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A INTERPRETAÇÃO DA INERÊNCIA

II. Obstáculos à interpretação da inerência

Na seção anterior, vimos que a interpretação da inerência dispõe um respeitável embasamento contextual, textual e sistemático. Nesta, porém, constataremos que essa leitura não está livre de deficiências e dificuldades. Se a presença dessas deficiências não é

178 “The arguments from relativity are used to show that, on this view, one must attribute to material

substances contrary properties. This is absurd, so Hylas concedes that sensible qualities do no exist in material substances. It is agreed that they are ‘in’ the mind and cannot exist apart from it. The directness of this inference suggests that Berkeley thought sensible qualities incapable of independent existence and held that they must be supported by the mind if not by material substances.” Op. cit., p. 210.

179 “If the secondary qualities are not in the object it does not follow that they are in the mind, unless one

suficiente para abandonarmos sua perspectiva hermenêutica, é certo que elas bastam para levar-nos a olhá-la com maior cuidado. Por essa razão, na seção seguinte nos concentraremos num exame mais detido dos textos de Berkeley que parecem confirmá-la.

A principal dificuldade em se atribuir a Berkeley um modelo explicativo da relação substância/qualidade em termos de inerência reside no inconveniente de, nos Principles, o filósofo rejeitar uma conseqüência imediata desse modelo quando aplicado a seu imaterialismo, a saber, a de que se uma qualidade qualquer inere na mente ela se torna uma qualidade dessa mente:

“Talvez possa ser objetado que se extensão e figura existem somente na mente, segue-se que a mente é extensa ou apresenta figura, dado que a extensão é um modo ou atributo que (para falar como os escolásticos) é predicado do sujeito no qual existe. Respondo que essas qualidades estão na mente apenas na medida em que são percebidas por ela; ou seja, não como modo ou atributo, mas somente como idéia. E daí não se segue que a alma ou mente é extensa porque a extensão só existe nela, assim como não se segue que ela seja vermelha ou azul, uma vez que todos reconhecem que essas cores existem nela e não em outro lugar.” (P 49)180

Como a interpretação da inerência poderia estar correta se Berkeley explicitamente nega que as qualidades sensíveis existam na mente enquanto qualidades da mente? Tanto Allaire quanto Cummins reconhecem esse problema em sua interpretação, o primeiro afirmando que o argumento contido na passagem que acaba de ser citada “parece minar tudo que já foi dito”181, e o segundo que “a passagem parece danosa”182. No entanto, ambos entendem que a dificuldade é, na verdade, apenas aparente, podendo ser dissipada mediante uma leitura mais atenta da totalidade do parágrafo. A solução que encontram é exatamente a mesma. Segundo eles, Berkeley pode perfeitamente afirmar que as qualidades sensíveis inerem na mente sem se comprometer com a absurda tese de que a mente se tornaria azul ou redonda, e isso porque ele não subscreve ao modelo de predicação que dá origem ao problema. Para Berkeley, prosseguem, a predicação é concebida como uma relação entre

180 “[I]t perhaps may be objected that if extension and figure exist only in the mind, it follows that the mind is

extended and figured; since extension is a mode or attribute which (to speak with the Schools) is predicated of the subject in which it exists. I answer those qualities are in the mind only as they are perceived by it; that is, not by way of mode or attribute, but only by way of idea. And it no more follows the soul or mind is extended, because extension exists in it alone, than it does that it is red or blue, because those colours are on all hands acknowledged to exist in it, and nowhere else.”

181 “(…) appears to undermine all that has thus far been said.” Op. cit., p. 255. 182 “(…) the passage seems damning.” Op. cit., p. 213.

todos e partes e não como uma qualificação em sentido tradicional. Dizer, por exemplo, que

S é p, q, ou r é dizer que p, q, ou r são qualidades (as partes) que constituem a coisa

sensível denominada S (o todo). Assim, ainda que as qualidades sensíveis existam apenas na mente, inerindo nela, elas não existem como partes da mente, mas como partes de um certo todo, pois para ser o predicado de algo é preciso estar nesse algo como uma parte, como um elemento constitutivo – inerir é uma coisa, predicar é outra: não há paralelo entre um e outro183. Portanto, concluem, ao distinguir as relações de inerência e predicação, Berkeley de fato escapa à objeção que ele próprio se coloca, sem abrir mão do modelo inerencial da relação substância/qualidade. O texto que serve de base a essa interpretação é a própria seqüência do parágrafo 49 dos Principles:

“Quanto ao que os filósofos dizem a respeito de sujeito e modo, parece-me algo bastante sem fundamento e ininteligível. Por exemplo, dessa proposição “um dado é duro, extenso e quadrado”, dizem que a palavra dado denota um sujeito ou substância distinto da dureza, extensão e figura que são predicadas dele e no qual elas existem. Isso eu não poso compreender; para mim um dado não parece ser nada além das coisas chamadas seus modos ou acidentes. E dizer que um dado é duro, extenso e quadrado não é atribuir essas qualidades a um sujeito distinto delas e que as suporta, mas apenas explicar o significado da palavra dado.”184

Baseando-se exclusivamente nessas linhas, Cummins acredita que qualquer dificuldade levantada pelas afirmações que Berkeley faz na primeira metade dessa passagem pode ser transposta:

“Bem pode ser que quando Berkeley afirmou que qualidades sensíveis como extensão não estão na mente ‘como modo ou atributo’, ele quisesse dizer que elas não são partes da mente da mesma maneira como são partes do dado e, conseqüentemente, não podem ser predicadas dela. Se for assim, então é possível analisar a afirmação de que as qualidades estão na mente ‘como idéias’ em termos de qualidades inerindo na mente sem cair em contradição.”185

183 Essa separação entre inerência e predicação é, inclusive, o erro fundamental que Allaire vê na

argumentação de Berkeley a favor do esse est percipi, conforme já pudemos observar.

184 “As to what philosophers say of subject and mode, that seems very groundless and unintelligible. For

instance, in this preposition ‘a die is hard, extended, and square’, they will have it that the word die denotes a subject or substance, distinct from hardness, extension, and figure which are predicated of it, and in which they exist. This I cannot comprehend: to me a die seems to be nothing distinct from those things which are termed its modes or accidents. And, to say a die is hard, extended, and square is not to attribute those qualities to a subject distinct from and supporting them, but only an explication of the meaning of the word die.”

185 “It very well may be that when Berkeley asserted that sensible qualities like extension are not in the mind

O mesmo vale para Allaire:

“Ao explicar ‘qualidade’ de forma tal que uma entidade é uma qualidade de outra somente se ela for uma parte dessa outra, Berkeley pode dizer que o vermelho não é uma qualidade da mente. Além do mais, ao explicar ‘é’ de forma tal que ele só possa ser utilizado em sentenças onde uma qualidade é atribuída a um objeto, Berkeley pode sustentar que, ainda que o vermelho esteja na mente, é possível dizer que a mente não é vermelha.”186

Apesar do esforço argumentativo desses comentadores, a leitura que defendem parece não fazer jus ao que realmente é afirmado no parágrafo em questão. Ao recorrer ao exemplo do enunciado “o dado é duro, extenso e quadrado”, Berkeley não soa como se estivesse propondo uma nova teoria da predicação. O que está em pauta certamente é o fato desse enunciado não poder ser analisado em termos de um sujeito/substância (“o dado”) que serve de suporte a certos predicados/qualidades (“duro”, “extenso”, “quadrado”). É evidente, pois, que Berkeley está rejeitando a concepção tradicional de predicação, segundo a qual paralelamente à relação lógica sujeito/predicado corre a relação metafísica substância/qualidade. Tal é o ponto da argumentação de Berkeley, mas isso por si só não o inclina a nenhum modelo alternativo de predicação. O que sugere esse tipo de leitura provavelmente são as considerações que Berkeley faz a respeito do enunciado que serve como exemplo a sua crítica da posição tradicional. Mas está longe de ser claro que ao empregar esse exemplo Berkeley esteja propondo uma teoria da predicação em termos de todos e partes. A conclusão do parágrafo, inclusive, sugere que no exemplo em questão sequer está envolvida a noção de predicação, já que, segundo Berkeley, ao falarmos que “um dado é duro, extenso e quadrado” nós estamos apenas explicando o significado do termo “dado”. Portanto, ainda que Berkeley não esteja propondo um tipo de teoria da predicação, talvez ele esteja articulando uma teoria da significação.

consequently, cannot be predicated of it. If this is so, then one can analyze the claim that qualities are in the mind ‘by way of ideas’ in terms of qualities inhering in the mind without contradiction.” Op. cit., loc. cit.

186 “By explicating ‘quality’ such that an entity is a quality of another only if it is a part of the other, Berkeley

can say that red is not a quality of the mind. Furthermore, by explicating ‘is’ such that it can only be used in sentences where a quality is attributed to an object, Berkeley can maintain that though red is in the mind, the mind cannot be said to be red.” Op. cit., p. 256.

Além disso, Berkeley não poderia estar propondo um modelo de predicação baseado na relação todos/partes, haja vista sua caracterização da substância mental como algo indivisível:

“Um espírito é um ser ativo, completo, ativo.” (P 27)187

Assim, caso toda predicação fosse uma relação de todos e partes, jamais seria possível predicar algo a respeito da mente, pois isso implicaria em uma concepção da mente como algo fragmentado, constituído de partes.

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