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III. Análise do suporte textual da interpretação da identificação

2. Os textos não publicados: Philosophical Commentaries

Passemos agora à análise dos textos não publicados, à análise dos Philosophical

Copmmentaries especificamente. Entre os apontamentos dos juvenis cadernos de Berkeley,

o primeiro que parece sugerir a admissão do princípio da identificação por parte do filósofo é o seguinte:

“Consciência, percepção, existência das idéias parecem-me todas uma só” (PC 578; p. 27)130

Essa passagem, curiosamente, não é citada por nenhum dos proponentes da interpretação da identificação aqui mencionados. Contudo, é óbvio que ela também poderia ser lida com essa chave por qualquer um deles, já que nela Berkeley afirma que a consciência, percepção (aparentemente tomadas como sinônimos) e a existência das idéias parecem todas ser uma só coisa. Nesse caso, atos – consciência e percepção – seriam idênticos a objetos, isto é, às idéias existentes. Novamente devemos atentar para a ambigüidade presente na maneira como Berkeley se expressa. A expressão “parecem-me todas uma só” não envolve necessariamente a afirmação da identidade entre perceber e percebido. Em primeiro lugar, Berkeley não é categórico ao dizer que percepção e a existência das idéias são uma só coisa; “parece” que são, diz ele. Além disso, o que significa falar que elas são uma só? Aqui, como em outros lugares, Berkeley poderia apenas estar sublinhando a impossibilidade de dissociação entre a percepção e o percebido e não a estrita identidade entre ambos. Nesse caso, a expressão “parecem-me todas uma só” significaria que para Berkeley a análise da percepção sensível revela que essa percepção é uma unidade complexa, isto é, uma unidade que se constitui como tal em virtude da presença de uma relação complementar entre percepção e percebido. Seja como for, o fato é que a passagem está longe de ser um trunfo para o defensor da interpretação da identificação, uma vez que, na melhor das hipóteses, ela é bastante ambígua.

Em outra passagem, esta citada tanto por Grave quanto por Pitcher, Berkeley se pergunta:

“Qu. (...) Em que a percepção do branco difere do branco.” (PC 585; p. 28)131

Qual a diferença que há entre a percepção da cor branca e o branco que existe em algum objeto particular? Berkeley faz dessa questão um motivo para reflexão, mas ele próprio não diz se há ou não alguma diferença entre o branco e a percepção do branco. Esse fragmento de texto é, portanto, nulo quando se trata de tentar determinar se Berkeley admitiu o princípio da identificação ou não. Porém, se levarmos em conta os argumentos até aqui apresentados contra a atribuição desse princípio ao filósofo, certamente nos inclinaremos a responder que a resposta de Berkeley a respeito da diferença que há entre o perceber o branco e o branco percebido é que no primeiro caso temos a atividade de uma operação da mente e no segundo a passividade de uma idéia.

Em Pitcher podemos ainda encontrar mais uma citação a favor da interpretação da identificação:

“Distinguir entre a idéias e a percepção da idéia tem sido uma das grandes causas de se imaginar substâncias materiais” (PC 609; p. 30)132

Essa passagem parece bastante frágil como um suporte para a tradicional interpretação da identificação. E isso porque ela retoma precisamente o ponto que já discutimos ao examinar o parágrafo 5 dos Principles. Berkeley vê na separação entre o perceber e o percebido um equívoco filosófico intimamente vinculado ao materialismo. O materialismo é precisamente aquela “opinião que estranhamente prevalece entre os homens”, mencionada no parágrafo 4 dessa obra, ou seja, a tese de que há objetos que têm uma existência absoluta independente de seu serem percebidos por alguma mente. Assim, a ênfase na anotação que está sendo discutida reside mais uma vez na impossibilidade de se distinguir – leia-se: separa ou abstrair – a percepção da idéia da idéia percebida. Não há nenhuma referência à noção de identidade. O que está em jogo mais uma vez é a noção de inseparabilidade. E Berkeley está convencido de que o ato de perceber não pode ser concebido fora de uma correlação com algum objeto percebido.

131 “Qu. (…) Wherein I pray you does the perception of white differs from white.”

