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II. A interpretação da identificação desafiada 1 A distinção ato/objeto em Berkeley

2. Objeções e respostas à interpretação proposta

A atribuição da distinção ato/objeto a Berkeley aqui defendida poderia, contudo, ser colocada em xeque mediante a observação de que as passagens há pouco citadas a favor de sua elaboração – as que introduzem o conhecimento nocional – só passaram a fazer parte do texto dos Principles a partir de 1734, ano de publicação da segunda edição dessa obra e também da terceira edição dos Dialogues. Alguns intérpretes, inclusive, viram nesses acréscimos às edições posteriores dos Principles e dos Dialogues um mero recurso ad hoc utilizado por Berkeley para dar conta de algumas dificuldades decorrentes de seus princípios filosóficos50. Faz-se necessário, portanto, mostrar agora que esses adendos às reimpressões dos Principles e dos Dialogues, apesar de introduzirem o termo “noção” como parte do vocabulário técnico de Berkeley, não introduzem uma nova teoria, isto é, não se limitam apenas a dizer que é possível falar de maneira significativa acerca de outras coisas que não as idéias.

Em primeiro lugar, é interessante notar que se é verdade que o termo noção, em seu sentido técnico51, só veio a aparecer publicamente a partir de 1734, não é menos verdade que no manuscrito do texto dos Principles ele ocorre pelo menos uma vez nesse mesmo

50 Em FURLONG, E. J. “Berkeley on relations, spirits and notions” in CREERY, Walter E. (ed.) Berkeley:

critical assessments (vol. III). London: Routledge & Kegan Paul, 1991, p. 370, podemos encontrar a citação

do seguinte comentário por parte de um certo “professor Blanchard”: “In the first edition of the Principles [Berkeley] did not recognise [notional] knowledge at all. It made its embarrassed appearance only in the second edition. The appearance is embarrassed because in the meantime Berkeley had come to see that with his earlier simple empiricism he had no right even to speak of God, of whose existence the whole treatise was supposed to be a proof. But clearly the [God] was not meaningless; we plainly have thoughts that do not derive from the senses; we must have ‘notional’ knowledge.”

51 Mais adiante veremos que nas primeiras edições dos Principles e dos Dialogues o termo “noção” ocorre

sentido, em uma passagem onde o que está em questão é justamente o conhecimento das mentes. A passagem publicada na primeira edição é a seguinte:

“De fato, em um sentido amplo, podemos dizer que temos uma idéia do espírito.” (P 140)52

Na segunda edição, Berkeley acrescentou a essa frase a expressão “ou melhor, uma

noção53, intercalando-a entre as palavras “idéia” e “do espírito”. No manuscrito dos

Principles, por sua vez, Berkeley havia escrito que “pode-se dizer que temos uma idéia ou noção do espírito” (itálicos meus)54. O termo noção, contudo, foi riscado no texto

manuscrito e ficou de fora da primeira edição dos Principles55. Certamente, isso não prova que a teoria das noções já estivesse elaborada antes de 1710, mas sugere que Berkeley já estava pensando na possibilidade de conhecimento dos seres ativos e reconhecendo que este não poderia ser obtido da mesma maneira que o conhecimento das coisas sensíveis.

Muito mais importante que essa curiosidade acerca do processo de redação dos

Principles é o fato de que, já em 1710, Berkeley não emprega o termo “idéias” em conexão

com o conhecimento que temos, por exemplo, das operações da mente – conhecimento nocional, de acordo com os acréscimos de 1734. Como evidência desse ponto, examinemos o parágrafo de abertura dos Principles.

“É evidente a quem investiga o objeto do conhecimento humano haver idéias atualmente impressas nos sentidos, ou percebidas considerando as paixões e operações do espírito, ou finalmente formadas com auxílio da memória e da imaginação, compondo, dividindo ou simplesmente representando as originariamente apreendidas pelo modo acima referido.” (P 1)56

Uma maneira bastante natural de se interpretar essa passagem seria dizer que nela Berkeley está afirmando que os únicos objetos do conhecimento humano são as idéias, e que estas poderiam ser subdivididas em três grupos distintos: (1) as idéias atualmente

52 “In a large sense indeed, we may be said to have an idea of spirit.” 53 “(...) or rather a notion.”

54 “(...)we may be said to have an idea or notion of spirit.”

