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4.4.4 quarto dia : abrigar

Neste encontro a questão abordada por nós foi a elaboração de um abrigo para o corpo. Iniciamos nossas práticas com exercícios para a sensibilização corpórea e depois passamos a ponderar sobre o que era um abrigo para o corpo.

Começamos por relembrar os objetos cotidianos como os calçados, a sombrinha, o vestuário, e como estes engajavam uma relação com o ambiente, relevando alguns aspectos como proteção, extensão ou mediação. Depois das manifestações e comentários individuais, propusemos então a criação de um abrigo utilizando os materiais disponibilizados pelo festival: roupas usadas, varetas de bambu, tesoura, barbantes, cola, fita adesiva, pregadores de roupa, sacos plásticos, grampeadores, papelão entre outros.

No entanto, fizemos algumas considerações para que os participantes tivessem alguma referência criativa para o desenvolvimento deste objeto. A proposta era criar um abrigo, na escala corporal, que deveria conjugar também uma outra função, ou seja, deveria ser um abrigo possível de ser transportado sobre o corpo e também destinar-se a um outra apropriação, utilitária ou não. Dispusemos os materiais num canto da sala, com uma organização mínima para que se tornassem reconhecíveis suas propriedades plásticas e construtivas.

Os participantes trabalharam em grupos de duas ou três pessoas, construindo o objeto a partir de seus conhecimentos individuais. Cada grupo criou uma organização do trabalho e uma técnica particular; as propostas variavam entre os participantes. Era curioso observar que cada um dos grupos desenvolvia e aprimorava a técnica a partir de conformações experimentais que iam evoluindo por uma experimentação em tempo real.

Os participantes construíam o abrigo-objeto e experimentavam a proposta no corpo do outro; avaliavam o funcionamento e emendavam outras possibilidades, que o projeto inicial não contemplava. Os ajustes eram cuidados e cada um ia melhorando suas proposições, estabelecendo uma prática processual, criando aberturas que se davam por esse ajuntamento coletivo, que se encaminhavam principalmente por processos criativos sobrepostos.

A nossa intervenção neste processo foi muito pontual. Quando éramos solicitados para resolver algum problema, o que fazíamos era compartilhar algum conhecimento possível dentro de nossa própria vivência ou relembrar técnicas cotidianas de se fazer coisas, como amarrar sapatos, unir superfícies com cola, pendurar roupas no varal, fazer redes de pesca, etc.

O grupo trabalhou por volta de uma hora e meia e ao final deste tempo, propusemos que cada um deles elaborasse uma performance para apresentar o objeto.

Um dos grupos, formado por duas garotas, apresentou um curioso objeto denominado por elas de Almachoque. O objeto tinha esse nome porque, segundo elas era a fusão de uma almofada com um colchonete. Em sua apresentação performática, o objeto, cuidadosamente bordado com fitas coloridas e criado a partir de um ajuntamento de fragmentos de lencóis e forros de mesa, tinha inicialmente o formato de uma mochila. Elas simularam um encontro casual, circulando pela sala e cumprimentando-se, uma delas se sentou sobre a almofada; a outra participante perguntava então o que era

aquilo, e aquela apresentava como sendo um Almachoque, convidando-a para

se sentar também. Para isso transformou a almofada em um forramento mais extenso. O objeto foi desdobrado elaboradamente, com requintes preciosos de

amarrações e laçarotes, ampliando suas dimensões e possibilitando que a companheira também se acomodassse. A performance terminava com a despedida e o empréstimo do objeto para a outra, retornando o Almachoque em sua conformação inicial, ou seja a mochila (fig. 27).

FIGURA 27 – Demonstração performática do Almachoque(almofada), pelas propositoras, Daniela e Laiane.

FONTE: Arquivo particular do autor

FIGURA 28 – Demonstração performática do Almachoque(colchonete), pelas propositoras, Daniela e Laiane.

Um outro objeto foi elaborado por dois rapazes; desta vez, era um chapéu feito em papelão, tela plástica e varetas de bambu. O objeto, sem nome, relacionava-se, segundo seus autores, com a prática da pescaria. Esse objeto era destinado a proteger a cabeça da incidência do sol ao saírem de barco para pescar, mas ao voltar para casa, ele poderia se transformar em uma

coisa pra se lavar os peixes ou outros alimentos. Eles demonstraram

performaticamente como esta transformação acontecia, virando o bojo do chapéu para cima, e as mesmas telas, que permitiam a filtragem do sol, eram usadas para a permeagem da água que lavaria os alimentos; as varetas de bambu estruturavam o chapéu e permitiam variações do peso do conteúdo.(fig. 29 e 30)

FIGURA 29 – Criação do chapéu-escorredor-de-macarrão, por Toquinho e Geraldo. FONTE: Arquivo particular do autor

FIGURA 30 – Demonstração performática do chapéu-escorredor-de-macarrão, por Toquinho. FONTE: Arquivo particular do autor

Um outro grupo criou então um surpreendente objeto vestível. Inicialmente, o objeto assemelhava-se a uma vestimenta alegórica, um chapéu associado a um vestido bojudo feito em plástico colorido, estruturado pelas varetas de bambu. Era curioso, porque os participantes tinham portes corporais diferentes: uma senhora de meia idade, um rapaz muito esguio, e um adolescente mais baixo. Eles alternaram a vestimenta, mostrando como o abrigo se estruturava de forma diversa em cada corpo.(fig. 31 e 32)

FIGURA 31 – Demonstração performática da barraca-saia-se-baiana, por Laércio, Jandira e Bruno.

FIGURA 32 – Demonstração performática da barraca-saia-se-baiana, por Bruno. FONTE: Arquivo particular do autor

Segundo eles, o objeto serviria então como uma fantasia para participar dos blocos carnavalescos de Salvador, mas poderia também transformar-se em um abrigo, uma barraca para descansarem após a folia. Bruno, o adolescente mais baixinho, foi quem demonstrou que a barraca poderia se estruturar para abrigá-lo. Jandira terminou a performance usando o objeto como uma saia de baiana, adaptando o objeto a seu corpo, que foi se rasgando para adaptar-se a sua forma mais roliça, dançando e cantando pela sala com os braços erguidos, e demonstrando generosamente como o objeto serviria a este uso.

FIGURA 33 – Demonstração performática da barraca-saia-se-baiana, por Jandira. FONTE: Arquivo particular do autor