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A OPÇÃO BRASILEIRA PELA REGRA PROCESSUAL DO NÃO-PRAZO

3 O DIREITO FUNDAMENTAL À DURAÇÃO RAZOÁVEL DA INVESTIGAÇÃO

3.6 A OPÇÃO BRASILEIRA PELA REGRA PROCESSUAL DO NÃO-PRAZO

O sistema penal brasileiro adota a regra de prazos abertos quanto à investigação

criminal278, apenas fixando o interstício de 10 (dez) ou 30 (trinta) dias para ultimação do

inquérito policial, em caso de indiciado preso ou solto, respectivamente279, salvo disposição

diversa na legislação especial280, além de prazos especialmente fixados para a realização de

atos isolados281.

Não obstante, é cabível pedido de dilação de prazo, mas somente na hipótese de indiciado solto: “Quando o fato for de difícil elucidação, e o indiciado estiver solto, a autoridade poderá requerer ao juiz a devolução dos autos, para ulteriores diligências, que serão realizadas no prazo marcado pelo juiz (art. 10, § 3º, do CPP).

Trata-se de uma solução excepcional, prevista apenas para casos de “difícil elucidação”, o que não parece ocorrer em delitos triviais, como lesão corporal, furto, dano, violação de domicílio etc. No entanto, por mau vezo, autoridades policiais reiteram pedidos nesse sentido, mesmo quando o objeto sob apuração é de menor complexidade, com a complacência do Ministério Público e do juiz.

Ocorre que, por carência de pessoal, falta de recursos materiais e em razão do grande volume de expedientes, as diligências não se realizam no prazo regular e muito menos no adicional, dando azo a improfícuos e sucessivos pedidos de dilação. Para piorar, a lei não informa qual deve esse novo interstício, cabendo ao juiz fixá-lo conforme o seu prudente arbítrio. Na praxe, tem-se entendido que é de, no máximo, 30 (trinta) dias, ao argumento de que a dilação não pode ser por tempo superior ao prazo original.

278 Diferentemente, os sistemas italiano e português adotam o critério de prazos fechados, como relata CHOUKE

(op. cit., p. 136). Apenas excepcionalmente o CPP se ocupa do tema, porém de forma imprecisa e vaga. Exemplos: Art. 791: “Em todos os juízes e tribunais do crime, além das audiências e sessões ordinárias, haverá as extraordinárias, de acordo com as necessidades do rápido andamento dos feitos”; Art. 798: “Todos os prazos correrão em cartório e serão contínuos e peremptórios, não se interrompendo por férias, domingo ou feriado”.

279 CPP, art. 10: “O inquérito policial deverá terminar no prazo de 10 (dez) dias, se o indiciado tiver sido preso

em flagrante, ou estiver preso preventivamente, contado o prazo, nesta hipótese, a partir do dia em que se executar a ordem de prisão, ou no prazo de 30 (trinta) dias, quando estiver solto, mediante fiança ou sem ela”. Nos inquéritos atribuídos à Polícia Federal, o prazo é de 15 (quinze) dias (indiciado preso), podendo ser prorrogado por mais 15 (art. 66 da Lei n. 5.010/66). Nos inquéritos militares, o prazo é de 20 (vinte) dias (indiciado preso) e 40 (quarenta) dias (indiciado solto), podendo, neste último caso, ser prorrogado por mais 20 dias, na forma do art. 20 do Decreto-lei n. 1.002/69.

280 Nos crimes contra a economia popular o prazo é de 10 (dez) dias, para indiciado solto ou preso (art. 10, § 1º,

da Lei n. 1.521/51); nos crimes da Lei de Drogas o prazo é de 30 (trinta) dias para indiciado preso e de 90 (noventa) dias para indiciado solto (art. 51 da Lei n. 11.343/06); A prisão temporária, judicialmente decretada quando imprescindível para as investigações do inquérito policial, terá o prazo de 5 (cinco) dias, prorrogável por igual período em caso de extrema e comprovada necessidade (art. 2º da Lei n. 7.960/89).

281

Diz a lei que a diligência policial dirigida à interceptação telefônica não poderá exceder o prazo de 15 (quinze) dias, renovável por igual tempo uma vez comprovada a indispensabilidade do meio de prova (art. 5º da Lei n. 9.296/96).

No Estado de São Paulo, porém, o Ministério Público tem concordado e o Judiciário tem concedido prazo complementar de 60 (sessenta) dias para a conclusão do inquérito policial, posto que, como o procedimento raramente é concluído no prazo adicional de 30 (trinta) dias, fixa-se desde logo o dobro de dias, simplesmente para evitar idas e vindas.

O fato é que não há limitação quanto aos pedidos de prorrogação, não sendo incomum, como aponta Hidejalma Muccio, mais de 12 (doze) pedidos em um só inquérito

policial282, o que explica o sepultamento de muitos expedientes por obra da prescrição.

