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3.1 A ORALIDADE

3.1.2 Oralidade e Performance

A manifestação oral comporta um conjunto de fenômenos interligados que têm origem na formação de uma intenção, que se opera pela voz, e traz na palavra e no gesto os prenúncios da totalidade do discurso. A recepção vai se fazer pela audição e a visão, processo globalizante desse discurso. A transmissão e a recepção constituem, dessa forma, um ato único de participação e copresença que é a “performance.”

. Termo antropológico e não histórico, relativo, por um lado, às condições de expressão, e da percepção, por outro, performance designa um ato de comunicação como tal; refere-se a um momento tomado como presente. A palavra significa a presença concreta de participantes implicados nesse ato de maneira imediata. (ZUMTHOR, 2000, p. 50)

Os Estudos da Performance, mais que a análise de uma representação teatral formal, no sentido do teatro tradicional, transcendem os palcos e analisam o homem em suas formas de interpretação, como ser humano e/ou artista, utilizando-se de conceitos apresentados por todas as ciências. Os estudos da performance envolvem desde o estudo de formas mais estruturadas de arte, indo até aspectos da vida cotidiana.

Diferenciando “rito” e “teatro”, a propósito da eficácia dessas performances na estrutura social, Schechner (1988 apud Dawsey, 2005), também chamou atenção para os processos que ele traduziu pelas categorias transportation e transformation. O primeiro termo faz referência a uma experiência que caracteriza qualquer tipo de evento performático, sugerindo que participar de uma performance implica se deslocar para determinado local, estar no ambiente exclusivo ou, então, penetrar os espaços reservados, físicos e simbólicos de um “mundo recriado” momentaneamente; envolver-se na experiência singular de “ser levado a algum lugar”, quando num estado de “transe”, ou o desafio (psicológico) de tornar-se “outro”, sem deixar de ser a si mesmo, quando da representação cênica de um personagem qualquer… Conforme sugeriu Schechner (1988 apud Dawsey, 2005), durante uma performance, também a “audiência” é “transportada”, pois o ator social, na posição de plateia, é levado a assumir outros papéis diferentes dos que habitualmente desempenha nas interações sociais da vida cotidiana. Ele poderá se sentir mais “livre” para explorar com ousadia o

repertório variado de papéis sociais e, assim, expressar, sem receio, as suas emoções, chorar, gargalhar, agir com irreverência, gritando, assoviando alto etc.; ou, ainda, ser instigado a “conversar consigo mesmo”, a “parar” e refletir sobre as relações de poder e dominação ou nos “problemas não resolvidos” que permeiam a sociedade – então, o despertar para uma “consciência crítica” (SCHECHNER, 1988apud Dawsey, 2005).

Segundo Dawsey (2005), há algo de não resolvido no conceito de “performance”, que resiste às tentativas de definições conclusivas ou delimitações disciplinares. Aquém ou além de uma disciplina, ou até mesmo de um campo interdisciplinar, os estudos de performance configuram-se como uma espécie de campo liminar e podem espelhar a própria experiência do mundo contemporâneo: a fragmentação das relações, o inacabamento das coisas, a dificuldade de significar o mundo.

Performance é na verdade um intercampo. A linha antropológico-teatral enfatiza a definição de performance como um encontro entre as questões do teatro e da antropologia, enfatizando, frequentemente, a importância da investigação de atos interculturais, como uma alternativa à análise apenas do teatro ou ao trabalho de campo tradicional da antropologia.

As regras da performance, que regem simultaneamente o tempo, o lugar, a finalidade da transmissão, a ação do locutor e, em ampla medida, a resposta do público, engendram o contexto real e determinam finalmente o seu alcance.

[...] em situação de oralidade pura, se mantém, de momento a momento, uma unidade muito forte, da ordem da percepção. Todas as funções desta (ouvido, vista, tato...), a intelecção, a emoção se acham misturadas simultaneamente em jogo, de maneira dramática, que vem da presença comum do emissor da voz e do receptor auditivo, no seio de um complexo sociológico e circunstancial único. (ZUMTHOR, 1977, p. 67)

De acordo com este autor, qualquer que seja a maneira pela qual somos levados a considerar a noção de performance, encontraremos sempre um elemento irredutível: a ideia da presença de um corpo. Ora, o corpo é da ordem do indizível e se faz e refaz, a cada momento, numa relação intercomunicativa com o eu interior. Dessa forma, recorrendo à ideia de performance, torno implícita a concepção de um aqui/agora de um ser particular em uma integração única numa dada situação.