55 Essa informação encontra-se no vol. II, p. 105, da edição de Luce e Jessop.

56 “It is evident to any one who takes a survey of the objects of human knowledge, that they are either ideas

actually imprinted on the senses; or else such as are perceived by attending to the passions and operations of the mind; or lastly, ideas formed by help of memory and imagination - either compounding, dividing, or barely representing those originally perceived in the aforesaid ways.” A tradução dessa passagem foi extraída da edição da coleção “Os Pensadores”, BERKELEY, George. Tratado sobre os princípios do conhecimento

impressas nos sentidos, (2) as idéias formadas a partir da observação das operações da mente, (3) as idéias formadas pela memória ou pela imaginação. Assim, um objetor da interpretação aqui proposta se sentiria bem a vontade para perguntar: como Berkeley poderia afirmar que temos noções das operações da mente se aqui essas operações são classificadas como um tipo de idéias que constitui os objetos que podem ser conhecidos pela mente humana? Porém, numa leitura mais cuidadosa e atenta, talvez não assumíssemos tão prontamente essa interpretação aparentemente tão natural. Para isso bastaria notar que ao falar dos objetos do conhecimento humano, Berkeley só emprega o termo “idéias” para se referir às idéias dos sentidos e às idéias da imaginação e da memória57. Ele não diz, pelo menos não explicitamente, que a observação das “paixões e operações da mente” proporciona à mente algum tipo específico de idéias. No idioma original, os objetos do conhecimento obtidos mediante a percepção das operações da mente são introduzidos por meio da seguinte expressão: “or else such as are perceived by attending to the passions and operations of the mind”. É no mínimo curioso que à palavra “such” não segue nenhum substantivo específico. Para o professor português Antônio Sérgio, autor da tradução do trecho citado logo acima, esse substantivo tem que ser “idéias”, já que sua opção ao traduzir essa frase é empregar a expressão “ou percebidas”, que pede um substantivo feminino como complemento. Entretanto, seria de se esperar que caso Berkeley também quisesse chamar de idéias esse grupo de objetos e evitar qualquer possibilidade de dificultar a interpretação do seu leitor ele provavelmente teria escrito “or else such ideas”, mas isso não acontece. Se levarmos em conta que em algumas outras passagens dos textos de Berkeley – como as que foram citadas no primeiro tópico desta seção – podemos encontrar a afirmação de que as operações da mente não podem ser experenciadas por meio das idéias, facilmente nos persuadiremos que “idéias” não é o melhor candidato para ocupar essa vaga. Qual seria então? Parece, então, absolutamente plausível afirmar que o substantivo que melhor se encaixa na lacuna deixada pela expressão “or else such” é “objects” e não “ideas” e isso simplesmente porque é primordialmente dos objetos do conhecimento humano que Berkeley está falando, não das idéias; as idéias são um tipo de objetos do conhecimento. Além disso, esse procedimento de não revelar explicitamente que sua taxonomia dos objetos do conhecimento humano inclui outros tipos de objetos que não

os da classe das idéias, denotaria um cuidado especial da parte de Berkeley em não romper logo no início de seu texto com a tradicional divisão lockeana entre idéias da sensação e idéias da reflexão58. Lembremos que o primeiro parágrafo pretende partir de um acordo, de uma tese universalmente aceita: “É evidente a quem investiga (...)”. Caso Berkeley de início já dissesse que o que Locke chamou de idéias da reflexão na verdade é um contra- senso, dado que não podemos ter idéias de atividades como as operações da mente, não haveria como selar esse ponto de partida.

Mas, além das evidências já apontadas a favor da afirmação que os principais aspectos da teoria das noções já se encontram antes de 1734 na filosofia de Berkeley, não podemos deixar de frisar que para Berkeley a significatividade de qualquer termo ou discurso não remete necessariamente a alguma forma de correlação com uma idéia ou grupo de idéias. Dito de outro modo, ao afirmar que podemos empregar as palavras de modo significativo sem que haja a necessidade do correlato de uma idéia denotada por elas, Berkeley está pressupondo o essencial da teoria das noções, a saber, que é possível falar de maneira inteligível acerca de coisas que não são idéias, como as mentes e suas operações. Que Berkeley não subscreve à tese de que todo termo provido de significado denota alguma idéia, fica evidente no parágrafo 20 da introdução dos Principles:

“[A] comunicação de idéias por palavras não é o principal e único fim da linguagem, como comumente se supõe. Há outros fins – como o cultivo de alguma paixão, o estímulo ou o desencorajamento de uma ação, o colocar a mente em alguma disposição particular – para os quais aquela é, em muitos casos, meramente subserviente e às vezes completamente omitida quando esses fins podem ser obtidos sem ela, como freqüentemente acontece, acredito, no uso familiar da linguagem.”59