132 “The Distinguishing betwixt an Idea and perception of the Idea has been one great cause of Imagining

Outra passagem passada por alto pelos comentadores até aqui mencionados, mas que também poderia ser sacada como uma evidência textual a favor da interpretação da identificação é a seguinte:

“Foi a opinião de que as idéias poderiam existir impercebidas ou antes da percepção que fez com que os homens pensassem que a percepção fosse algo diferente da idéia percebida” (PC 656; p. 35)133

Nela Berkeley novamente associa o materialismo – “a opinião de que as idéias poderiam existir impercebidas” – com a doutrina das idéias abstratas. No entanto, diferentemente do parágrafo 5 dos Principles, onde havia sido dito que talvez o materialismo fosse uma decorrência da doutrina das idéias abstratas, aqui ele diz que é o materialismo que conduz a um certo tipo de abstração; é o materialismo que leva os homens a acreditar que a percepção da idéia e a idéia percebida são diferentes, isto é, que uma remete a uma natureza mental e a outra a uma natureza material. “Diferente” aqui tem o mesmo sentido que “distinto” nas passagens anteriormente examinadas. Que Berkeley considera a separação da idéia de sua percepção uma abstração ilegítima é algo que já está explicitamente afirmado no próprio Philosophical Commentaries:

“Desafio qualquer homem a imaginar ou conceber uma percepção sem uma idéia, ou uma idéia sem uma percepção.” (PC; p. 27)134

Além do mais, esses mesmos cadernos de notas são mais inequívocos em distinguir – no sentido de atribuir propriedades exclusivas a um e a outro – os atos e os objetos do pensamento do que em provar, como querem Grave e Pitcher, que não há distinção alguma entre eles:

“Idéia é o objeto do pensamento. Aquilo em que penso, seja lá o que for, eu chamo de idéia. O próprio pensamento ou pensar não é idéia. É um ato – i. e. volição, i. e. em contraposição aos efeitos – a Vontade.” (PC 808; p. 51)135

133 “Twas the opinion that Ideas could exist unperceiv’d or before perception that made Men think perception

was somewhat different from the Idea.”

134 “I defy any man to imagine or conceive perception without an idea, or an idea without perception.” 135 “Idea is the object of thought. Yt I think on, whatever it be, I call idea. Thought itself or thinking, is no

Não há dúvida de que essa passagem é mais clara do que qualquer um dos apontamentos apresentados como evidência da interpretação da identificação. Idéias são objetos; o pensamento não é um objeto, pois não é uma idéia. O pensar e as idéias são distintos, isto é, possuem propriedades diferentes. Idéia é aquilo a que o pensamento se dirige; o pensamento é esse dirigir-se a e, como tal, é um ato. Dificilmente a contraposição entre objetos e atos da mente poderia ser mais explícita que isso.

De maneira geral, as evidências colhidas nos Philosophical Commentaries parecem deixar a desejar quando se trata de proporcionar suporte textual para a interpretação da identificação. Além disso, seria de se esperar que afirmações que houvessem figurado com maior intensidade num texto juvenil e concebido meramente como um caderno de estudos – podendo, portanto, conter pensamentos soltos, reflexões descomprometidas e até a enunciação de teses adversárias – talvez não fossem muito confiáveis para embasar a interpretação das teses de uma filosofia amadurecida e pública. Seria de se esperar, também, que se o princípio da identificação realmente desempenhasse o papel central apontado por Grave e Pitcher, ele seria “anunciado em tom tão alto” quanto o princípio da distinção e, assim sendo, certamente encontraríamos com mais facilidade “claras citações” a seu favor.

Todos os textos comumente apresentados pelos intérpretes comprometidos com a interpretação da identificação foram examinados e foi mostrado que nenhum deles é capaz de fornecer um suporte inequívoco ou suficientemente persuasivo a seu favor. Levando-se em conta que há certas teorias de Berkeley que claramente pressupõem a negação do princípio da identificação, assim como há textos que podem ser lidos de maneira mais coerente quando temos em mente a distinção entre ato e objeto, parece não ficar dúvidas de que essa interpretação, por mais enraizada e admitida que seja, não oferece uma justificativa plausível para a fundamentação da necessidade sistemática do esse est percipi. Essa justificativa, se ela existe, deve ser encontrada em outro lugar.

Capítulo II

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