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4 ANÁLISE DE CORPUS

4.1 A obtenção do corpus

Para avaliar como a coesão referencial é empregada em textos escolares, foram utilizadas, como corpus, 45 redações, confeccionadas em sala de aula por alunos de 1º ano do Ensino Médio, de uma escola da rede privada de ensino da cidade de Araraquara/SP. A aplicação das redações foi realizada pelo próprio pesquisador, que incentivou os alunos a escreverem sem qualquer tipo de exigência ou meta a ser cumprido, o que explica a variação no tamanho dos textos.

A redação aplicada aos alunos consistia de uma única folha com a proposta do texto, que deveria ser escrito no verso do papel. A seguir, trazemos a apresentação da proposta:

Leia o texto a seguir:

Raquel e Juliana são duas meninas de sete anos, que se perderam de sua mãe enquanto faziam compras. As duas estão paradas em um dos cruzamentos mais movimentados da cidade, esperando o sinal abrir para que elas possam atravessar a rua pela faixa de pedestres. Porém, enquanto Raquel é mais corajosa, e quer passar com o sinal fechado, Juliana é medrosa, e prefere esperar os pais delas reaparecerem.

Sua missão é escrever uma história sobre as duas meninas tentando atravessar a rua. Lembre-se que Raquel quer atravessar de qualquer jeito, mas Juliana não quer sair do lugar.

Algumas dicas para escrever a história:

ƒ Comece contando como as duas meninas se perderam.

ƒ Descreva o cenário onde a história acontece (há muito movimento na rua? É dia ou noite? Qual o maior obstáculo para atravessar: os ônibus? Os carros? As pessoas?)

ƒ Faça as garotas brigarem, porque elas querem fazer coisas diferentes.

ƒ Para o final, escolha se as duas meninas atravessam a rua ou desistem de uma vez.

ƒ Não esqueça de dar um título para sua redação.

Sob a recomendação de contextualizar a narrativa, os alunos escreveram um parágrafo introdutório, que explicava como as duas garotas se perderam de seus pais. Desta forma, esperava-se que as duas personagens fossem tratadas como uma dupla; a princípio, não há, na proposta, nenhuma sugestão de outro objeto-de-discurso que possua as mesmas propriedades gramaticais (feminino e plural) e semânticas (duas meninas) do objeto “Raquel e Juliana”. Este é, portanto, o objeto-de-discurso sem nenhum outro que possa, eventualmente, “disputar” formas de correferência.

Por outro lado, o desenvolvimento da narrativa força o leitor a “desmembrar” o objeto-de- discurso “Raquel e Juliana”, ao pedir que as duas personagens entrem em conflito por terem opiniões diferentes sobre o que fazer. Com a separação, ficam constituídos dois objetos-de- discurso semelhantes, partindo do pressuposto de que tanto “Raquel” quanto “Juliana” compartilham das mesmas propriedades gramaticais (feminino e singular) e semânticas (duas meninas de mesma idade, sem nenhuma atribuição física que as diferencie).

A presença de dois objetos-de-discurso de mesmas propriedades acarreta o surgimento de um fenômeno conhecido por ambigüidade referencial. Marchuschi e Koch (1998) atentam para esta situação, definindo a ambigüidade referencial como o “caso de haver dois candidatos possíveis para uma anáfora pronominal, sendo ambos do mesmo gênero gramatical. O pronome, ao flexionar-se em gênero, pode retomar um dos dois candidatos. (p.185)”. Brown e Yule (1998) também se voltam para esta questão, explicitando o procedimento comum que envolve a manifestação de novas informações predicativas sobre os referenciadores, que assim permitem a correta identificação por parte do ouvinte:

[…] o falante pode estruturar sua mensagem de tal forma que alguma “nova” informação seja aderida a um elemento “dado” (por exemplo, um pronome), procurando fornecer ao ouvinte um procedimento de interpretação de “dado/novo”. Entretanto, o ouvinte também pode ter que reverter o procedimento e usar a “nova” informação para decidir o que o referente “dado” era. 31 (p.218)

Para ilustrar o argumento dos autores, cabe o uso do par de sentenças a seguir, em que a predicação torna claro quem é o referente da pró-forma “ela”:

(1) Quando minha esposa chegou, a casa estava em chamas. Ela havia sido atingida por um raio durante a tempestade.

(2) Quando minha esposa chegou, a casa estava em chamas. Ela imediatamente ligou para os bombeiros, que não demoraram a chegar.

31 … the speaker may structure his message in such a way that some “new” information in attached to a “given” element (i.e. a pronoun), intending to provide the hearer with a ‘given/new’ interpretation procedure. However, the hearer may also have to reverse that procedure and use the ‘new’ information to decide what the ‘given’ referent must have been.

Neste trabalho, chamaremos de objetos-de-discurso concorrentes aqueles objetos-de- discurso que, dentro de um único texto, podem ser recuperados pela mesma expressão lingüística, seja gramatical, nos casos de anáfora pronominal, ou semântica, via item lexical. Este conceito será essencial para a descrição e análise dos dados, já que, no corpus, podemos antever a constituição de três cadeias referenciais relativas aos personagens: (1) sobre a dupla “Raquel e Juliana”, (2) sobre “Raquel” e (3) sobre “Juliana”, sendo, as duas últimas, formadas por objetos- de-discurso concorrentes. O aparecimento de outras cadeias referenciais não está descartado e será mencionado se necessário.

A opção por trabalhar com esta proposta de redação surge, conforme dito anteriormente, da intenção de averiguar como as situações extratextuais influenciam a construção do texto. Considerando a presença de dois objetos-de-discurso de natureza praticamente idêntica dentro de um texto e, além disso, que devem interagir e ser constantemente foco de atenção por parte do leitor, podemos afirmar que se trata de uma situação enunciativa delicada, isto é, que requer atenção, por parte do falante, ao construir as cadeias referenciais de modo a promover a identificação e a manutenção de seus personagens com eficácia. Em um primeiro momento, podemos nos perguntar se haverá problemas do ponto de vista textual, isto é, se os alunos serão capazes de estabelecer as cadeias referenciais sem qualquer tipo de erro no que diz respeito à correta identificação dos referentes. Se isto se provar verdadeiro, poderemos também buscar entender como a preocupação enunciativa está presente, e se também há algum tipo de intenção argumentativa.