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1.4 CIÊNCIAS LEXICAIS: LEXICOLOGIA, LEXICOGRAFIA E TERMINOLOGIA

1.4.1 Onomástica

Como parte integrante da Lexicologia, a Onomástica é considerada uma ciência da linguagem com bases etimológicas fundamentadas no vocábulo grego onoma (nome). Sua origem no Ocidente está ligada às tradições gramaticais greco-latinas, isto é, às primeiras tentativas de se traçar uma distinção entre nome comum e nome próprio, as quais foram iniciadas por Dionísio de Trácia, primeiro gramático grego, como nos mostra Ramos et al, (2010, p. 87).

Como campo de estudos que se ocupa dos nomes próprios, a Onomástica possui formalmente duas áreas de estudo: a Toponímia, que estuda os nomes próprios de lugar, e a Antroponímia, que estuda os nomes próprios individuais, os nomes parentais ou sobrenomes e as alcunhas ou apelidos. Ambas são, reconhecidamente, importantes formas de investigação não só sócio-histórica, mas também linguístico-cultural, uma vez que “se constituem de elementos linguísticos que conservam antigos estágios denominativos” (SEABRA, 2006, p.

1953).

Como ciência vinculada às chamadas ciências do léxico, a Onomástica não opera isoladamente, mas dentro de um sistema de signos compartilhados por uma comunidade linguística, conhecido como língua, como podemos observar na Figura 3. Essa figura nos

permite ainda dizer, em conformidade com Dick (1999, p. 145), que apesar de se constituírem em campos semânticos de dimensões variáveis, a saber, pessoa e lugar, o ponto de interseção entre esses dois subsistemas se dá justamente no onoma, lugar em que a palavra deixa o seu uso pleno na língua e migra para o uso onomástico, revestindo-se de caráter denominativo.

Desta maneira, a palavra passa a ser referenciada como topônimo ou antropônimo, seguindo direções opostas, mas que se complementam.

FIGURA 3 – Onomástica.

T = Toponímia A = Antroponímia

Região hachurada – Ponto de interseção entre T e A Fonte: (DICK, 1999, p. 145).

E apesar de integrar o conjunto maior – língua –, Seabra (2006) nos mostra que à Onomástica interessa apenas o nome que se difere da palavra, pois aquele pressupõe

(...) um nomeador e um nomeado, uma representação externa à qual ele se une: “o nomeador (sujeito, emissor ou enunciador), o objeto nomeado (o espaço e suas subdivisões conceptuais, que incorpora a função referencial, sobre o que recairá a ação de nomear), o receptor (ou o enunciatário, que recebe os efeitos da nomeação, na qualidade de sujeito passivo)”. Nessa transmigração a palavra se desloca do sistema lexical para o sistema onomástico, transcodificando-se, ou seja, do plano onomasiológico da língua (da designação) se integra ao plano semasiológico (da significação). Na construção do processo denominativo, a palavra incorpora o conceito dessa operação mental, cristalizando o nome e, assim, possibilitando a sua transmissão às gerações seguintes (SEABRA, 2006, p. 1954).

Isso quer dizer que os topônimos e os antropônimos são muito mais que uma lista de nomes. Eles vão além da expressão linguística a que se referem, pois refletem um modo de viver e os valores de uma comunidade. E mesmo que não saibamos o seu significado, conseguimos deles fazer uso sem que a comunicação fique prejudicada, uma vez que a função referencial na Onomástica é a que mais se destaca. Desta forma, não há como falar em Antroponímia e Toponímia sem mencionar a função primária desses signos que é a referência.

O termo referência perpassa por uma grande quantidade de questões relacionadas ao significado. Na representação triádica proposta por Ogden & Richards (1923) e Ullmann (1957) reaplicado por Lyons (1977, p. 85), temos que, em um enunciado/discurso, o nome, o sentido e o referente estariam ligados, como podemos observar pela linha contínua que os conecta. Ou seja, a identificação do referente passa, necessariamente, pelo sentido do nome.

