômica, chamada de Etnoturismo (o turismo xamânico), cobrando pela hospedagem, pela alimentação, e pela participação nos rituais com as medicinas. Ferreira Oliveira (2012) descreveu o festival nessa aldeia com atividades relacionadas ao uso das chamadas medicinas da floresta: o uni/ayahuasca, o sipá (planta usada para defumação, colocada em fogueiras), o rapé (ou rumã) e, eventualmente, também se pode aplicar a sananga (raio nos olhos)67 e o kambô (veneno do sapo).

Esses festivais já ocorriam desde 2002, mas os primeiros não tinham um público de nawas brasileiros e estrangeiros muito grande. Realizar os Festivais era uma forma de juntar novamente os parentes Yawanawá que estavam espalhados, reunir a família e festejar, além de reunir os aliados de outros povos Pano. Entretanto, a partir de 2002,

66 Como a brincadeira do Mamão, brincadeira da abelha, brincadeira do mamão, brincadeira do yuxin, etc.

67A sananga é um líquido que sai de uma planta e, quando aplicada nos olhos, produz uma forte ardência. Devido a isso, uma tradução dada por Shaneihu para a sananga é Raio nos olhos, devido ao efeito que produz. Essa medicina é utilizada tradicionalmente para tirar a preguiça das pessoas que não querem acordar cedo e não querem participar das atividades produtivas do grupo. Há um tipo de sananga mais forte e uma mais fraca, sendo a segunda aplicada em crianças.

132 outros personagens passaram a estar presentes: aliados de governos municipais e estaduais, pessoas ligadas a empresas (como a empresa Aveda, para quem vendiam urucum), além de parentes de outros povos Pano e eventualmente algum nawa interessado em conhecer a pajelança Yawanawá.

Na aldeia Nova Esperança, eles investiram dinheiro na construção de uma estrutura para receber os visitantes, e na compra de barcos, para poder buscar na Vila de São Vicente os turistas que vêm de todo Brasil e de várias partes do mundo. As pessoas nawa que visitam os Yawanawá durante os festivais e se hospedam na aldeia são consideradas por eles como turistas. Entretanto, nem todos esses visitantes dos festivais Yawanawá se consideram turistas. Muitos ayahuasqueiros viajam dentro de um contexto pessoal de busca espiritual no estilo Nova Era, e consideram essas viagens como uma viagem com um propósito espiritual, como um muçulmano que vai à Meca, um cristão que visita Jerusalém. Portanto, essa categoria turista não é aceita por todos os nawa/brancos que participam dos festivais. 68

De acordo com Sales, liderança da aldeia Mutum, os Yawanawá estão buscando uma forma de vida mais próxima ao passado, a forma “tradicional” do tempo dos antigos. Entretanto, buscam também a prosperidade econômica associada às novas tecnologias e às novas formas de comunicação digital, em diálogo e em meio a trocas com os nawa aliados. Nesse sentido, como observei na aldeia Mutum ao longo do mariri em julho de 2016, vários “gringos” nawa levavam entre seus presentes objetos de alta tecnologia, como um arco e flecha esportivo profissional, para que os Yawanawá possam voltar a caçar de maneira “tradicional” e, simultaneamente, de maneira eficiente; um conjunto de ferramentas para a produção de artesanato com sementes naturais e madeira. E, de acordo com o “gringo” nawa, o presente era para que “os Yawanawá pudessem “resgatar a tradição” de fazer colares com materiais naturais, e não com miçangas de plástico”. Outro elemento destacado é o interesse dos Yawanawá em relação à produção de filmes com altas tecnologias, tendo em vista a “divulgação de sua cultura” e do turismo xamânico. Ao longo do meu trabalho de campo, na aldeia Mutum, jovens fizeram gravações do mariri para produzir um filme com tecnologia de realidade virtual. De acordo com os

68 Entre os daimistas, a expressão turista espiritual é pejorativa, pois é relacionada às pessoas do universo Nova Era que passam por muitas igrejas ou centros espirituais e que não se fixam em nenhuma delas. Apesar de serem abertos a experimentalismos e a diálogos inter-religiosos e xamânicos, os adeptos do Santo Daime das igrejas expansionistas afirmam que ser “turista” não é bom para a própria pessoa, pois há o risco da ocorrência de surtos. Os fardados(as) que fazem trabalhos em muitas igrejas e não se fixam em nenhuma são chamados pejorativamente pela madrinha Nonata de “fardado pipoca” ou de turista.

