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Como forma de evoluir minhas práticas artísticas, pesquisando por engajamentos mais generosos com os visitantes e o espaço urbano, criei coletivamente com Ananda Sette e Guilherme Machado, em 2005, os objetos que denominamos Dormidouros.

Farei um breve relato sobre esta experiência, por que gostaria que ela situasse o próximo trabalho que será estudado de forma mais apronfundada: a

Oficina Paisagem Ambulante.

A partir das itinerâncias pelas vias e ruas da cidade, fiquei estimulado, a romper com o simples transporte das impressões recolhidas no ambiente urbano para os ambientes expositivos ou performáticos, agenciando experiências engajadas com o lugar e com o instante.

A idéia em processo procurava desenvolver vínculos com as situações eventuais que se sucediam nestes ambientes. Ora, até aquele momento eu estava me engajando com a cidade, mas sentia como se retirasse algo do local, me afetasse por ele, e após a experiência, partilhava com os visitantes uma parcela pequena do que eu havia vivido e escolhido. De fato eu editava a

experiência a meu modo e a segmentava no espaço expositivo ou performático.

Nossas pesquisas direcionaram-se para a elaboração de um dispositivo ambulante, que se conformasse como um filtro para a experiência do outro no espaço urbano. Ao usá-lo, o participante já estaria incorporando um certo engajamento com as questões, e ao perambular pelas ruas vestido com ele, desenvolveria a performance por si só.

As obras de Oiticica como os Parangolés e a transformabilidade dos

Bichos de Clark, eram referências recorrentes; porém associamos a estas

obras a efemeridade e apropriação que os moradores de rua desenvolviam nas construções de seus abrigos, posicionando-nos também frente a esta situação ambiental brasileira.

Criamos então os Dormidouros (fig. 22 e 23), abrigos para serem transportados sobre o corpo, construídos a partir de materiais residuais e descartados, que catávamos nas ruas ou recebíamos como doações. Eles foram costurados, colados e amarrados uns aos outros, tendo como referência a escala do corpo, convidando à realização de duas ações em específico: a acomodação do corpo para o descanso e o abrigo a uma situação qualquer, viabilizando interações e adaptações aos ambientes que o participante mesmo viesse a escolher durante o percurso.

Porém, esses objetos serviram inicialmente para nossa própria experiência, e como modo de testagem, saímos às ruas do bairro Prado, em Belo Horizonte, e nos apropriamos das marcações que sinalizavam a passagem das linhas de gás natural que seriam instaladas. Nossa intenção era estimular os transeuntes a observar a situação e criticá-la, porém a performance estava tão centrada em nós mesmos que foram pouquíssimos os encontros em que isso se sucedeu. Estávamos muito atentos à plasticidade daquela ação e dos objetos, e nos esquecíamos da reverberação ampla que a situação poderia encaminhar. A fotografia excessiva e feita muito próxima a

ação não estimulava a aproximações com os habitantes. Éramos vistos como um grupo de artistas realizando suas ações e que não deveriam ser incomodados.

FIGURA 22 – Dormidouros, Guilherme Machado, Ananda Sette, Maurício Leonard, 2005 FONTE: Arquivo particular do autor

FIGURA 23 – Dormidouros, Guilherme Machado, Ananda Sette, Maurício Leonard, 2005 FONTE: Arquivo particular do autor

Deslocamos então estes abrigos para o espaço expositivo, na ocasião da mostra Escala 1:1, realizada em 2005, na Galeria Maristella Tristão, no Palácio das Artes, Belo Horizonte; na expectativa que os visitante viessem a usá-los como objetos para o descanso, e da livre apropriação do espaço da galeria, já que poderiam ser deslocados e dispostos em qualquer lugar.

Esta proposição foi curiosa, pois acabamos por nos tornar reféns da própria característica que julgávamos emprestar um caráter popular e apropriativo para os objetos. Os Dormidouros foram confundidos como um amontoado de lixo ou como obras que não deveriam ser tocadas pela sua própria fragilidade. Havia um pequeno livreto, com algumas imagens de nossas apropriações que ilustravam instruções de uso, sobrepostas aos desenhos de Ernest Neuffert. Pensávamos que estes livretos colocados junto aos objetos poderiam levar os visitantes a se engajarem com os Dormidouros, mas a interação foi escassa. A interface estava muito pronta, muito conformada em torno de nossas expectativas, as aberturas que julgávamos encaminhar, na verdade, endureciam a apropriação.

O espaço expositivo emprestava aos Dormidouros o status de obra e os visitantes observavam aquele objeto como uma escultura feita de resíduos, e de fato, não se sentiam interessados em se acomodar sobre eles.

Dois anos mais tarde, em 2007, fui convidado a propor uma oficina que trabalhasse com materiais reciclados. Uma das visitantes que tinha comparecido à exposição, na qual partilhávamos os Dormidouros, entendeu que o nosso trabalho vinculava-se a estas questões. Ela me encomendou então uma proposta de trabalho a ser desenvolvida junto as atividades de um evento cultural e artístico a ser realizado na Bahia.

