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3.1 A ORALIDADE

3.1.3 Oralidade e PCN

Hoje, não há mais questionamentos sobre a importância de se trabalhar o componente oral da linguagem em sala de aula. Autores têm argumentado a favor do desenvolvimento de competências orais na escola. A maioria concorda que devemos romper com a insistência no ensino de unidades isoladas, como frases, palavras e sons, indo ao encontro da concepção de língua como interação social. Consequentemente, a gramática deveria ser trabalhada na produção e na compreensão textual, e não como mero exercício analítico de palavras ou frases. Assim, considera-se a língua falada, como ponto de partida, e a escrita, como ponto de

chegada. Trata-se, pois, de trabalhar integradamente as várias atividades no uso da língua, ou seja, a produção oral, a produção escrita, a leitura e a compreensão.

Esses avanços nos estudos da linguagem oral foram incorporados pelo discurso oficial no Brasil aos Parâmetros Curriculares Nacionais (1998b), trazendo orientações nem sempre muito claras para os professores encarregados de sua prática.

Ensinar língua oral deve significar para a escola possibilitar acesso a usos da linguagem mais formalizados e convencionais, que exijam controle mais consciente e voluntário da enunciação, tendo em vista a importância que o domínio da palavra pública tem no exercício da cidadania. Ensinar língua oral não significa trabalhar a capacidade de falar em geral. Significa desenvolver o domínio dos gêneros que apoiam a aprendizagem escolar de Língua Portuguesa e de outras áreas e, também, os gêneros da vida pública no sentido mais amplo do termo. (BRASIL, 1998b, p. 67)

Propondo situações em que atividades de apresentação pública, como seminários, debates, entrevistas e performances teatrais, sejam planejadas e elaboradas no contexto educacional, como foco do trabalho com a oralidade, envolvendo regras de comportamento social, o documento aponta objetivos bem definidos nos conteúdos, dividindo as atividades em escuta e produção de textos orais. Na escuta, serão enfatizados os elementos não verbais, como gestos, expressões faciais, postura corporal e outros aspectos que fazem parte da interação. Essas atividades visam à ampliação do conjunto de conhecimentos discursivos, semânticos e gramaticais, envolvidos na construção do sentido. O documento ressalta ainda que não se pode mais empregar somente o nível mais formal para todas as situações, o que significa nos livrarmos da ideia de que fala “correta” é a que se aproxima da escrita.

O trabalho com a linguagem oral no Guia PNLD/2005 – Língua Portuguesa, deve:

1) favorecer o uso da linguagem oral na interação em sala de aula, como mecanismo de ensino-aprendizagem; 2) recorrer, portanto, à oralidade na abordagem da leitura e da produção de textos; 3) explorar as diferenças e semelhanças que se estabelecem entre a linguagem oral e a escrita; 4) valorizar e efetivamente trabalhar a variação e a heterogeneidade linguísticas, introduzindo a norma culta relacionada ao uso público ou formal da linguagem oral, sem, no entanto, silenciar ou menosprezar as outras variedades, quer regionais, quer sociais, quer estilísticas; 5) propiciar o desenvolvimento das capacidades envolvidas nos usos da linguagem oral próprios das situações formais e/ou públicas.(PNLD/2005, p. 257-258)

Apesar de orientar quanto aos objetivos, este documento contraria os PCN, a medida que não impõe a modalidade oral para as atividades, pois os parâmetros curriculares propõem objetivos bem definidos para o trabalho com a oralidade. A utilização da linguagem escrita, quando necessária como suporte da oralidade, e a ampliação da capacidade de reconhecer as intenções dos enunciadores também são apontadas como objetivos do trabalho oral.

Os documentos analisados mostram uma falta de objetividade na indicação de metodologias apropriadas para a potencialização da oralidade na escola, evidência que percebemos no desempenho dos estudantes, quando requisitados a falar. Em todas as oportunidades que foram oferecidas, percebi que há muitos entraves no uso da linguagem oral, apresentados pelos alunos de nossa escola. Na prática, quando instigados a manifestar suas opiniões, eles passam de um verdadeiro estado de “surpresa”, por estarem sendo colocados no centro das atenções, a um sentimento de “pavor”, que solapa de vez com qualquer chance de conexão lógica que lhes permita expressar. São muito frequentes as respostas como: “sobre o que é que a senhora quer que eu fale?” – “eu não entendi” ou “acho legal, só isso”.

