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4.4.3 terceiro dia: perambular

Neste encontro com os participantes aconteceu um fato inesperado, que colaborou para expandir e hibridizar as nossas práticas em meio ao ambiente do povoado. Os participantes chegaram muito atrasados, e aquele que era responsável por disponibilizar o espaço onde se realizavam as práticas não compareceu. Como não havia uma forma de comunicar nem encontrar a pessoa responsável, entendemos que precisávamos dialogar com aquela situação e criar um alternativa. A proposição foi criar uma experiência que se desenvolvesse nos espaços públicos de Barra Grande.

Havíamos previsto como atividade neste dia continuar os estudos sobre a sensorialidade corpórea, mas necessitávamos de um espaço que abrigasse as nossas atividades. Decidimos então, realizar um trajeto por Barra Grande, e deixar que se manifestassem situações a partir desse percurso. No entanto apontamos algumas variáveis. O trajeto seria realizado a pé até um ponto de destino, que seria escolhido coletivamente. A pergunta que possibilitou a aparência deste destino era: que lugar os participantes consideravam, de alguma forma, importante para Barra Grande?

De fato, nós, os coordenadores, conhecíamos muito pouco os lugares de Barra Grande, e estávamos interessados em conhecer a geografia do local, a partir de considerações advindas de seus habitantes. Nossa proposição procurava, intuitivamente, desenvolver e tornar visível os afetos que os ambientes relacionavam ao corpo, mas pelo encontro com as situações mesmas, sucedendo-se no tempo imediato, e nos relacionando com a paisagem natural, humana e construída daquela localidade.

O primeiro lugar de destino foi uma praça, situada a poucos metros de onde estávamos. Segundo um dos participantes, Bruno, um jovem de 13 anos, aquele local era um dos primeiros núcleos históricos de Barra Grande. O nome dela, Praça José Pirajá, referia-se a um dos primeiros moradores que adquiriu terras no local, e que também era um dos membros de sua família. De certa maneira, percebemos através dos relatos de Bruno, uma ecologização manifestada com o ambiente. Ele relatou a partir deste encontro com o local, sua biografia, e permitiu que entendéssemos coletivamente a estruturação do espaço de Barra Grande em torno de famílias nucleares que acabaram unindo- se entre si, originando as propriedades e a conformação espacial do povoado. Outros participantes complementaram os relatos de Bruno, emendando “causos” sobre estas histórias, que se tornaram extremamente vastas e qualificaram afetiva e historicamente cada centímetro do espaço entorno.

O assunto foi se esgotando, e ao perceber isso, propusemos nos deslocar em direção a um outro lugar relevante para o grupo. Desta vez, o lugar apontado foram as ruínas de uma fortificação construída para defender uma invasão estrangeira em Barra Grande, situadas próximas a praia de Três Coqueiros.

Antes de nossa saída em direção a esta localidade, decidimos coletivamente um trajeto que deveria ser seguido para se chegar até lá. Escolhemos algumas ruas e nos direcionamos ao encontro com as ruínas.

Talvez esta tenha sido uma das práticas mais importantes para nós que coordenávamos a oficina. Tivemos o privilégio de apreender e descobrir a

geografia e os afetos do local em passagens e relações com o sistema

ambiental e social de Barra Grande. Nosso deslocamento ia qualificando e desvelando o ambiente à medida que sucedia esta atividade, mista de diversão e aprendizados mútuos. Nessas passagens, nós procurávamos, de maneira muito informal, perguntar sobre as casas, quem morava ali, há quanto tempo. Os próprios habitantes que encontrávamos nas ruas de areia iam emendando histórias e expandindo a nossa compreensão daquela localidade.

Por meio destas conversas, criávamos também algumas considerações sobre os espaços habitáveis de Barra Grande. Algumas casas apontadas pelos participantes, pertenciam a pessoas que não habitavam o local, estavam

vazias, pois seus habitantes só vinham de quando em vez para Barra Grande

passar férias.

A partir deste relato, começamos a problematizar esta questão, encaminhando algumas perguntas sobre estas situações. Quem vinha para este lugar? Onde moravam? O que de fato, essas pessoas contribuíam para o lugar? Habitavam de fato Barra Grande? Quais os vínculos que se mantinham com estes habitantes ocasionais?

Alguns participantes comentaram que em Barra Grande havia vários

caseiros, pessoas que tomavam conta, cuidavam da casa dos outros, enquanto

estes não estavam. Perguntei se havia em Barra Grande pessoas que não tinham casa, e um dos participantes-habitantes respondeu que em lugares mais distantes, para além do local onde visitaríamos, havia uma pessoa que morava em uma casa de palha, porque era muito pobre. Fizemos então algumas considerações ativando outras perguntas.