133 estrangeiros do Santo Daime, o objetivo era o de “levar a experiência do mariri e da floresta amazônica a pessoas que não poderiam chegar até lá”. A utilização dessas tecnologias se relaciona à forma como os Yawanawá vêm se relacionando com os novos aliados nawa. No tempo do “resgate da cultura”, pode-se observar que os Yawanawá, tanto da aldeia Mutum, quanto da aldeia Nova Esperança, buscam realizar alianças econômicas com os nawa visando capturar novos agenciamentos, suas tecnologias modernas, reinventando as formas de capitanear recursos econômicos, através da pajelança e do turismo xamânico.

As mulheres Yawanawá e a dieta do muká

Como foi relatado por diversas mulheres, em 2006, Hushahu (filha de Raimundo Luiz) quis fazer a dieta do muká, mas o cacique Biraci e o pajé Yawá foram contrários a isso. Então ela pediu consentimento para o seu pai, que já morava com a maior parte dos seus filhos e filhas na aldeia Mutum (mas ambas as aldeias ainda eram política e economicamente ligadas). Raimundo Luiz possuía muitos conhecimentos de pajelança, e era apoiado pelo pajé Tatá (que deveria ter na época aproximadamente 90 anos). Ele então ensinou Hushahu ao longo de sua dieta do muká. Pelo que pude observar sobre a pajelança Yawanawá, a palavra possui muito poder (uma grande eficácia simbólica), principalmente quando se cantam determinadas canções e rezas sob o efeito das medicinas, sobretudo o uni (ayahuasca).69

Hushahu ficou pouco mais de ano sem tomar água, ingerindo como líquidos apenas uni/ayahuasca e outra bebida amarga, utilizada pelos Yawanawá para combater a malária. Ela permaneceu a maior parte do tempo reclusa na floresta, tomando essas medicinas. Fazia parte dos tabus não fazer sexo, não comer nenhum tipo de doce (nem frutas) e não beber água, já que ela é considerada doce. Depois que ela completou a dieta, os homens não reconheceram o seu poder xamânico, e disseram que, se ela quisesse ser

69 Há canções que são apenas para se alegrar, os saites, que são canções de festa. Esse tipo de canção foi comparado a mantras por Matsiní, filho mais novo de Raimundo Luiz, que assumiu a responsabilidade de liderar a Escola das Medicinas na aldeia Mutum, principalmente depois do falecimento do pajé Tatá, em dezembro de 2016. Também há canções consideradas mais poderosas, nas quais o cantador/pajé se comunica diretamente com espíritos que podem ensinar e atuar ao seu favor. Em alguns casos, o pajé se comunica com o espírito da jiboia, como é considerado o espírito do uni/ayahuasca.

