• Nenhum resultado encontrado

1.2 INCIDENTES JURISDICIONAIS NA INVESTIGAÇÃO CRIMINAL

1.2.2 Medidas assecuratórias

1.2.2.2 Medidas assecuratórias sobre “o corpo” do investigado

1.2.2.2.1 Prisão em flagrante delito

62 MARQUES, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1965, vol. II,

Derivada do latim flagrare, o vernáculo “flagrante” significa ardente, inflamado, acalorado, o que está em chamas, evidente, manifesto, insofismável. Com esse sentido, a expressão flagrante delito denota o crime que ainda arde, que está acontecendo, sobre o qual

não há dúvida de existência.63

Em nossa legislação o conceito vai além, de sorte a contemplar outras hipóteses que, isoladamente, não mereceriam o mesmo sentido semântico, nem o mesmo tratamento jurídico.

Como dispõe o CPP, está em situação de flagrante delito quem64:

a) Está cometendo a infração penal (CPP, art. 302, inc. I): trata-se de flagrante em sentido próprio ou real, por isso chamado de flagrante verdadeiro.

b) Acaba de cometê-la (CPP, art. 302, inc. II): diferentemente da hipótese anterior, nesta o agente é surpreendido assim que finaliza a execução do delito, havendo absoluta imediatidade entre o crime e a prisão em flagrante. Para a lei, pois, inexiste diferença substancial entre surpreender o agente, por exemplo, desfechando disparos contra a vítima (hipótese do inciso I) ou assim que efetua o último tiro, ainda esvaindo gases do cano da arma de fogo (hipótese do inciso II). Daí a identidade de tratamento, sendo também considerado verdadeiro flagrante (flagrante próprio ou real).

c) É perseguido, logo após, pela autoridade, pelo ofendido ou qualquer pessoa, em situação que faça presumir ser o autor da infração penal (CPP, art. 302, inc. III): eis o flagrante em sentido impróprio, quase-flagrante ou flagrante irreal, em que não há propriamente certeza visual do crime, mas perseguição “logo após” o seu cometimento, hipótese em que a autoria é apenas presumida. A rigor, não há prazo para a prisão, bastando que a perseguição seja desencadeada logo após o crime, de forma contínua, ininterrupta. Quanto à expressão “logo após”, a interpretação há de ser restritiva, pois conflita a medida de força com a liberdade individual. À falta de definição legal, impõe-se que a perseguição se inicie no menor tempo possível, cabendo ao delegado (no primeiro momento) valorá-la à luz das circunstâncias do caso concreto, com base no seu poder discricionário.

d) É encontrado, logo depois, com instrumentos, armas, objetos ou papéis que façam presumir ser ele o autor da infração (CPP, art. 302, inc. IV): é o chamado flagrante presumido, ficto ou assimilado. Nessa espécie, o agente é encontrado “logo depois” do crime, com

63

“Se na flagrância, há manifesta evidência probatória quanto ao fato típico e sua autoria, justifica-se a detenção daquele que é surpreendido cometendo a infração penal, a fim de que a autoridade competente, com presteza, possa constatar a realidade fática, colhendo, sem tardança, prova da infração, seja a parte objecti, seja a parte

subjecti”. É lição de TOURINHO FILHO, op. cit., p. 663.

64

A doutrina aponta outras espécies: flagrante facultativo (CPP, art. 301, primeira parte); flagrante obrigatório ou compulsório (CPP, art. 301, segunda parte); flagrante forjado; flagrante esperado; flagrante preparado ou provocado; flagrante prorrogado ou retardado (art. 2º da Lei n. 9.034/95).

instrumentos, armas, objetos ou papéis que façam presumir ser ele o autor do delito. Diferentemente dos anteriores, não se conhece o autor da infração, nem mesmo a sua descrição. À expressão “logo depois” dá-se o sentido de máxima brevidade temporal. Como no flagrante impróprio, a dificuldade está na definição deste hiato, entendendo a doutrina que “logo depois” comporta elastério temporal ligeiramente maior que a expressão “logo após”.

Uma vez reconhecido o flagrante, qualquer que seja a modalidade, a prisão do infrator prescinde de mandado judicial, sendo os seus requisitos e formalidades aquilatados

diretamente pela autoridade policial (CPP, art. 304)65.

Por imposição constitucional, a prisão e o local onde se encontra o detido hão de ser comunicados imediatamente ao juiz competente e à família do preso, ou à pessoa por ele

indicada (CF, art. 5º, inc. LXII; CPP, art. 306, caput).66

Para que seja viabilizado o controle judicial, determina a lei, no prazo máximo de 24 (vinte e quatro) horas, a remessa de cópia do auto de prisão em flagrante ao juiz competente e, caso o autuado não informe o nome de seu advogado, cópia integral para a Defensoria Pública (CPP, art. 306, § 1º), sob pena de relaxamento da prisão, conforme o disposto no art. 5º, inc. LXV, da CF.

Não há mais espaço, portanto, para práticas policialescas, próprias do totalitarismo repudiado pelo Estado Democrático, marcado pela negação da transparência na esfera pública

e no emprego sistemático da mentira, como forma de manipulação ideológica.67Exatamente

por esse motivo, não mais se sustenta a abominável prisão para averiguação, prática tolerada num passado não muito distante, mas que hoje é iniludivelmente perniciosa ao regime constitucional de garantias fundamentais (CF, art. 5º, inc. LXI).

