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Durante a minha formação no curso regular de Arquitetura e Urbanismo, na Escola de Arquitetura da UFMG, aproximei-me das artes do corpo. Praticamente, conjuguei junto à formação acadêmica um aprendizado em dança contemporânea e práticas circenses. Esses envolvimentos deslocaram sobremaneira a minha compreensão espacial e influíram de modo muito particular nas escolhas profissionais.

Ao me engajar nestas duas formações, a de arquiteto e a de artista do corpo, foi se criando também um lugar para a convivência dessas duas atuações. Motivado por um contínuo fluxo de trocas entre as ações desempenhadas em um e noutro, a prática da performance foi se desvelando como um possível percurso para a construção de um lugar de trabalho. Uma vereda possível que revigorava minhas percepções, e localizava o corpo como um agente basilar para a compreensão das práticas espaciais.

A partir de 2004, com intuito de praticar ações performáticas engajadas com o contexto urbano, que fizessem convergir minha prática artística à prática arquitetural, tomei os ambientes urbanos de Belo Horizonte como um campo de pesquisas estéticas.

A fim de possibilitar as minhas observações sobre esta localidade, utilizei a ação de perambular a esmo pelas ruas e vias, como forma de produzir experiências corporais e coreográficas que viessem alimentar as propostas artísticas a serem desenvolvidas posteriormente em meus trabalhos.

Estas perambulações levaram à elaboração de registros fotográficos e sonoros, engajando uma experiência sensorial e relacional nos espaços urbanos. Desenvolvi então uma corporeidade específica, advinda dos afetos que os ambientes urbanos me causavam, e também uma coletânea de

fotografias de lugares, onde era possível perceber vestígios da passagem ou ocupação de um corpo.32

Estas pesquisas alimentaram a ação performática Scan-Hotel Bragança, desenvolvida no ano de 2004 como extensão de uma residência coreográfica acontecida na cidade de MontPellier, França, coordenada por dois coreógrafos europeus, Susan Buirgue e Bernado Montet. Desta residência participaram 12 jovens coreógrafos, provinientes de dez diferentes cidades do mundo. O programa de residência chamava-se Atelier du Monde 2.

As pesquisas estimuladas no atelier coreográfico Atelier du Monde 2 desenvolviam-se pela observação do ato de se deslocar pelo espaço, hibridizando coordenadas espaciais geométricas e movimentos corporais. As coreografias desenvolvidas no atelier organizavam gestos e movimentos cotidianos (deitar, sentar, levantar, andar, correr, saltar) sobre um plano cartesiano, previamente projetado e que reproduzia as proporções do palco. Através de métodos de indeterminação e aleatoriedade, como jogos de dados e moedas, os gestos e as coordenadas espaciais eram vinculados, criando coreografias que estimulavam a composição da cena. O resultado encontrado por nós residentes, investigava possíveis acomodações corporais no espaço cênico, advindas do reconhecimento deste lugar e das relações possíveis dentro de suas limitações e das variáveis de composição.

Porém, o que parecia ser um método para engajar uma composição indeterminada e eventual, apresentou-se como um normativo co-autor, parametrizando e homogenizando quase todas as propostas. De minha parte houve muita dificuldade de adaptação àquele método de criação cênica,

32 Por meio dos registros sonoros ocupava-me em relatar as paisagens por onde passava e

suas conformações específicas. Muitas das vezes, parava em algum lugar e explorava as diferentes texturas existentes, registrando a sonoridade que cada elemento produzia, ao experienciá-lo com as mãos e os pés. Desta forma, produzia uma compreensão ambiental urbana e uma qualificação de seus ambientes, utilizando meu próprio corpo como um dispositivo sensorial e relacional. Capturava essas impressões por meio de pequenos aparelhos, uma máquina fotográfica e um gravador de áudio, e posteriormente elaborava as questões ao estudar os registros procedidos.

porque, de fato, sua abordagem metodológica não conjugava aberturas generosas a apropriações particulares e sensoriais. O método estava sobremaneira abrigado nas expectativas e no trabalho autoral da coordenadora Susan Buirge. Curiosamente, Buirgue tinha sido arquiteta antes de iniciar a carreira como coreógrafa.

Ao retornar ao território brasileiro, tentei desenvolver os conceitos e procedimentos estimulados no Atelier du Monde 2, aplicando as práticas exercitadas ao espaço urbano de Belo Horizonte. Porém, ao realizar esta tentativa, usei os métodos apenas como princípios, e a partir deles elaborei um estado corporal particular que apoiasse essas práticas, nomeado de corpo

scanner.33

As coordenadas espaciais geométricas estudadas no atelier coreográfico foram então expandidas às conformações da malha urbana, e o corpo em deslocamento performático associava as direções e conformações das vias às sensações corpóreas que eram estimuladas. A aleatoriedade era vivenciada pelos múltiplos atravessamentos que já se davam em tempo real ao percorrer estes ambientes.

