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O Tempo dos antigos

No documento Reinvenções daimistas: (páginas 134-139)

O Tempo dos antigos

Este tempo marca o tempo antes do contato com os brancos. Seria uma espécie de tempo original e imemorial, desde o início da formação do Brasil até o final do século XIX, quando houve o contato com os brancos. Esse período foi identificado como vida tradicional no território original (Plano de Vida Yawanawá, 2014). Associado a esse período, os interlocutores contam histórias de grandes pajés de grande sabedoria e poder, como não existem mais na atualidade. O interlocutor Sales (filho mais velho de Raimundo Luiz) afirmou que, no tempo dos antigos, havia pajés muito poderosos chamados de yuve, que podiam curar e também matar. Segundo Sales, esses super pajés dominavam o uni (ayahuasca), as outras medicinas e as ervas curativas. Geralmente, o yuve era quem conseguia fazer uma forte dieta de um ano, tendo comido o coração da jiboia e conseguido manter os resguardos (a dieta) exigida (Pérez Gil, 1999). Segundo o interlocutor, esses

116 pajés podiam determinar o que iria acontecer, sendo considerados como profetas.52 Fala-se, portanto, que os pajés do tempo dos antigos eram muito mais poderosos do que os pajés da atualidade. Os pajés Tatá e o pajé Yawá são considerados grandes xinaya, aqueles que têm conhecimento e se comunicam com os espíritos (yuxin). Entretanto, em meio às narrativas contadas por interlocutores Yawanwá, esses não possuíam tanto poder quanto os antigos pajés yuve. Os interlocutores Yawanawá da aldeia Mutum de certa forma idealizam esse passado do tempo dos antigos como momento de auge da cultura Yawanawá. Cultura, neste caso, está associada ao xamanismo. Considerava-se a eficácia simbólica dos conhecimentos dos xamãs do passado superior à dos pajés e dos estudantes da espiritualidade Yawanawá no presente. Nesse sentido, no tempo presente, busca-se retomar os conhecimentos desse passado. Essa relação com o tempo dos antigos também ocorre devido a uma espécie de culto aos antepassados. Os espíritos (yuxin) dos grandes pajés do passado podem se apresentar como grandes cobras, seres considerados de grande sabedoria e capacidade de ensinar aqueles que querem aprender e seguir os resguardos (as dietas).

No contexto de interação entre os aliados do Santo Daime e os jovens Yawanawá que visitam as cidades, o que é exaltado sobre os discursos em relação ao passado Yawanawá é a grandiosidade dos antigos pajés, o seu conhecimento ancestral e tradicional. A idealização do passado indígena também é uma concepção partilhada por boa parte dos daimistas e demais aliados nawa que participam dos rituais dos Yawanawá, seja no contexto urbano ou na Terra Indígena.53 Como afirma o líder Paulo Roberto, da igreja Céu do Mar, “o conhecimento Yawanawá é como uma tocha que é transmitida entre as gerações, e se mantêm acesa, desde tempos imemoriais”. Nesse sentido, há uma ideia de tradição imemorial relacionada aos usos da ayahuasca indígena, de forma idealizada e sem mencionar as mudanças nas formas de uso dessa bebida.

52Os chefes Yawanawá (os caciques e lideranças) também possuem conhecimentos de pajelança. Assim, os grandes chefes, de acordo com interlocutores da aldeia Mutum, são considerados aqueles que têm a capacidade de prever o futuro e de fazer cumpri-lo. Como afirma Júlia Yawanawá, “a característica de um grande líder é sonhar e ter a capacidade de realizar seus sonhos”.

53 Entre os adeptos do Santo Daime, os indígenas (em geral) e particularmente os Yawanawá são considerados mais “puros”, mais autênticos e mais tradicionais. Mais recentemente, o seu xamanismo passou a considerado por parte dos daimistas urbanos do sudeste e sul do Brasil como parte da “raiz” ou origem da própria religião Santo Daime. Assim, muitos adeptos dessa religião afirmam que “eles estão muito melhores que nós”. Entretanto, não são todos os adeptos do Santo Daime que se interessam pelos “rituais dos índios”, preferindo a sua própria “tradição”.