134 xinaya, ela deveria realizar os resguardos e tabus novamente. Ela aceitou a condição e fez novamente a dieta do Muká, por mais um ano, em 2007. Disso resultou que Hushahu ganhou status entre homens e mulheres na Terra Indígena Rio Gregório e fora dela, como possuidora de conhecimentos da espiritualidade Yawanawá. E, nas cidades, ela é reconhecida como pajé. Sua irmã, Putani, esposa de Biraci, também quis passar pela iniciação, aproximadamente no mesmo período. Apesar de ter muitas pessoas contrárias, Putani foi à aldeia Mutum, e Raimundo Luiz, juntamente ao pajé Tatá, e às suas irmãs (Mariazinha e Júlia) acolheram Putani. Então, Raimundo Luiz também consentiu que ela fizesse a dieta do Muká, guiada pelo pajé Tatá. De igual maneira, quando ela terminou o primeiro ano da dieta, foi desafiada a fazer mais um ano do mesmo procedimento, que também foi repetido por ela. Dessa forma, tornou-se a segunda xinaya (aquele que se comunica com os espíritos) da Terra Indígena Rio Gregório. Essa narrativa sobre a participação das mulheres nas dietas é para dar uma pequena dimensão sobre as mudanças que estavam ocorrendo na aldeia Nova Esperança e na aldeia Mutum no começo dos anos 2000. Outras mulheres também começaram a tomar o uni em meio aos mariris, antes restrito aos homens. Depois de Hushahu e Putani realizarem a dieta, em 2011, Kenewmá Luiza, filha da cacique Mariazinha, realizou a iniciação xamânica dieta do Muká, completando um ano de resguardo. Em 2013, a cacique Mariazinha também realizou a dieta do Muká, completando a iniciação em 2014. Nesse sentido, atualmente há quatro mulheres Yawanawá que já fizeram a dieta do Muká, além de outras jovens estudantes da espiritualidade Yawanawá que, na aldeia Mutum, têm realizado as dietas do jenipapo (nanã), da caiçuma e da pimenta.

Os artefatos de miçanga

Outra inovação que ocorreu aproximadamente em 2006 possui um caráter econômico muito importante. Na Terra Indígena Rio Gregório, o trabalho é dividido de acordo com os gêneros. Entre as atividades masculinas, há os caçadores, que caçam com rifles e espingardas. Eles acordam aproximadamente às 4h da manhã para ir caçar. Afirmam que o melhor horário para caçar é bem cedinho, quando os animais estão acordando e procurando alimentos. As mulheres trabalham nos roçados, nos afazeres domésticos, e no cuidado com as crianças. Mais recentemente, surgiram outras profissões nas aldeias e nas cidades próximas, como enfermeiros(as), professores(as), artesãs,

135 trabalhadores da FUNAI, administradores de projetos. Há quem viva ou circule nas cidades Tarauacá e Rio Branco para estudar e trabalhar. Muitos vivem fora da aldeia e, quando visitam suas famílias, também levam mercadorias e recursos econômicos, de acordo com as obrigações parentais.

De acordo com Giraldina, em 2006, sua filha (neta de Raimundo Luiz) se casou com um rapaz Ashaninka, e com eles aprendeu a fazer pulseiras com miçangas. Ela aprendeu a fazer as pulseiras e colares, e ensinou isso a outras mulheres Yawanawá. Com o tempo, mulheres como Hushahu, Júlia, entre outras, aprenderam a fazer essas pulseiras com miçangas coloridas com os kenes (desenhos). As mulheres que tomavam uni passaram a ter também experiências visionárias, que as permitiram inovar na produção de novos kenes, que, segundo elas, vêm do mundo dos espíritos e possuem agência. Nesse sentido, surgiu uma nova atividade econômica para as mulheres, que possibilitou a elas adquirirem mais status e poder nas aldeias e também nas cidades. Essa atividade tinha a função social de produzir corpos através da estética dos desenhos e cores dos colares, pulseiras e outros artefatos (Lagrou, 2013).70 Como será visto mais adiante, a produção de corpos dos ayahuasqueiros urbanos por meio do uso (e consumo) dos artefatos indígenas de miçanga e do consumo das medicinas da floresta vem produzindo novos corpos e sujeitos aliados, em meio à rede ayahuasqueira. No universo ameríndio, a produção da pessoa está relacionada à produção e transformação corporal (Seeger, Da Mata e Viveiros de Castro, 1979) por meio do compartilhamento de substâncias corporais, alimentos, antialimentos (entre elas, incluo aqui as medicinas da floresta) e a produção estética. Nesse sentido, Lagrou (2013) enfatizou no universo ameríndio a sobreposição dos discursos que relacionam a produção de artefatos e dos corpos:

“(...) como no caso da pintura corporal, no caso da decoração do

corpo com miçanga, dentes e sementes, temos o mesmo en-trelaçamento do artefato com o corpo, entre a fabricação interior de um corpo vivo e pensante e sua decoração exterior. Crescente evidência etnográfica está dando força a esta ideia. Assim Van

Velthem (2003) mostra como as mesmas técnicas que fazem o artefato fazem o corpo humano, e Overing (1991) mostra a estreita relação entre os colares invisíveis no interior do corpo e os colares de mulheres com muitos filhos e poderosos xamãs” (Lagrou, 2013, p. 41).

70 Para tratar especificamente sobre as formas dos kenes inscritas nas pulseiras e colares, ver Reis (2013). Entre essas formas, as mais presentes são as de jiboia, mas Hushahu inovou com a introdução do kene de borboleta em meio aos artefatos Yawanawá.

136 Atualmente, Júlia Yawanawá acredita que o desenho mais poderoso é um que possui no mesmo colar a jiboia e a borboleta. Os desenhos passaram a ser entendidos como sagrados, contendo em si um poder espiritual de proteção. Muitos aliados do contexto da rede ayahuasqueira se tornaram consumidores desses artefatos de miçanga, que são objetos estéticos com forças agentivas produtoras de corpos (e pessoas) e, simultaneamente, mercadorias inseridas na rede ayahuasqueira e Nova Era. O caráter sagrado dos desenhos agrega valor a essa arte, nesse contexto. Com o desenvolvimento da técnica de transpor as visões das rodas de uni para as pulseiras e colares, os artefatos passaram a se diferenciar, em meio a competições cotidianas e brincadeiras entre as mulheres Yawanawá (como afirmou a liderança Júlia Yawanawá), que levam ao aprimoramento da técnica. Interessante notar que os indígenas Huicholes, do México, que ingerem o cacto peyote71 como medicina, utilizam efeitos de cores semelhantes em suas pulseiras e colares. E também os vendem aos não indígenas que compõem a rede xamânica e Nova Era daquele país.

Shaneihu afirmou que a produção desses colares e pulseiras é recente, aproximadamente de 2008/2009. De acordo com Júlia Yawanawá, que é uma liderança atual da venda de colares e pulseiras na aldeia Mutum, inicialmente os homens foram contrários a essa produção de produtos com miçangas, pois diziam que era melhor as mulheres trabalharem nos roçados. Mas, com o tempo, as mulheres começaram a vender as pulseiras para os nawa, principalmente nos festivais na aldeia Nova Esperança, e vários homens passaram a reconhecer o benefício desse trabalho, devido à lucratividade econômica. As mulheres conseguiam dinheiro para comprar bens industrializados, como alimentos, panelas, facas, terçados e inclusive barcos a motor e gasolina. Devido a isso, alguns homens adentraram na atividade feminina e aprenderam a produzir artefatos para o uso próprio e para a venda. E, como indicam alguns relatos, ocorreram mudanças nas relações de gênero (Scott, 1990) entre maridos e esposas nas aldeias, pois as mulheres adquiriram poder de compra. Com a venda dos colares e miçangas, os Yawanawá passaram a enfatizar a venda de objetos relacionado à tradição (reinventada) e à espiritualidade.

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Uma realidade mítica e profética: o profetismo Yawanawá

Para descrever o estado atual da história Yawanawá, o interlocutor Sales fez a seguinte metáfora. O povo Yawanawá segue dentro de um transatlântico da imaginação, na caminhada da vida, que no futuro vai aportar na própria aldeia Yawanawá:

“Nós queremos chegar, encostar, aportar, ancorar num porto, no nosso porto no porto da aldeia Yawanawá. Ou seja, nós estamos viajando na imaginação. Saindo de uma

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