Tirante o prazo-regra do inquérito policial e de alguns atos persecutórios isolados, no nosso modelo nada há, em termos legais, sobre limitação global da investigação criminal. No atual estágio, cabe ao bom senso, fundado essencialmente na discricionariedade da autoridade policial e dos órgãos de controle, a definição do que é razoável na persecução policial, a partir de parâmetros diversos, notadamente o número de investigados, a natureza do crime, a complexidade probatória, o comportamento do indiciado e dos agentes públicos envolvidos no caso.

Naturalmente, circunstâncias como concurso de pessoas, suspeito foragido, dificuldade de acesso ao local do delito, testemunhas que se negam a colaborar com o trabalho policial, enfim, dificultam a ação investigativa e exigem maior dispêndio de tempo.

Não sendo o caso, tendo como parâmetro prudencial a regra do art. 10 do CPP, revela-se abusivo, por exemplo, o prazo de 6 (seis) meses para apuração de um simples crime de injúria, furto, roubo, apropriação indébita, estupro, peculato etc., seja sob a perspectiva da vítima, da coletividade ou, mais enfaticamente, do próprio sujeito passivo da investigação. Ao revés, o mesmo período decerto não será o bastante para o exaurimento de crimes econômicos, com a participação de elevado número de comparsas e em diversas localidades do país, em que a demora na conclusão policial é plenamente justificável pela maior

complexidade do caso.283

É certo, de outra banda, que não há prazo mínimo de duração da investigação criminal. É o que se verifica na prisão em flagrante, em que a etapa de investigação é concluída, em regra, em breve espaço de tempo, geralmente antes das 24h referidas na lei para informação ao juízo competente. E quanto a isso, não se vislumbra qualquer irregularidade,

282

MUCCIO, op. cit., p. 189.

283 Nesse sentido, a jurisprudência: “Processo penal. Habeas corpus. Excesso de prazo na conclusão do inquérito

policial. Não configurado. Complexidade dos fatos investigados. Crime contra o sistema financeiro nacional, crime contra a ordem tributária, crime de lavagem de dinheiro e crime de formação de quadrilha. Ilegalidade ou abuso de poder. Não demonstrados”. (TRF 5ª Região – HC n. 3603/PB, rel. Des. José Baptista de Almeida Filho).

contanto que cumpridas as formalidades legais e respeitados os direitos fundamentais do flagrado.

O grande problema é que a compreensão das diversas variáveis depende de juízo puramente subjetivo, acentuando o risco de não ser dimensionada, com o devido rigor e uniformidade, a duração razoável de uma investigação criminal, sob pena de se tornar a norma constitucional, lamentavelmente, em uma garantia vazia.

Para além disso, o retardamento é socialmente prejudicial, na medida em que assegura a impunidade de muitos criminosos, juridicamente escudados pelo instituto da

prescrição284. Nem mesmo a Lei n. 12.234/10, ao alterar a redação do art.110, § 1º, do CP,

pondo fim à prescrição retroativa285, teve o condão de alterar esse desolador cenário. Isso

porque referida norma tem seu campo de incidência reduzido àqueles casos em que existe sentença condenatória recorrível, o que pressupõe investigação criminal concluída, seguida de processo regular.

Pela novel lei nada foi dito quanto à prescrição antecedente, ou seja, aquela que medeia o fato e o recebimento da denúncia ou queixa, que continua regulada pelos parâmetros

gerais do art. 109 do CP286, frequentemente ignorados na fase policial, como vimos de ver.

Ante a frouxidão do sistema, há quem entreveja mecanismo de controle por outra espécie de prescrição: a prescrição virtual. Por esse modelo, se pela pena em perspectiva

284 Prescrição é a perda do direito de punir (ius puniendi) do Estado em virtude de sua inércia e transcurso de

certo lapso de tempo. Justifica-se a partir da noção de que os direitos subjetivos, de que o ius puniendi é espécie, não são eternos, sofrendo limitação temporal. Decorrido, portanto, o intervalo de tempo fixado em lei para o seu legítimo exercício, eles se extinguem, fatalmente. Em princípio, todos os crimes estão sujeitos à ação do tempo, salvo (i) o racismo (CF, art. 5º, inc. XLII) e (ii) a ação de grupos armados contra o Estado Democrático de Direito (CF, art. 5º, inc. LXIV).

285 Chama-se retroativa porque, depois de publicada a sentença condenatória, a contagem deve ser feita com base

no tempo passado, entre os seguintes marcos temporais: data do fato até o recebimento da denúncia ou queixa, ou desta última data até a publicação da sentença condenatória. Trata-se, a rigor, de espécie de prescrição da pretensão punitiva, porém baseada na pena concretamente aplicada na sentença. Exemplo: Crime de furto. Sentença condenatória publicada em dezembro de 2012. Condenação a um ano de prisão. Prescrição em quatro anos (CP, art. 109, inc. V). Data da consumação: 10 de janeiro de 2007. Data do recebimento da denúncia: 15 de abril de 2012. Logo, entre a data da consumação do fato e a data do recebimento da denúncia transcorreu o lapso prescricional. A pena de um ano está retroativamente prescrita. Ocorre que o emprego de prescrição retroativa foi “banido” do nosso sistema pela Lei n. 12.234/05, que revogou expressamente o parágrafo segundo do art. 110 do CP, que assim rezava: “A prescrição, de que trata o parágrafo anterior, pode ter por termo inicial data anterior à do recebimento da denúncia ou da queixa”. De acordo com a nova redação, “A prescrição, depois da sentença condenatória com trânsito em julgado para a acusação ou depois de improvido seu recurso, regula-se pela pena aplicada, não podendo, em nenhuma hipótese, ter por termo inicial data anterior à da denúncia ou queixa”. (destaque nosso)