117 O período do final do século XIX e primeira metade do século XX foi um período marcado pelas guerras intertribais entre os povos Pano na região do Acre. Esse processo de guerras intertribais constituía a forma como a sociedade Yawanawá se reproduzia, por meio de casamentos com mulheres de outros povos, sendo que, como já dito, a maioria das guerras envolvia o rapto de mulheres e guerras de vingança, podendo estar associada também a agressões xamânicas, por meio de rezas e envenenamentos. Com a chegada dos seringueiros nawa nas cabeceiras do Rio Gregório, no final do século XIX, primeiramente os Yawanawá evitaram o contato, mantendo-se arredios. O momento quando os primeiros Yawanawá decidiram não mais fugir para a cabeceira dos rios e decidiram fazer escambo com os nawa, data da virada do século XIX para o século XX (Naveira, 1999).

O contato com os brancos

Segundo Sales Yawanawá, o contato com os brancos foi o início da realização da profecia de Mukaveine, o mito narrado no começo do capítulo. Segundo ele, o seu avô Antônio Luiz foi o primeiro a fazer contato com os brancos/nawa e a deixar uma mensagem de que os Yawanawá deveriam viver em paz com eles, ter amizade e ter relações de trocas (de mulheres, de objetos) e reciprocidade.

“[O contato com os brancos] foi para nós o cumprimento da profecia da existência do homem branco. Porque, no começo, nós não sabíamos o que era homem branco. O que que é nawa? Nós não sabíamos. Aí veio a descoberta do Brasil.... Pedro Álvares Cabral, e estamos aqui” (Entrevista com Sales, julho de 2016).

O mito de Mukaveine vem sendo contado por interlocutores de diversas gerações como o mito que explica o contato entre os Yawanawá e os brancos, e que explica também as relações atuais de alianças com os ayahuasqueiros das cidades. Se o mito de origem dos povos é um mito sobre a guerra, o mito que justifica o contato com os brancos e as relações atuais é um mito sobre paz. Nesse sentido, a ação social se converteu em uma metáfora histórica da realidade mítica, como propôs Sahlins (1981). Em outras palavras, através do contato com os brancos, os Yawanawá estavam vivendo o mito, a chamada história da tradição. Tratava-se da realização de uma profecia, anunciada no mito, por um super-pajé (yube) do passado. Na versão de Shaneihu (filho primogênito do cacique Biraci) sobre o contato, Antônio Luiz percebeu que eles não conseguiriam mais manter distância dos brancos, e também não conseguiriam vencer uma guerra contra eles. Então,

118 ele começou a colocar carnes de veado e carnes de caça em locais onde estavam os seringueiros brancos. Esses, por sua vez, começaram a deixar no lugar ferramentas e, com essas relações de troca, iniciaram os primeiros contatos:

“(...) eles começaram a parar de fugir do combate, porque ele viu que só a flecha não era suficiente para competir com as armas pesadas. Eles começaram a levar animais, veados, porcos e deixavam lá no porto. E os seringueiros pegavam e aí deixava em troca um espelho, uma faca. E assim, até que chegou o dia de se encontrar pessoalmente, e aí estabeleceram essa confiança de relação” (Entrevista com Shaneihu, 2015).

Antônio Luiz foi o primeiro a fazer contato com os brancos.Ele e um primo eram meninos, quando se aventuraram a ir ao barracão dos brancos seringalistas. Nessa aproximação, os meninos levaram um veado, e os brancos levaram farinha. Diz-se que ele assumiu a chefatura dos índios no trabalho da seringa durante décadas. Os mais velhos se opuseram, mas ele se tornou um grande chefe, devido às suas relações com os nawa. Ele se tornou cacique e pajé. Faleceu com 116 anos, ainda em bom estado de saúde (Naveira, 1999). No caso do contato dos Yawanawá, não foram os brancos que pacificaram e entraram em contato com os indígenas deixando objetos, como era a prática da agência indigenista Serviço de Proteção ao Índio (SPI), como ocorreu com muitos povos indígenas no Brasil.54 O SPI não realizava trabalhos de pacificação naquela região do Acre, e o contato com os brancos foi diretamente entre os indígenas e os seringueiros. Na versão de Putani (esposa do cacique Biraci), a história do contato é a história dos parentes antigos:

“O primeiro homem que fez o contato foi o meu avô, Antônio Luiz. O patrão [seringalista] deu para ele esse nome. Ele se tornou um grande pajé. Ele era cunhado do Yawá. Aí é de onde nasce a história do Yawá, do Tatá, do meu pai (Raimundo Luiz), e chega-se até a nossa geração”. (Entrevista com Putani, de 2012, realizada por Amanda Sul e Thiago).