Ser pobre e morar em uma casa de palha eram percepções diretamente relacionadas? Uma casa de palha não era uma casa? Poderia esta condição ser também uma escolha? Os que não tinham casa poderiam habitar uma casa temporariamente vazia? Deixamos reverberando estas perguntas e os participantes mesmos teceram algumas considerações, posicionando-se frente àquelas questões.

Seguimos, e encontramos então com uma grande árvore, um tamarineiro de grande porte. Imediatamente desejei subir pelo tronco e convidei a todos que fizessem o mesmo. Subimos, e cada um foi se ajeitando da forma que sua disponibilidade corporal encaminhava. Havia uma senhora que fazia parte do grupo, a Jandira, que ficou um pouco receosa de subir, por duvidar que conseguiria chegar até um dos galhos. Todos se incumbiram de ajudá-la e depois de acomodados, começamos então a fazer perguntas. Quais as sensações que podiam ser percebidas no corpo naquele momento? Há quanto tempo aquela árvore existia? Poderia ser entendida como um abrigo? Para quem?

Laiane, uma das participantes, começou a nos contar histórias que relacionavam-se ao tamarineiro. Primeiro, havia a constatação de um biólogo

que havia feito uma visita àquele lugar e ao analisar o tamarineiro estimou que a grande árvore, tinha mais de 500 anos. Bruno relatou também que seus avós haviam lhe transmitido histórias, que o tamarineiro era um lugar onde se amarravam os barcos que aportavam em Barra Grande, e que o mar, já tinha estado, há muitas décadas atrás, ali tão perto. De fato isto fora confirmado pela presença de conchas e marcas de amarrações sobre o tronco da árvore.

FIGURA 25 – Tamarineiro como um brigo FONTE: Arquivo particular do autor

Várias histórias foram contadas, e a mais supreendente delas, era que debaixo da árvore tinha acontecido um fato sobrenatural, o surgimento de um caixão iluminado, que fazia com que grande parte dos moradores tivesse receios de passar por ali muito tarde da noite. Os relatos eram confusos, mas suficientes para ativar várias histórias, que foram se desenrrolando e alimentando o imaginário de todos. Descemos da árvore e seguimos em trajeto até as ruínas.

Muitos eventos se sucederam neste percurso. Mantínhamos, no entanto, nossa atenção, sobretudo na percepção da diferença das habitações. Conversávamos sobre assuntos que o ambiente nos motivava em tempo real, solidarizando-nos com alguns posicionamentos individuais, distendendo as observações, e sobretudo desmanchando consensos. Essas observações convergiam nossos conhecimentos arquitetônicos e geográficos, que iam se

expandindo e criando junto aos participantes, considerações sobre a produção do espaço naquela localidade, a biografia do seus habitantes e ecologia que era praticada nestas relações.

Essas idéias acabaram por encaminhar abordagens ecológicas, e passamos então a conversar sobre a presença de abrigos naturais na paisagem. Começamos a perceber nas árvores e no solo, as moradas dos animais, fato que já havia sido ativado no tamarineiro. A diferenciação entre as matérias de que eram feitas, e as formalizações que eram desenvolvidas, foram relacionadas com a forma de produção dos abrigos e habitações humanas. Como os animais desenvolviam seus abrigos, onde obtinham as matérias para a construção destes? Eram habitações móveis ou fixas? Diferiam das construções que nós produzíamos? Por quê? (fig.26)

FIGURA 26 – Reconhecendo as habitações de Barra Grande FONTE: Arquivo particular do autor

A prática extendeu-se por 3 horas, aproximadamente, e percorremos atalhos e desvios, não usais em minha prática urbana. Os habitantes se sentiam às vezes incomodados porque havia trilhas que eram usadas, mas que foram interditadas por cercas, já que a mudança de alguns turistas para Barra Grande tinha alterado os caminhos e passagens. Os turistas não gostavam que outras pessoas atravessassem suas propriedade recém adquiridas e limitavam sua propriedade com cercas de arame farpado. Antes os trajetos eram livres, agora eram interditados em certos pontos, porque uma recomendação havia sido feita. Porém, nós atravessamos alguns destes lugares, porque decidimos,

coletivamente, que não haveria nenhum problema em transitar por ali, embora eu mesmo tenha me deparado com o meu receio em fazer isso, percebendo, então, o meu pré-conceito impregnado no corpo sobre a idéia de propriedade.

Várias dessas percepções foram se ampliando por considerações nossas e dos participantes, e chegando às ruínas da fortificação, cada participante discorreu sobre apontamentos históricos de que tinham ouvido falar, estimulados pelo encontro com os objetos e vestígios de construções que encontrávamos. A memória e a historiografia impregnadas em cada objeto desvelavam-se por nossa passagem e contribuíam para engajarmos questões ecológicas e as necessidades de preservação daquele sítio. Os participantes mesmo, criavam suas considerações, e nós intervíamos quando era necessário.