FIGURA 4: Relação triádica6.

Os estudos conduzidos por Liberato nos mostram (1997) que, em se tratando de nomes próprios e de nomes de lugares, a identificação destes pode não passar pelo sentido.

Em outras palavras, somos levados, diretamente, para o referente, o que resulta na seguinte representação:

6 Entre os autores, há discordância quanto aos termos utilizados e quanto às definições para cada termo. No entanto, não é objeto desta pesquisa investigar essa questão.

Figura 5: Referência e Onomástica.

Neste caso, os nomes de lugares (os topônimos) ou os nomes de pessoas (os antropônimos) são os próprios referentes e, ao designarem lugares e indivíduos de maneira única, são considerados designadores rígidos (OLIVEIRA, 1996).

Por fim, esta relação direta entre nome e referente demonstra, mesmo que indiretamente, a relevância do estudo científico no âmbito da Antroponímia e da Toponímia, pois, partindo da investigação de fatos linguísticos e socioculturais, conseguimos trazer luz ao referente. Estes instrumentos onomásticos, Antroponímia e Toponímia, configuram-se, portanto, como caminhos importantes e possíveis de recuperação do significado dos nomes, em especial este último que é objeto análise desta pesquisa.

1.4.1.1TOPONÍMIA

Ramo da Onomástica, como vimos anteriormente, a Toponímia cujo nome vem do grego topos “lugar” e onoma “nome” foi definida por Dick (1990c, p. 204) como “disciplina científica que enfoca a designação dos lugares – acidentes físicos e culturais”.

Se anteriormente seu estudo se restringia a um rol de vocábulos, em sua maioria tupi seguidos de uma provável etimologia, hoje a Toponímia deve ser considerada como uma disciplina completa, pois apresenta objeto de estudo – o topônimo – e métodos de pesquisa bem definidos. Entre as atividades que predominam nesse tipo de estudo, salientamos: a busca pela etimologia, o entendimento do caráter semântico do nome e de suas transformações linguísticas, fonético-fonológicas e morfológicas, a elaboração de glossários etc. .

Para tanto, a Toponímia apoia-se em outras ciências, como a Geografia, a História, a Linguística, a Antropologia, em busca de materiais que auxiliem na pesquisa dos designativos geográficos, o que coloca em destaque o seu caráter imanentemente interdisciplinar. E é justamente esta característica que nos permite, a partir de uma análise criteriosa, comparar e selecionar fatos, conhecer a história social e a cultura de uma determinada região.

A Toponímia, portanto, carrega em si uma função precípua e inerente: a de registrar os momentos vividos pelas antigas populações, mais especificamente, acerca de sua formação étnica, de processos migratórios, do sistema de povoamento do lugar. Em outras palavras, ela é capaz de registrar e conservar, concomitantemente, as tradições e as características mais evidentes de um povo, para dar conhecimento às gerações futuras de um presente que, muitas vezes, não existe mais.

(...) a Toponímia reserva-se o direito de se apresentar também como a crônica de uma comunidade, gravando o presente para o conhecimento das gerações futuras.

Assim é que os elementos mais diferençadores da mentalidade do homem, em sua época e em seu tempo, em face das condições ambientais de vida, que condicionam a sua percepção do mundo, estão representados nos nomes de lugares, senão todos, pelo menos os mais flagrantes (DICK, 1990c, p. 119).

E tudo isso só é possível porque o topônimo está onerado de uma profunda carga significativa (DICK, 1990c), a qual possibilitará ao pesquisador o resgate linguístico, histórico, econômico e social do nome ao longo do caminho percorrido pela pesquisa toponímica.

Logo a Toponímia é, antes de tudo, “um imenso complexo línguo-cultural”, devendo ser considerada, em sua feição intrínseca, “como um fato do sistema das línguas humanas”

(DICK, op. cit., p. 16).

