4 DA IMPORTAÇÃO PROMOVIDA POR NÃO CONTRIBUINTE
4.1 A não-cumulatividade como condição de validade para a cobrança do IPI:
4.1.2 Oneração do contribuinte de direito
Não obstante tenha o legislador federal determinado como contribuinte, para a mais recorrente das hipóteses de incidência do imposto (art. 46, II, CTN), o industrial, ou seja, o
ente produtivo, o IPI foi idealizado, dada sua indissociável natureza não-cumulativa, como tributo que visa a onerar o consumo; atingindo, em verdade, o contribuinte de fato (consumidor final), o qual arca, ao encerramento da cadeia, com o real ônus financeiro.
Mera análise perfunctória da cadeia de produção ligada ao imposto pode, facilmente, produzir perigosa confusão; permitindo, porquanto realizam o recolhimento do quantum
debeatur os produtores, erroneamente chegar-se à conclusão de que a finalidade do IPI é
atingir a produção.
Certo é, em verdade, que na cadeia produtiva de bens industrializados os produtores, detentores dos meios de produção, recolhem o montante do tributo aos cofres públicos, calculado a cada nova operação. O gravame, o real ônus decorrente da exação, uma vez embutido o IPI no preço da mercadoria à cada operação, no entanto, apenas é sentido e pago pelo consumidor final ao encerramento de seguidos negócios jurídicos, nos termos em que já explanado em capítulo anterior.
Tal situação, deve-se relatar novamente, é viabilizada pela técnica não-cumulativa, a qual instrumentaliza, por meio do sistema de creditamento, a neutralidade, operação a operação, no que diz respeito ao real custo do IPI. Na prática, cada produtor intermediário,
sob visão primordialmente financeira, promove, “livre do tributo”, o qual será suportado pelo
adquirente final, a agregação de valor à mercadoria; evitando inflação ficta dos preços e prejuízos severos ao mercado. Essa medida visa a permitir que o produto circule diversas vezes antes de atingir o fim da cadeia, mantendo-se, ainda, com preço competitivo.
Em resumo, “a repercussão jurídica é nota típica da não-cumulatividade. A neutralidade, enquanto efeito da não-cumulatividade, impede a oneração do contribuinte de direito, criando mecanismos para que este traslade o imposto para o consumidor final”51.
A não-cumulatividade surge, assim, como ferramenta apta a corrigir (ao menos em parte) séria distorção da técnica tributária tão comum aos tributos ligados a ciclos plurifásicos de produção e circulação de bens e serviços: o repasse dos custos tributários no preço do
produto, o qual promove a cumulação.
“A não-cumulatividade faz com que, do ponto de vista jurídico, o tributo perpasse todas as etapas em que é exigido e, ao cabo, recaia sobre o adquirente final de bens e serviços”52.
51
MOREIRA, André Mendes. A não-cumulatividade dos tributos. 1.ed. São Paulo: Noeses, 2010. p. 105.
A transferência do ônus tributário, a cada operação, para o seguinte da cadeia é característica ínsita, vale frisar, da tributação indireta; esta tão intimamente ligada aos tributos não-cumulativos.
Acerca dos tributos indiretos e sua profunda ligação com o princípio da não- cumulatividade, André Mendes Moreira estabelece as seguintes importantes considerações:
[...] a doutrina nacional exige, para caracterização de um tributo indireto, a repercussão jurídica. É dizer: será indireto o tributo cuja lei tributária instituidora possua como objetivo livrar o pagante da exação do peso econômico do tributo, que deverá ser repassado a terceiro.
[...]
A partir do exposto é interessante notar dois pontos merecedores de destaque. O primeiro é que a não-cumulatividade tributária não é requisito essencial para a caracterização do tributo indireto. É, decerto, um mecanismo que, por ter como escopo não onerar o contribuinte de jure, provavelmente estará presente em boa parte dos tributos indiretos (como ocorre no ICMS e no IPI). Mas, frisa-se, não é imprescindível a estes. [...]
A mesma conclusão se aplica ao instituto da plurifasia. Tributo indireto não é necessariamente plurifásico.
[...]
Para logo, cumpre anotar que, a nosso sentir, a não-cumulatividade está indissociavelmente imbricada com o conceito de tributo indireto. [...]53 (grifo do original)
Depreende-se, desse modo, que tributo não-cumulativo, o qual, por imposição lógica, como já alertado, sempre será plurifásico, nem sempre será indireto. A maior parcela dos tributos não-cumulativos, no entanto, em verdade, dado o encadeamento de operações tributadas (plurifasia) e a oneração do contribuinte de fato por meio da transferência do gravame tributário, concretizar-se-á como tributo indireto. Este é o caso do imposto sobre produtos industrializados, seja qual for sua hipótese de incidência.
Os tributos ligados à produção e circulação de bens e serviços consubstanciam-se, assim, normalmente, como indiretos, pois “nestes ambas as partes [produtor e consumidor intermediário] estão ligadas por um negócio jurídico que, a seu turno, é pressuposto para a ocorrência de outro negócio em torno da mesma mercadoria ou serviço”54.