A oficina “Arquitetura Ambulante” foi proposta para o Festival de Inverno, no povoado de Barra Grande, pertencente ao distrito de Camamu, Bahia. Este festival, chamado de “A Era do Lixo...Construindo arte e Cidadania”, tinha como um direcionamento comum em suas atividades, instrumentalizar os jovens de

Barra Grande, com ensinamentos ligados à produção de objetos artesanais e performances artísticas que viessem estimular as suas capacidades perceptivas, cognitivas, afetivas, interpessoais, bem como a consciência e implicação de suas ações sociais e ambientais.37

Apresentarei brevemente o contexto da atuação do Festival de Inverno, com intuito de localizar a amplitude de sua inserção, para posteriormente esclarecer como as nossas propostas artísticas vincularam-se as demandas solicitadas.

As realizadoras do festival avaliavam um contexto amplo, em que se justificava a inserção desta atuação cultural, social e ambiental. O povoado de Barra Grande é um local privilegiado ambientalmente, que atrai cada vez mais turistas de todo o Brasil e do mundo, que intentam desfrutar as qualidades ambientais deste lugar.

Como conseqüência da circulação turística no povoado, Barra Grande vem atraindo também um número cada vez maior de pessoas em busca de oportunidades de emprego e melhores condições de vida. No entanto, o turismo ainda é sazonal e, na chamada baixa temporada, a maioria dessas pessoas permanece desempregada. Com isso, a comunidade local vê crescer, proporcionalmente ao aumento da indústria turística, problemas sociais e ambientais.

Segundo as propositoras do festival, não obstante o crescimento acelerado dos jovens no povoado, não existem políticas sociais que acolham e desenvolvam o potencial desse grupo. De fato, grande parte dos jovens, salvo os trabalhos temporários que assumem ao longo dos meses de turismo intenso, “vêem-se ociosos e excluídos das oportunidades de acesso ao

37 Segundo as propositoras e realizadoras do projeto, a psicóloga, educadora e artista, Luíza

Marques conjuntamente com a educadora Roberta Policarpo, o festival de inverno, pretendia “contribuir para a construção de ações, pelos próprios jovens do povoado, que mudassem de forma positiva a cena social e ambiental”. Nesse sentido, objetivava-se articular uma formação educacional, profissional e cultural dos jovens de Barra Grande com um aproveitamento criativo e sustentável do grande volume de lixo existente, situação que se agrava e comprometia as qualidades ambientais tão particulares deste povoado.

desenvolvimento educacional, à qualificação profissional, ao trabalho formal, a condições estáveis de renda, a opções de lazer, cultura e esporte”.38

Como intuito de criar interferências nesta situação, a propositoras, Luíza Marques e Roberta Policarpo pretendiam que o Festival de Inverno, oferecesse aos adolescentes e adultos jovens de Barra Grande, oficinas de artes plásticas, teatro, circo-dança e música, utilizando como materiais constituintes destas atividades, matérias recicláveis (vidro, papel, plástico PETI) e recursos naturais da própria região (como a fibra de coco e seus derivados).

Segundo as propositoras, ao utilizar as práticas artísticas e artesanais como modo de estabelecer vínculos com os jovens, ressaltavam “que estas práticas poderiam viabilizar a recriação subjetiva do mundo e, portanto, aumentar a potência do agir individual e coletivo”. Com isso, as realizadoras pretendiam ampliar as possibilidades de atuação social e de invenção de novos modos de existência, a partir dos recursos e condições dos próprios sujeitos e do contexto social e natural em que estão inseridos.

Em consonância com estas expectativas do projeto, propus em parceria com o geógrafo e artista do corpo Thiago Costa, a oficina nomeada de

Arquitetura Ambulante.

Esta oficina tinha como um objetivo geral propor, junto aos participantes, práticas corporais que gerassem uma disponibilidade criativa e que viessem a coordenar a criação de abrigos transportáveis, executados com materiais alternativos e disponíveis no local. Acreditávamos que esta proposição poderia criar um engajamento ambiental, gerando situações de apropriação dos espaço públicos através da instalação destes abrigos nas paisagens locais.

38A população infantil e jovem de Barra Grande é muito numerosa em termos proporcionais à

população geral do povoado, perfazendo a maior parte das pessoas que ali vivem. E esse grupo populacional vem aumentando a cada ano, não apenas em virtude do processo natural de crescimento das crianças do local, mas também graças à migração de jovens que buscam melhores oportunidades de vida e de emprego em Barra Grande.(informações retiradas do escopo de trabalho elaborado pelas propositoras Luíza Marques e Roberta Policarpo)

O encaminhamento das práticas da oficina evoluía a experiência desenvolvida com os Dormidouros e expandia esta prática ao convidar os próprios participantes à elaboração de seus abrigos.

A intenção era estimular circulações pelos espaços públicos e avistar no próprio local as condições ambientais degradas: as Arquiteturas Ambulantes apoiariam nossa investida e convidariam a criar objetos que se ecologizassem com o lugar. Ou seja, almejávamos produzir uma visualização e valorização das condições ambientais, mas num vetor inverso a simples reutilização dos materiais poluentes.39

Passo a descrever como se desenvolveu nossa atuação partilhando estes relatos com o leitor de forma afetiva. Nesta tarefa, usarei uma organização bastante livre destes materiais, descrevendo as práticas desenvolvidas em cada encontro com os participantes. Ao final destas descrições, desejo informar alguns apontamentos que surgiram desta experiência.