1.4.1.2AESTRUTURA DO TOPÔNIMO

Entendido como uma forma lexical, o topônimo participa das mesmas regras de formação e composição da palavra lexical. Possui como função semântica mais que a responsabilidade de identificação de lugares na geografia a partir de um nome, mas de indicar com precisão características físicas ou antropoculturais presentes na denominação que acabam por particularizá-la.

O topônimo é, portanto, resultado de uma reflexão e de uma escolha por parte do denominador no eixo paradigmático da linguagem em que aspectos culturais de uma região em suas diversas manifestações de vida são privilegiados.

O topônimo não é algo estranho ou alheio ao contexto histórico-político da comunidade. Ao contrário, reflete, de perto, a própria substância ontológica do social, onerado que está de uma profunda carga significativa. Um solo agreste, um clima árido, uma vegetação pobre ou abundante, uma escassez hidrográfica, a peculiar atividade regional ou, por outro lado, a relativa segurança econômica e as tendências artístico-religiosas predominantes na localidade, tendem a configurar, com precisão, o sistema toponímico em espécie, aberto a todas as feições culturais (DICK, 1990c, p. 48).

Ocupando-se tradicionalmente da designação do nome próprio de lugar, o topônimo, em sua estrutura nomenclatural, liga-se ao acidente geográfico que identifica da seguinte maneira:

(...) um, que se convencionou denominar termo ou elemento genérico, relativo à entidade geográfica que irá receber a denominação, e o outro, o elemento ou termo específico, ou topônimo propriamente dito, que particularizará a noção espacial, identificando-a e singularizando-a dentre outras semelhantes. Atuam ambos no sintagma toponímico, de forma justaposta (rio das Amazonas) ou aglutinada (Parauna, “rio negro”), conforme, portanto, a natureza da língua que os inscreve (DICK, 1990c, p.10). [Grifo nosso.]

Esta união do nome de um acidente geográfico, seja ele físico (córrego, morro, serra, cachoeira etc.) ou humano (cidade, vila, fazenda, localidade etc.), a um nome específico, ou seja, ao topônimo propriamente dito, configura o sintagma toponímico, o qual pode aparecer de forma justaposta ou aglutinada conforme a natureza da língua.

Sendo assim, a estrutura do topônimo, no que se refere à sua composição morfológica, pode apresentar três possibilidades de classificação de acordo com Dick (op.cit., p.13-14):

Topônimo ou elemento específico simples – definido por um só formante (seja substantivo ou adjetivo, de preferência), podendo, contudo, se apresentar também acompanhado de sufixações (diminutivas, aumentativas ou de outras procedências linguísticas). Exemplo: Caba.

Topônimo composto ou elemento específico composto – é aquele que se apresenta com mais de um formador, de origens diversas entre si do ponto de vista do conteúdo, gerando, por isso, às vezes, formações inusitadas que apenas a história local poderá elucidar.

Como exemplo, citamos Buriti Mirim.

Topônimo híbrido ou elemento específico híbrido – é aquele designativo que recebe, em sua configuração, elementos linguísticos de diferentes procedências (portuguesa, indígena, africana etc.). As formações portuguesa + indígena e indígena + portuguesa são bastante produtivas no Brasil e em Minas Gerais respectivamente. Exemplo: Cipó de Chumbo.

1.4.1.3FUNÇÕES DO TOPÔNIMO

Antes de falarmos propriamente das funções do topônimo, faz-se mister retomar o conceito de signo linguístico. Segundo Costa (2012), a filosofia desenvolvida na Grécia antiga marca no Ocidente o debate sobre as relações entre linguagem e mundo. A grande questão era: os recursos linguísticos por meio dos quais as pessoas descrevem o mundo são arbitrários ou eles sofrem algum tipo de motivação natural?