Este comportamento dos alunos pode ser elucidado por Pierre Bourdieu (2001), que usa o conceito de habitus para se referir à reprodução social e à resistência a mudanças. Para ele, o habitus é internalizado na mente e inscrito no corpo em suas formas de expressão. Experiências reiteradas, enfatizadas pelos discursos e regras de comportamento, delimitam e enquadram a forma pela qual o indivíduo age e responde a novas experiências e informações. O habitus funciona assim como um mecanismo de controle que filtra as impressões e expressões do sujeito; neste sentido, é sua história incorporada e internalizada, que se manifesta nos pensamentos e ações do presente. A defesa contra mudanças se manifestaria, não só na rejeição a novas informações, como também na resistência a se expor a situações novas. Desta forma, explica como o indivíduo prefere discutir e conviver com aqueles com quem compartilha a mesma opinião, assim como são mantidos discursos e opções sistemáticas e como a crítica é rejeitada. Entretanto, como resultado de uma ocupação ou de função de longa duração, na esfera familiar ou social, o habitus muda, ao se alterar esta ocupação ou função. Ainda conforme as ideias do autor, habitus é também adaptação; ajusta-se constantemente ao mundo, embora só excepcionalmente assuma a forma de uma mudança radical. Bourdieu (2001) enfatiza que se trata de um produto histórico, que se refere a um sistema de disposições aberto, que, confrontado com novas experiências, pode ser afetado por

elas. É acreditando nessa afetação que resolvemos expor nossos educandos a novas experiências de teatro, que podem alterar sua resistência, tornando-os mais flexíveis.

4 PRÁTICAS PEDAGÓGICAS A FAVOR DA ORALIDADE

A linguagem falada distingue o homem dos demais seres vivos que habitam a Terra. É também através da linguagem que um povo ou comunidade constrói a realidade que o cerca, organizando esse mundo, com diferentes simbologias, de acordo com suas necessidades e oportunidades. É ainda graças à linguagem que o homem pode refletir sobre si mesmo, tornando-se objeto e sujeito do próprio pensamento. Sobre essa capacidade, afirma Duarte Júnior (1994, p. 18), importante estudioso da sensibilidade,

Através da palavra o homem pôde “despender-se” de seu meio ambiente imediato, tomando consciência de espaços não acessíveis aos seus sentidos. Ou seja: a palavra traz-me à consciência regiões não alcançáveis pelos meus sentidos aqui e agora.

O autor esclarece ainda que a socialização dos indivíduos se dá em duas fases: a primária ou objetiva, que ocorre primordialmente no seio da família, sendo responsável por sua “hominização” e, a secundária, ou subjetiva, quando a criança percebe a realidade além de sua casa e sua família. Então, organizará seu mundo a partir do conhecimento lógico e racional, mas sempre levará consigo as lembranças das experiências vivenciadas na infância. A maneira de o indivíduo lidar com a realidade vai se tornando rotineira e a interação com os outros consolida sua identidade e seu modo próprio de ser e estar no mundo. Quando essa realidade sofre algum abalo, levando-o a se desligar do cotidiano, surgem os “enclaves”, manifestando-se então uma disponibilidade de crítica, que é base para a construção de universos simbólicos. Esses enclaves podem acontecer através da Religião, Filosofia, Ciência ou Arte. Temos fortes razões para acreditar que o teatro facilite esse tipo de situação, possibilitando uma ultrapassagem do cotidiano e da rotina, e promovendo um mergulho em experiências marcantes pela amplitude da linguagem expressiva, da fala e do gesto.

Na atualidade, a valorização da nossa capacidade racional, certamente necessária à resolução de tantos problemas que surgem a todo instante, faz com que a capacidade sensorial passe a segundo plano. A palavra tomou conta da comunicação humana, deixando pouco lugar para a percepção do corpo. Mas sabemos que um diálogo envolve três conjuntos expressivos: o grafismo da palavra, isto é, o que o indivíduo diz ou pensa; o tom da voz, com todo um conjunto de referências, incluindo as culturais, e a encenação, dança gestual

constituída pelas caras, gestos e poses que acompanham as palavras. A alteração de qualquer um deles altera o sentido do que pretendemos comunicar.

Desse modo, o uso da linguagem, de forma criativa e viva, permite que o sujeito considere a comunicação como um instrumento caracteristicamente humano e que, por meio da ação comunicativa, o ser humano construa significados e sentidos para a vida social. Da mesma forma, Huizinga (2005, p.7) disserta acerca da capacidade humana de se comunicar:

No caso da linguagem, esse primeiro e supremo instrumento que o homem forjou a fim de poder comunicar, ensinar e comandar. É a linguagem que lhe permite distinguir as coisas, defini-las, constatá-las, em resumo, designá-las e com essa designação elevá-las ao domínio do espírito. Na criação da fala e da linguagem, brincando com essa maravilhosa faculdade de designar, é como se o espírito estivesse constantemente saltando entre a matéria e as coisas pensadas. Por detrás de toda expressão abstrata se oculta uma metáfora, e toda metáfora é jogo de palavras. Assim, ao dar expressão à vida, o homem cria um outro mundo, um mundo poético, ao lado do da natureza.

Quando exercitamos a percepção do corpo, podemos reconhecer todas as nossas intenções contidas nas palavras, no tom, nos olhares e na postura. Assim, percebendo que o corpo existe, não podemos detectar também nossos desejos e temores e tornar mais significativo o nosso processo de comunicação?

É essa postura que orientou a nossa prática de teatro na escola, ampliando a percepção de sensações, emoções e imagens, somada à maior consciência da percepção visual e auditiva do mundo que nos cerca. A partir daí, pudemos construir uma comunicação mais eficaz com o outro, reelaborando as inter-relações sociais, tanto na escola como fora dela.

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