Na época de Antônio Luiz, os Yawanawá e os seringueiros (predominantemente cariocas) começaram a viver de maneira próxima, e muitos até se tornaram amigos. No final do século XIX, os Yawanawá também tiveram uma aproximação com os peruanos, mas eles foram muito violentos, com quem travaram guerras. Os Yawanawá conseguiram

54 O Serviço de Proteção ao Índio deixava ferramentas e presentes aos indígenas arredios, na fase chamada de “namoro” do contato com os índios (Lima, 1992; Platero, 2012). Um detalhe interessante é que o Mestre Raimundo Irineu Serra, fundador da religião do Santo Daime, trabalhou para o Serviço de Proteção aos Índios, no período da demarcação do estado do Acre e de sua divisão com a Bolívia (Moreira e Mac Rae, 2011).

119 espantá-los com a ajuda de brasileiros e com táticas de guerra, vestindo roupas de peruanos mortos, por exemplo (Naveira, 1999). Os Yawanawá queriam armas de fogo, e trocavam com os brancos por caça. Como afirmou a liderança Sales, a vontade dos Yawanawá de se relacionar com os brancos vem da busca de realizar trocas para adquirir seus objetos, e também mulheres:

“Daí a nossa paixão de se aproximar do homem branco, para poder usufruir dos materiais deles, a faca, a peixeira, o terçado. Para facilitar nossa vida. Em troca nós dávamos a caça, o trabalho. Tudo previsto pelo Mukaveine, aquele que previu que haveria um tempo mais moderno, mais distante, quando os Yawanawá iam se deparar com homem branco, que iriam encher a terra. E, para nós, seria mais fácil fazer amizade do que se opor. Política de boa vizinhança, entrosamento e até fazer casamento. Ele dizia: eles têm belas mulheres, as mulheres são lindíssimas. Chama-se shahu, é uma mulher do outro povo” (Entrevista com Sales, julho de 2016).

Durante os antigos mariris que eram realizados na época do contato, se alguma pessoa chegasse de outra aldeia com um chapéu ou uma faca, por exemplo, a festa toda parava para que as pessoas observassem aquele objeto. Além disso, a facilidade dos Yawanawá em realizarem intercasamentos com outros povos e inclusive com os brancos/nawa, fez com que atualmente eles afirmem que são um povo todo misturado. Entre os Yawanawá, há muitos que são filhos de índios e brancos e isso não é um problema para eles, pois eles afirmam que “somos todos misturados”. Só uns poucos são Yawanawá por parte de pai e de mãe, mas a língua e o nome se impôs a todos (Naveira, 1999).

Ainda na época de Antônio Luiz, os patrões da borracha ocuparam o território das margens do rio Gregório, e os Yawanawá trabalhavam para conseguir os objetos e medicamentos trazidos pelos brancos. Inicialmente, eles viveram juntos com os seringueiros cariocas, estabelecendo com eles, no geral, boas relações. Yawá (pajé da aldeia Nova Esperança) era tratado como capitão pelos patrões seringalistas. Ele era homem de confiança dos patrões no trabalho na seringa, e levava para eles comida, dinheiro e mulheres. A maioria dos seringueiros eram vindos do Rio de Janeiro, e tinham em seus sobrenomes a palavra Carioca. Vários Yawanawá começaram a ganhar nomes de seus patrões:

“(...) por isso nós temos uma influência muito grande do povo branco, especialmente o carioca, porque foi quem tomou aquela região lá do Gregório. Então o rio todo era

120 dos cariocas. E, inclusive, os nomes que pegam entre os Yawanawá são como o nome do meu avô, Manoel Vicente Brandão Carioca, ‘não sei o que’ Carioca. Então, a maioria foi pegando o nome Carioca, e Luís” (relato de Shaneihu Yawanawá, 2015).

Como afirmou o pajé Tatá, houve muitos conflitos entre os brancos pela disputa da região da cabeceira do rio Gregório. Por fim, quem conseguiu ficar no território foi um grupo de seringueiros vindos do Rio de Janeiro. As relações entre esses seringueiros e os índios foi parcialmente amistosa. Com os peruanos, os Yawanawás tiveram verdadeiras guerras. Mas com os cariocas, os conflitos estavam associados a festas e bebidas alcoólicas, pois muitos índios participavam dos forrós, que existiam ainda no final da década de 1990 (Naveira, 1999).

No documento Reinvenções daimistas: (páginas 134-139)