Notemos ainda que a performance, não apenas se liga ao corpo, mas, por ele, ao espaço. Este laço se valoriza por uma noção, a de teatralidade, à medida que o receptor percebe esse espaço como cênico e reconhece nele a alteridade.

É nesse sentido de ligação corpo/espaço que nos interessa a noção de performance neste estudo. Durante nossas oficinas de teatro no Colégio Serravalle, meu objetivo foi dar ênfase à oralidade do nosso aluno, durante seu fazer teatral, procurando fazê-lo aperceber-se da totalidade de sua ação, como essa ação se reflete no outro, como essa reflexão, voltando ao emissor, vai afetar suas ações subsequentes.

A respeito da narrativa na oralidade primária, diz Ong (1998, p. 53):

A originalidade da narrativa reside não na construção de novas histórias, mas na administração de uma interação especial com sua audiência, em sua época – a cada narração deve-se dar à história, de uma maneira única, uma situação singular, pois nas culturas orais o público deve ser levado a reagir, muitas vezes intensamente.

Na escola, entretanto, tudo se passa como se seus sujeitos estivessem fora da história. Percebemos aí um processo de cristalização da linguagem, desvinculando-a da história narrativa. Restaurar o sentido da narrativa, essa deve ser a tarefa interminável da humanidade, como confirma Kramer (2003, p.71):

Não é de uma fala qualquer que a escola necessita: não se restringe essa identidade a um perene tagarelar ou a um papaguear repetitivo. Pois não é de palavras apenas que a linguagem está esvaziada, mas de história. Encontrar a identidade narrativa requer que se puxem os fios não só das experiências enraizadas nos sujeitos que fazem imediatamente a prática, mas também os fios do conhecimento construído por múltiplos sujeitos ao longo da história.

Retomar o vínculo da linguagem com a esfera real da vida, considerar a enunciação e o contexto, é tratar com a língua viva, não como conjunto de regras linguísticas. Assim,

“não são palavras o que pronunciamos ou escutamos, mas verdades ou mentiras, coisas boas ou más, importantes ou triviais, agradáveis ou desagradáveis, etc. A palavra está sempre carregada de um conteúdo ou de um sentido ideológico ou vivencial”. (Bakthin, 1988a, p.95 apud Kramer, 2003, p.72)

A palavra é caminho de via dupla entre a infra e a superestrutura, sendo que a significação não está na alma do falante nem do interlocutor, mas é o efeito da interação entre eles. É a corrente da comunicação verbal que vai fornecer à palavra a luz de sua significação, sempre provisória, criada e recriada no contexto histórico. Essa dialética que Bakthin(1996) desvela ao falar de linguagem é a mesma que o orienta no estudo de Rabelais e das festas carnavalescas medievais, trazendo simultaneamente a afirmação e a negação.

A praça pública no fim da idade Média e no Renascimento formava um mundo único e coeso onde todas as “tomadas de palavra” (desde as interpelações em altos brados até os espetáculos organizados) possuíam alguma coisa em comum, pois estavam impregnadas do mesmo ambiente de liberdade, franqueza e familiaridade. (Bakthin,1996,p.132)

Sendo polifônica, plural e múltipla, trazendo simultaneamente a afirmação e a negação, tal ambivalência dialética se contrapõe à cultura oficial e ao discurso monológico dos dominantes, conforme Kramer (2003).

Esta advertência esteve sempre presente no trabalho que realizamos e na forma como incentivamos a narração de histórias de vida dos alunos, em nossa prática nas oficinas de teatro. A partir dos elementos dessas histórias foram construídas muitas cenas em jogos e improvisações. Os relatos dos alunos trazem alguns aspectos dessa prática:

Jaqueline Gomes (2º J)

Amanda Damasceno (1ºA) Imagem 9 – Depoimentos dos alunos

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