O acúmulo destas experiências gerou um conjunto de gestos corporais, compondo uma estrutura coreográfica, que revelava os vínculos e os afetos que espaço urbano imprimia sobre o meu corpo. Por meio deste conjunto de informações foram elaboradas imagens corporais, partilhadas posteriormente sob a forma de uma ação performática.

33 A referência ao dispositivo scanner, aparelho empregado na captura de imagens e

superfícies bidimensionais, era estudada corporalmente, estendendo esta idéia ao corpo biológico e à memória. Além de capturar imagens das paisagens urbanas - por meio de um dispositivo fotográfico - o corpo scanner identificava as particularidades ambientais dos lugares através dos sentidos corpóreos.

Este estado corporal performático desenvolvia-se pelo deslocamento a pé nas localidades urbanas, empreendendo derivas pelas ruas e vias da cidade, em lugares desconhecidos por mim, afim de recolher e me afetar pelas ambiências e eventos diversos encontrados no percurso. Uma das tarefas praticadas durante estes exercícios, era transformar os princípios que eu havia estudado no Atelier du Monde 2, e ao final da experiência trabalhar apenas os resíduos, ou seja, a sobra sensorial que havia sido grafada em meu corpo.

Esta ação performática, Scan Hotel Bragança, instalou-se no refeitório34

de um hotel popular no centro da cidade de Belo Horizonte, e se desenvolveu em parceria com outros artistas, Guilherme Machado, Poliana Reis e Sulamita Lino, integrando a programação de um evento realizado neste hotel: o

Perpendicular Hotel Bragança, idealizado por Adriano Mattos Corrêa e Louise

Ganz.

A construção das cenas eram mediadas pelas percepções e sensorialidades que se desenvolveram no ambiente público. Ou seja, o corpo em passagem, ao se relacionar com as ambiências urbanas, utilizava da sensorialidade corpórea como filtro para absorção das qualidades destes espaços. A cidade era então percebida como uma superfície relacional

expandida, e as impressões recolhidas durante o escaneamento, eram

performadas através de um discurso corporal em diálogo com o ambiente arquitetônico.

Durante a instalação da performance no refeitório do hotel, os elementos arquitetônicos presentes neste espaço serviram como uma superfície para expressão e impressão das experiências escaneadas pelo corpo scanner. O espaço cênico era hibridizado ao ambiente arquitetônico, criando uma mediação entre a ação performática e o público. Pequenos dispositivos de iluminação foram instalados, direcionando os focos de fora para dentro. Desta forma, os fachos luminosos, recortados pelas frestas das janelas e portas, davam a ver as mediações que esses elementos performavam: comunicações entre as superfícies internas do refeitório e o ambiente externo.

As experiências partilhadas com o público desenvolveram-se a partir de uma adaptação e embate, surgidos entre as informações trazidas ao ambiente, frente às que já estavam ali presentes. Os visitantes observavam então

34Esta performance foi a primeira investigação, em minha prática artística, que vinha relacionar

lugares habitáveis às situações performáticas. Antes eu utilizava o palco como lugar de

encenação. Ao tomar o refeitório como um lugar para desenvolver a performance, todos os

paisagens corporais, performadas pelo grupo de artistas, que ao se relacionar com os elementos presentes no refeitório, como portas, janelas, mesas e cadeiras, incumbiam-se de apresentar um recorte relacional entre o espaço existente e aquele que fora percebido nas experiência ambulantes urbanas.

A performance Scan Hotel Bragança criava assim um terceiro espaço, que não era de fato uma representação do que havia sido vivenciado, mas uma visualização possível ao fazer dialogar o espaço interno do refeitório com as qualidades experienciadas no contexto público. As ações produzidas configuravam-se como uma interface e um acesso, para que o próprio visitante tecesse uma percepção particular sobre estas experiências, recriando a performance e expandindo as suas considerações.

Este momento fazia-se particularmente visível na finalização da performance, quando uma porta era aberta e convidávamos, pela fixação de um cartaz com a palavra entre, que o público percorresse o depósito do refeitório. A iluminação criada ressaltava pequenas instalações, compostas por alguns objetos capturados durante os trajetos em torno do hotel e além dele.

Era sugerido, então, um percurso que conduzia até uma escada, e levava ao topo do hotel, conduzindo até uma área de convivência. Neste momento, o entorno presentificava-se, pois a paisagem noturna do centro de Belo Horizonte podia ser vista dali. O público permanecia algum tempo, suficiente para se engajar com a continuidade da performance. A cidade não era mais ofertada como uma mediação performática, mas se fazia ali presente diante do corpo, a ação de escaneamento reiniciava-se, mas desta vez, quem estava performando era o próprio público.