Possibilita-se, portanto, que cada produtor envolvido, considerando que exerça a hipótese de incidência tributária, transmita ao próximo da cadeia o valor do quantum debeatur do IPI recolhido na operação anterior, cumulando-o e alimentando um ciclo vicioso que finda
53
MOREIRA, André Mendes. A não-cumulatividade dos tributos. 1.ed. São Paulo: Noeses, 2010. p. 50-55
apenas quando da aquisição do produto industrializado pelo consumidor final, o qual não exercerá novo negócio jurídico e assumirá o gravame da cadeia completa.
A não-cumulatividade exerce, relativamente aos tributos indiretos, função importantíssima, evitando a cumulação de tributo, o aumento ficto dos preços e a diminuição da circulação das mercadorias. Demonstra-se esta técnica indispensável, pois, ao perfeito equilíbrio e saúde da economia e do mercado nacionais.
Todo o discurso até aqui engendrado serve a demonstrar a clara situação de homeostase promovida pela não-cumulatividade nas cadeias produtivas plurifásicas, considerando-se, principalmente, a nítida relação do princípio com os tributos indiretos, viabilizando a neutralidade tributária indispensável à manutenção dos preços competitivos.
A relevância da não-cumulatividade, seja como técnica ou princípio, é indiscutível, porquanto mínima alteração no supracitado frágil equilíbrio provavelmente provocaria severos prejuízos à economia e à sociedade. Nesse sentido, José Eduardo Soares de Melo e Luiz Francisco Lippo alertam que
[...] sua supressão abalaria de maneira profunda a estrutura econômica sobre a qual foi organizado o Estado. Constituindo-se num sistema operacional destinado a minimizar o impacto do tributo sobre os preços dos bens e serviços de transportes e de comunicações, a sua eliminação os tornariam artificialmente mais onerosos. Caso fosse suprimida [a não-cumulatividade], a cumulatividade tributária geraria um custo artificial indesejável aos preços dos produtos e serviços comercializados. Esses preços estariam totalmente desvinculados da realidade da produção e da comercialização. Isto, evidentemente, oneraria sobremaneira o custo de vida da população. De outra parte, encareceria também o processo produtivo e comercial, reduzindo os investimentos na produção e na comercialização de produtos e serviços, em face do aumento do custos ocasionado por esse artificialismo tributário oriundo da cumulatividade.55
Não é sem propósito, conclui-se, que se preocupou o constituinte originário em afirmar o princípio da não-cumulatividade, estabelecendo a obrigatoriedade de aplicação da
técnica para certos tributos.
No caso do IPI, caracterizando-se este como tributo notoriamente indireto, inclusive na importação, vale reafirmar o essencial papel exercido pelo princípio da não- cumulatividade, indispensável que é como condição de validade à incidência do imposto, não apenas em razão das claras funções econômica e social exercidas, mas, também, e principalmente, em razão da obrigatoriedade de sua aplicação emanar da Constituição Federal, ligando-se umbilicalmente aos princípios da isonomia e da capacidade contributiva.
55
MELO, José Eduardo Soares de; LIPPO, Luiz Francisco. A não-cumulatividade tributária: (ICMS, IPI,
Nos termos em que já afirmado no presente trabalho, a Constituição Federal de 1988, em seu art. 153, §3º, II, estabelece que o IPI “será não-cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação com o montante cobrado nas [operações] anteriores” (grifo nosso).
Infere-se do texto constitucional, de logo, a preocupação do legislador em deixar clara a imperiosa subordinação da incidência do IPI ao princípio da não-cumulatividade e, bem assim, à cada uma de suas propriedades indissociáveis; informando, ainda, sua fórmula de operacionalização na prática, perfazendo-se no abatimento de créditos oriundos de recolhimentos anteriores.
Ocorre que, indo de encontro à diretriz acima exposta, o legislador ordinário, alheio às especificidades da importação realizada por não contribuinte do IPI, determinou a obrigatoriedade de pagamento do imposto em toda entrada de produto estrangeiro no território nacional, negando vigência ao princípio da não-cumulatividade naquele específico caso concreto.
Na hipótese de importação promovida por pessoa (física ou jurídica) não industrial, foco principal do presente trabalho, o contribuinte, que tem relação pessoal e direta com a situação que constitui o fato gerador da exação tributária, ou seja, aquele que promove a entrada de produto industrializado no País com o consequente desembaraço aduaneiro (art. 46, I, CTN), não detém o controle dos meios de produção, restando, pois, impedida a ocorrência de nova operação com produtos industrializados a continuar o ciclo fabril e inexistente a oportunidade de abater os créditos oriundos da importação; fatos que certificam a mitigação à não-cumulatividade.
A supracitada conjuntura fática, no que diz respeito à técnica não-cumulativa, encerra situação ímpar, porquanto o sujeito passivo (importador) credita-se de imposto por ele mesmo recolhido quando do desembaraço aduaneiro. Diferencia-se, assim, das situações corriqueiras, nas quais a operação ensejadora do crédito é realizada por contribuinte diferente daquele que se apropria deste. Tal condição sui generis promove, no caso de importação por não contribuinte de IPI, circunstância deveras perigosa, a seguir explicada.