286

Art. 109 - A prescrição, antes de transitar em julgado a sentença final, salvo o disposto no § 1º do art. 110 deste Código, regula-se pelo máximo da pena privativa de liberdade cominada ao crime, verificando-se: I - em 20 (vinte) anos, se o máximo da pena é superior a 12 (doze); II - em 16 (dezesseis) anos, se o máximo da pena é superior a 8 (oito) anos e não excede a 12 (doze); III - em 12 (doze) anos, se o máximo da pena é superior a 4 (quatro) anos e não excede a 8 (oito); IV - em 8 (oito) anos, se o máximo da pena é superior a 2 (dois) anos e não excede a 4 (quatro); V - em 4 (quatro) anos, se o máximo da pena é igual a 1 (um) ano ou, sendo superior, não excede a 2 (dois); VI - em 3 (três) anos, se o máximo da pena é inferior a 1 (um) ano.

(pena que se vislumbra como adequada e proporcional ao caso concreto), ou pelo tempo efetivamente transcorrido desde o fato, já se verifica, com segurança, que a pretensão punitiva já foi alcançada pelo golpe prescricional, torna-se desnecessária a movimentação da máquina judiciária para, ao fim de um custoso processo, declarar a perda do direito de punir do Estado. Em situação dessa natureza, por completa ausência de interesse de agir, o Ministério Público exerce controle temporal sobre a investigação criminal, evitando a judicialização de uma ação natimorta, fulminada pela prescrição da pretensão punitiva do Estado. Logo, ao invés de oferecer denúncia, promove, de imediato, o arquivamento do inquérito policial (CPP, art. 28, primeira parte).

Nossos tribunais, no entanto, não admitem a prescrição virtual por ausência de amparo legal. A propósito, “O STF, diante da falta de previsão legal, tem repelido o instituto da prescrição antecipada ou em perspectiva, consistente no reconhecimento da prescrição da pretensão punitiva do Estado, com fundamento na pena presumida, antes mesmo do término da ação penal, na hipótese em que o exercício do ius puniendi se revela, de antemão,

inviável”.287

Na mesma linha, o STJ editou a Súmula 438: “É inadmissível a extinção da punibilidade pela prescrição da pretensão punitiva com fundamento em pena hipotética, independentemente da existência ou sorte processual”.

A rigor, o controle pela via oblíqua da prescrição, qualquer que seja a modalidade, é póstumo, depois de exaurida irremediavelmente a perda do direito de punir. Ademais, longe de ser a forma mais adequada para tal desiderato. Do contrário, estar-se-ia admitindo como razoável o prazo de 16 (dezesseis) anos para apuração de um roubo simples (CP, art. 157, caput, c.c. art. 109, inc. II) ou de 20 (vinte) anos para elucidação de um homicídio na forma fundamental (art. 121, caput, c.c. art. 109, inc. I, ambos do CP), vez que, com o recebimento

da peça acusatória, interrompe-se o prazo prescricional (CP, art. 117, inc. I)288.

A investigação policial há de ser concluída, sempre, de forma célere, sem atropelamento dos direitos fundamentais em jogo, variando a extensão do prazo conforme as (eventuais) peculiaridades identificadas e justificadas no fato concreto.

Sem embargo, tudo o que foi dito presta-se apenas para destacar as mazelas do nosso modelo de investigação, que simplesmente não consegue cumprir a sua finalidade primária, “eternizando” uma situação de incerteza, em flagrante desrespeito ao interesse público e às

287

RHC 86.950, rel. Min. Joaquim Barbosa, j. 7.2.2006, Informativo STF, n. 415.

288 Ante a causa interruptiva, o prazo volta a zero, ao ponto inicial de partida. O rol [exemplificativo] das causas

garantias fundamentais da pessoa investigada. Daí a premência de reforma do sistema de policiamento repressivo, menos discricionário e mais fechado em referenciais constitucionais

e normativos289, em nome da segurança jurídica.

Refletindo sobre a questão, Fauzi Hassan Chouke esclarece que:

A ausência de barreira cronológica fomenta o desaparelhamento do Estado e o despreparo dos profissionais que lidam com a matéria que, desobrigados a controlar sua atividade no tempo, não se inibem em propugnar prazos meramente dilatórios, no que são passivamente correspondidos pelos outros agentes da Justiça Criminal.290

O processo, tal qual a pena, constitui em si expressão do poder estatal, não havendo razão plausível no sentido de inibir a regulação temporal dos atos de investigação criminal pelo direito positivo (nulla coactio sine lege), marco normativo a partir do qual todo prolongamento imotivado caracterizará violação ao disposto no art. 5º, inc. LXXVIII, da CF.