Essa dúvida dividiu os gregos na antiguidade clássica em convencionalista e naturalista: o primeiro grupo defendia que tudo na língua era convencional, resultado de costume e tradição, enquanto o segundo grupo acreditava que todas as palavras estavam de fato relacionadas por natureza às coisas que elas significavam.

Saussure, no século XX, chega à conclusão de que o signo linguístico é arbitrário, ou seja, não existe uma relação entre a sua imagem acústica (significante) e o sentido a que ela nos remete (significado). Em outras palavras, o signo linguístico não é motivado, mas uma convenção, já que resulta de um acordo implícito firmado entre os membros de uma determinada comunidade.

Em se tratando dos signos linguísticos em função toponímica, é justamente o seu emprego que os torna especiais, ou seja, “a função significativa deles é que se diferencia quando a Toponímia os transforma em objeto de estudo.” (DICK, 1990c, p. 16).

Por essa razão, não devemos considerar a relação significante/significado apresentada por Saussure, pois não há na Toponímia a possibilidade de existência de signos imotivados.

Muito embora seja o topônimo, em sua estrutura, uma forma de língua, ou um significante animado por uma substância de conteúdo, da mesma maneira que todo e qualquer outro elemento do código em questão, a funcionalidade de seu emprego aqui adquire uma dimensão maior, marcando-o duplamente: o que era arbitrário, em termo de língua, transforma-se no ato do batismo de um lugar, em essencialmente motivado, não sendo exagero afirmar ser essa uma das principais características do topônimo (DICK, 1990c, p. 18). [Grifo nosso.]

O duplo aspecto da motivação toponímica transparece, assim, de duas maneiras:

primeiro, na intencionalidade que animou o denominador a agir, subjetiva ou objetivamente, levando-o a eleger num rol de possibilidades um determinado nome para este ou aquele acidente geográfico e, em um segundo momento, na própria origem semântica do nome, no significado que ele revela, de modo transparente ou opaco, e que pode envolver as mais variadas procedências.

Em ambas perspectivas, o pesquisador se depara com dificuldades inerentes à averiguação dos nomes. Contudo as circunstâncias socioculturais das quais o denominador é parte integrante podem facilitar o acesso aos motivos que o condicionaram a agir num dado momento (DICK, 1990a). Desta forma, a natureza semântica do seu significado é desvendada, e o signo linguístico em situação toponímica cumpre mais do que apenas a função de identificar lugares, mas de indicar com precisão aspectos físicos ou antropoculturais contidos no nome.

Outra importante função que cumpre o topônimo, segundo Dick (1990c), é a de atuar como um verdadeiro fóssil linguístico7, ou seja, mesmo quando ocorre o desaparecimento de suas causas motivadoras, o nome permanece e se torna uma importante fonte de conhecimento não apenas da língua falada, mas também de ocorrências geográficas, históricas e sociais vivenciadas em caráter definitivo ou temporário. Relativamente ao Brasil, essa função adquire considerável valor, pois pode ajudar na reconstituição de falares de povos autóctones já extintos.

Para finalizar, vale ressaltar que essa função cristalizadora do significado inerente ao topônimo só acontece porque: “(...) o nome de lugar exerce, concomitantemente, o papel de uma verdadeira crônica, em que os fatos atuais se projetam no futuro, através da inscrição onomástica, possibilitando, dessa forma, a sua análise posterior” (DICK, 1990c, p. 22). Em outras palavras, diferentemente da unidade lexical que no âmbito do vocabulário comum depende do seu uso frequente e regular para se manter viva, o topônimo não fica à mercê do uso da unidade lexical que lhe deu origem na língua, pois uma vez inscrustado em um sistema toponomástico, o nome de lugar perpetua-se e projeta-se no tempo, adquirindo autonomia, conforme nos esclarece Isquerdo (2012).

7 Expressão tomada ao geógrafo francês Jean Brunhes, que o considerava um “fóssil da geografia humana”

(DICK, 1990b, p. 20).

No documento A presença indígena na toponímia mineira (páginas 38-46)