Ainda no prazo de 24 horas68, o delegado deve providenciar a entrega da nota de

culpa ao flagrado, assinada pela autoridade, com o motivo da prisão, o nome do condutor e os das testemunhas (CPP, art. 306, § 2º), cuja finalidade é explicitar as razões da prisão e assim

permitir ao preso adotar providências necessárias ou convenientes à sua defesa.69

65

Sobre a natureza jurídica, em que pese se tratar de medida cautelar, o ato de prender alguém em flagrante constitui ato administrativo, levado a efeito pela Polícia Civil. Desse modo, apenas se convola em prisão processual quando ratificada pelo juiz competente.

66

E desde o advento da Lei 12.403/11, a comunicação passou a ser regra exigida também em relação ao representante do Ministério Público.

67 LAFER, 1988 apud CHOUKE, op. cit., p. 91.

68 De notar que o prazo para entrega da nota de culpa é contado a partir da prisão (CPP, art. 306, §§ 1º e 2º). 69

Embora nem a lei nem a Constituição determinem expressamente, recomenda a nova ordem garantidora a leitura dos direitos constitucionais da pessoa detida, tão logo se iniciem os trabalhos de polícia judiciária, para que possa se defender adequadamente ante a sanha repressiva do Estado.

À lavratura segue-se a prisão do flagrado, salvo quando admitida a fiança em sede policial, por iniciativa do delegado de policia, nos termos do art. 322, caput, da lei instrumental: “A autoridade policial somente concederá fiança nos casos de infração cuja

pena privativa de liberdade máxima não seja superior a 4 (quatro) anos”.70

De ressaltar, outrossim, que o delegado de polícia, enquanto primeiro guardião da legalidade e da liberdade individual, pode até relaxar o flagrante quando, depois de ouvido condutor, testemunhas, ofendido e o próprio conduzido, contra ele não resultar das respostas fundada suspeita, verificando, então, ser totalmente abusivo o ato de constrição física (art. 304, § 1º, do CPP). Como exemplo, cite-se o caso em que, ante os elementos preliminarmente

coligidos, conclui a autoridade policial ter sido forjado71 o estado de flagrancial ou que se

trata de flagrante írrito, preparado ou provocado (Súmula 145 do STF). 72

Imperioso mencionar que a lavratura do auto de prisão em flagrante delito representa uma das formas de instauração de inquérito policial, por ato de ofício da autoridade policial, com dispensa de portaria.

Diversamente, em se tratando de crime de ação penal pública condicionada, exige-se uma condição especial de procedibilidade, na forma de representação da vítima ou requisição do Ministro da Justiça, a depender do caso. Tais atos de vontade devem ser manifestados até o momento da conclusão do auto de prisão em flagrante, sem os quais ficará impedida a autoridade policial de consumar a prisão (CPP, art. 5º, § 4º). Assim, a despeito de todas as provas do delito, será obrigada a liberar o ofensor depois de formalmente documentar o ocorrido em boletim de ocorrência. No tocante aos crimes de ação penal privada, considerando que não pode haver instauração de inquérito sem manifestação de vontade, o não requerimento da vítima obstaculizará a lavratura do auto (CPP, art. 5º, § 5º).

Uma vez instaurado o inquérito policial a partir do auto de prisão em flagrante, sem que o indiciado tenha se livrado solto, segue-se, quanto ao prazo de encerramento, a regra geral do art. 10 do CPP, qual seja, 10 (dez) dias. Agora, se se cuidar de crime previsto na Lei

70 Quando não for de alçada da autoridade policial, ou quando por ela negada, a fiança poderá ser arbitrada pelo

juiz, de ofício ou a requerimento da parte (CPP, art. 322, parágrafo único).

71 Flagrante forjado é aquela ardilosamente “fabricado” com o fito de incriminar pessoa inocente. É o que ocorre

quando, por exemplo, policial coloca substância entorpecente no interior de um veículo, com a intenção de prejudicar o seu proprietário. Além de inexistir crime, responderá o policial por delito de abuso de autoridade.

72 No flagrante preparado ou provocado o agente é induzido ou instigado a cometer o delito, e, neste instante,

acaba sendo preso em flagrante. Trata-se, a rigor, de modalidade de crime impossível, de maneira que o flagrante, nas circunstâncias, é considerado nulo, na linha da Súmula 145 do STF: “Não há crime quando a preparação do flagrante pela polícia torna impossível a sua consumação”. Secundando esse entendimento, já decidiu o Tribunal de Justiça de São Paulo: “Se o agente policial induz ou instiga o acusado a fornecer-lhe a droga que no momento não possuía, porém saindo do local e retornando minutos depois com certa quantidade de entorpecente pedido pelo policial, que, no ato da entrega, lhe dá voz de prisão, cumpre reconhecer a ocorrência de flagrante preparado” (RT, 707/293).

de Drogas (Lei n. 11.343/06), o prazo é dilargado: 30 (trinta) dias, podendo ser duplicado pelo juiz, depois de ouvido o Ministério Público, mediante pedido justificado da autoridade de polícia judiciária (art. 51).