Tendo apresentado razões para admitirmos a legitimidade teórica das passagens que Berkeley acrescentou às edições dos Principles e dos Dialogues a partir de 1734, podemos

58 Segundo Locke, todo conhecimento humano encontra sua legitimação na experiência, mais especificamente

na percepção do acordo e desacordo das idéias fornecidas à mente pela experiência. As idéias da sensação e as idéias da reflexão são os tipos mais fundamentais de idéias experenciadas pela mente humana. As do primeiro tipo são dadas à mente mediante o contato dos órgãos dos sentidos com os objetos sensíveis; as do segundo, são obtidas mediante a observação das operações da mente que podem ser realizadas sobre o material previamente dado aos sentidos.

59 “[T]he communicating of ideas marked by words is not the chief and only end of language, as is commonly

supposed. There are other ends, as the raising of some passion, the exciting to or deterring from an action, the putting the mind in some particular disposition; to which the former is in many cases barely subservient and sometimes entirely omitted, when these ca be obtained without it, as I think doth not unfrequently happen in the familiar use of language.”

agora encerrar esse tópico apresentando mais uma passagem onde Berkeley novamente parece distinguir com clareza a mente, seus atos e seus objetos. Diferentemente das que anteriormente serviram a esse propósito, esta passagem veio à luz juntamente com a primeira edição dos Principles:

“Mas, além dessa interminável variedade de idéias ou objetos do conhecimento, também há algo que as conhece ou percebe, e exerce diversas operações acerca delas, como querer, imaginar, recordar.” (P 2)60

Podemos extrair dessa passagem uma análise da percepção sensível e do conhecimento em geral que consta de três elementos claramente distinguíveis: (a) as idéias; (b) algo que conhece, percebe, deseja, imagina, recorda essas idéias – isto é, a mente; e (c) as operações realizadas pela mente: o desejar, o imaginar, o recordar. Que as idéias são claramente diferenciadas das mentes, a própria contraposição que inaugura o texto dos

Principles deixa evidente, conforme já vimos, Isso sem contar a explícita afirmação do

princípio da distinção que aparece já na frase seguinte à passagem que acaba de ser citada. Que as mentes e suas operações também são distintas entre si é algo que fica igualmente claro; Berkeley fala de um algo que exerce diversas operações ou atividades e, em momento algum, reduz ou identifica esse algo a essas operações. Analogicamente, poderíamos pensar na diferença que há entre um corpo que se movimenta e o movimento desse corpo. É certo que, ao mesmo tempo em que são distintas, as mentes e suas operações guardam uma estreita relação entre si: operações são, enquanto tais, operações das mentes. Trata-se, portanto, da relação que há entre um poder e algo que detém esse poder. Ora, se as idéias são completamente distintas das mentes, e se as mentes estão estreitamente ligadas a suas operações, ainda que também sejam distintas ente si, como seria possível negar que também há uma distinção entre as operações das mentes e as idéias, entre o perceber e a idéia percebida?

É obvio que o defensor da leitura que atribui o princípio da identificação a Berkeley faria da dificuldade que esse tipo de pergunta levanta justamente o sinal de que há uma grave contradição em sua filosofia: não há como conciliar a distinção entre as mentes e as idéias e a identificação das idéias com as operações das mentes. Como o princípio da

60 “But, besides all that endless variety of ideas or objects of knowledge, there is likewise something which

identificação seria o fundamento do esse est percipi e, assim, mais essencial do que o princípio da distinção, o único meio de salvar Berkeley de um desastre teórico total seria fazê-lo abandonar este em favor daquele. Essa é, conforme já vimos, a proposta de Pitcher. Essa estratégia, porém, distorceria radicalmente o texto de Berkeley, já que o princípio da distinção é enunciado explicitamente e de maneira abundante. Ignorar a maciça evidência textual a favor desse princípio seria uma violência interpretativa. Por que não, em vez de abandonar o princípio da distinção, não fizéssemos Berkeley abandonar o outro princípio, o da identificação? O fato de uma interpretação gozar de ampla aceitação e de um assentimento secular não quer dizer que ela é verdadeira. Logo, caso não houvesse razões suficientes para se falar de um princípio da identificação em Berkeley, não seria isso um forte argumento para a interpretação de que o princípio da distinção e a análise da relação entre as mentes e as idéias em termos de ato e objeto nele implicada corresponderia à verdadeira posição do filósofo?

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