O IPI, conforme já informado, é tributo que, em decorrência da transferibilidade do ônus financeiro e da neutralidade fiscal operada pelo sistema crédito-débito, deve sempre e
apenas onerar o contribuinte de fato (consumidor), e não o contribuinte de direito.
Na importação realizada por não contribuinte, no entanto, considerando-se que inexistirá um ciclo produtivo a seguir várias operações com produtos industrializados,
demonstrar-se-ão inviáveis a transferência do ônus tributário e o abatimento dos eventuais créditos de IPI-importação (e assim, também, a neutralidade). Em consequência, face à violação de seus pressupostos básicos, concretiza-se notoriamente inviabilizada a não- cumulatividade.
André Mendes Moreira, analisando profundamente a questão, esclarece que
a importação de mercadorias é uma situação atípica na qual há a concentração, em uma só pessoa (natural ou jurídica), das figuras do contribuinte de jure e de facto. Afinal, sendo inviável exigir-se que o exportador situado em território estrangeiro recolha ICMS e IPI aos cofres brasileiros, tal cobrança é feita do importador (que paga o tributo que seria devido pelo exportador). Caso o importador não seja contribuinte, ele reunirá as características de contribuinte de jure – por “substituição” do exportador situado além-mar – e de facto, suportando juridicamente o ônus econômico dos impostos não-cumulativos.56 (grifo do original)
Haverá, logo, confusão entre contribuinte de direito e contribuinte de fato em tal situação específica de importação promovida por não contribuinte, pois o importador, que pratica o fato gerador do IPI na importação (desembaraço aduaneiro), é, também, consumidor final do produto importado, assumindo por completo o ônus tributário.
O imposto sobre produtos industrializados, desse modo, que, por sua própria natureza não-cumulativa, deveria recair apenas sobre o contribuinte de fato, finda por onerar, na prática, também o contribuinte de jure, malgrado ambos consubstanciem-se na mesma pessoa. Em outras palavras, inverte-se, sob certo aspecto, o papel constitucional ordinário do método de apuração não-cumulativo do IPI, o qual deveria onerar apenas, reitere-se, o contribuinte de fato.
Demonstrada a especificidade da situação, a qual impede a eficácia do princípio da não-cumulatividade na importação, vale asseverar, categoricamente, que “a finalidade (Telos) de uma proposição constitucional e sua nítida vontade normativa não devem ser sacrificadas em virtude de uma mudança da situação”57; sob pena de flexibilização de sua força normativa.
Se o fim da proposição normativa não pode ser realizado em determinada situação específica (importação por não contribuinte), caracterizado está um problema de lege ferenda, a demandar, face à inércia do legislativo, a atuação do poder judiciário no caso concreto.
56
MOREIRA, André Mendes. A não-cumulatividade dos tributos. 1. ed. São Paulo: Noeses, 2010. p. 188.
57
HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição (Die normative kraft der verfassung). Tradução de
Tal quadro, frise-se, é insustentável, pois, existindo confusão entre contribuinte de fato e de direito, mitiga-se seriamente o princípio da não-cumulatividade na forma como preconizada sua natureza constitucional, conforme explica Leandro Paulsen:
[...] o contribuinte de direito é o industrial [...] e não o consumidor, sendo que só aquele é que pode valer-se do mecanismo da não-cumulatividade, inerente à cobrança de tal imposto por exigência constitucional. Como o importador pessoa
física não é contribuinte [do IPI], acaba suportando a carga do tributo em imposição direta incompatível com o critério da não-cumulatividade.58 (grifo nosso)
Somente o industrial, contribuinte do IPI, depreende-se, possui condição de valer-se propriamente da técnica não-cumulativa, vez que pratica constantemente a hipótese de incidência tributária em meio a ciclos produtivos, adquirindo e abatendo créditos, possibilidade não extensível ao consumidor.
“A Constituição de 1988, como se percebe pela singela leitura dos arts. 153, §3º, [II], e 155, §2º, I, não autoriza que o ICMS [e, assim, também o IPI,] onere o contribuinte de
iure”59 (grifo nosso).
Considerando, pois, que a não-cumulatividade possui como característica indissociável a transferência do ônus financeiro ao contribuinte de fato, desonerando o contribuinte de direito, e a compensação do tributo devido por meio do sistema de abatimento, é forçoso novamente concluir que, na importação promovida por não contribuinte do IPI, uma vez confundindo-se na mesma pessoa contribuinte de fato e de direito, face à inocorrência de extenso ciclo de operações com produtos industrializados, ocorrerá inconstitucional oneração do contribuinte de jure, o qual arcará com todo o custo do tributo, impossibilitado que está de repassar tal ônus e, ainda, de se utilizar do sistema de compensação.
4.1.3 Impossibilidade de abater em operações futuras o crédito oriundo do imposto