• Nenhum resultado encontrado

O empoderamento da voz do aluno através das oficinas de teatro do Colégio Serravalle: jogos e performances

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "O empoderamento da voz do aluno através das oficinas de teatro do Colégio Serravalle: jogos e performances"

Copied!
125
0
0

Texto

(1)

UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

ESCOLA DE TEATRO/ ESCOLA DE DANÇA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS

REGINA HELENA ESPIRITO SANTO

O EMPODERAMENTO DA VOZ DO ALUNO ATRAVÉS DAS

OFICINAS DE TEATRO DO COLÉGIO SERRAVALLE:

JOGOS E PERFORMANCES

Salvador

2013

(2)

REGINA HELENA ESPIRITO SANTO

O EMPODERAMENTO DA VOZ DO ALUNO ATRAVÉS DAS

OFICINAS DE TEATRO DO COLÉGIO SERRAVALLE:

JOGOS E PERFORMANCES

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial para obtenção do Grau de Mestre em Artes Cênicas.

Área de Concentração: Artes Cênicas

Linha de Pesquisa: Processos Educacionais em Artes Cênicas Orientador: Prof. Luiz Cláudio Cajaiba Soares

Salvador

2013

(3)

REGINA HELENA ESPIRITO SANTO

O EMPODERAMENTO DA VOZ DO ALUNO ATRAVÉS DAS

OFICINAS DE TEATRO DO COLÉGIO SERRAVALLE:

JOGOS E PERFORMANCES

Dissertação apresentada como requisito para obtenção do grau de Mestre em Artes Cênicas, Escola de Teatro e Escola de Dança da Universidade Federal da Bahia.

Banca Examinadora:

Luiz Cláudio Cajaiba Soares________________________________ Universidade Federal da Bahia - PPGAC (Orientador)

Érico José Souza de Oliveira_______________________________________________ Universidade Federal da Bahia - PPGAC

José Mauro Barbosa Ribeiro________________________________________________ Universidade Federal de Brasília– PPGAC

(4)

AGRADECIMENTOS

A Deus por toda força universal que me acompanhou nesta longa jornada.

Agradeço a toda a minha família, especialmente à minha mãe e ao meu pai (in memorian). Ao Osvaldo, meu amor e companheiro de horas alegres e difíceis, pela paciência em respeitar minhas ausências, minha cara feia, meus momentos de reflexão.

Aos meus filhos, por terem sempre uma palavra de carinho e apoio. Eu os amo e admiro muito. Obrigada por permanecerem ao meu lado.

Ao meu neto por me manter alegre e esperançosa no futuro.

Agradeço ao meu orientador, professor Luiz Cláudio Cajaiba, pelo respeito, credibilidade e confiança no meu trabalho.

Aos membros da banca, professor José Mauro Barbosa Ribeiro, por aceitar meu convite e pelas sensíveis contribuições na minha formação como pesquisadora. Ao professor Érico José Oliveira, por aceitar o meu convite e pelas reflexões propostas na ocasião do exame de qualificação que enriqueceram esta pesquisa.

Agradeço à coordenação, aos professores e funcionários do Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas (PPGAC) da Universidade Federal da Bahia (UFBA), instituição na qual realizei esta pesquisa.

Agradeço aos colegas de turma pelo carinho com que compartilharam aprendizagens e pela força nos momentos mais difíceis.

Agradeço com carinho aos amigos de todas as horas e aos que estão distantes, mas ao mesmo tempo presentes.

Agradeço especialmente ao Colégio Estadual Raphael Serravalle, pela confiança no meu trabalho e autonomia que me permitiu desenvolver esta pesquisa.

Um agradecimento especial a todos os adolescentes envolvidos no processo criativo das oficinas que me suscitaram a pesquisar este universo.

Agradeço ao professor Sergio Farias pela generosidade em partilhar saberes e pela parceria no encaminhamento dos estagiários, que fizeram toda a diferença nas oficinas do Colégio: particularmente Maick, Daisy, Polis, Roberto e Yochi, entre outros.

Agradeço a todos que, de algum modo, contribuíram para a concretização deste trabalho, com suas palavras, seus saberes ou simplesmente sua presença.

(5)

A maior riqueza do homem é a sua incompletude. Nesse ponto sou abastado. Palavras que me aceitam como sou - eu não aceito. Não aguento ser apenas um sujeito que abre portas, que puxa válvulas, que olha o relógio, que compra pão às 6 horas da tarde, que vai lá fora, que aponta lápis, que vê a uva etc. etc. Perdoai Mas eu preciso ser Outros. Eu penso renovar o homem usando borboletas.

(6)

SANTO, Regina Helena Espirito. O EMPODERAMENTO DA VOZ DO ALUNO ATRAVÉS DAS OFICINAS DE TEATRO DO COLÉGIO SERRAVALLE: JOGOS E PERFORMANCES. 125 f. 2012. Dissertação (Mestrado) – Escola de Teatro e Escola de Dança, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2012.

RESUMO

Este estudo visa discutir a eficácia do teatro como prática pedagógica para desenvolver a capacidade de expressão oral na escola. Segundo Foucault (1977), a instituição de ensino, visando a “docilidade” dos corpos, utiliza olhar hierárquico de vigilância, sansões e exames que permitem qualificar, classificar e punir. Essa situação, a nosso ver, é coercitiva e impede que a livre comunicação aconteça de forma plena na comunidade escolar. Para Bourdieu (2001), suprimindo-se espaços, inibe-se a criatividade, praticando-se a violência simbólica. Considero que o sistema disciplinar atualmente praticado em escolas públicas, grosso modo, é responsável pela grave crise nas relações interpessoais. Esse contexto impede que sejam atendidas as orientações dos PCNs, relacionadas à espontaneidade, liberdade de expressão e criação, também defendidas por Zumthor (1977). Notamos que a performance da comunicação oral é relevante para a eficácia do resultado, podendo afetar positivamente ou não os participantes. A partir da aplicação dos jogos teatrais propostos por Spolin (1992) e Boal (2005) entre muitos outros, percebo caminho possível para a potencialização da voz do aluno. Defendo, em caráter de conclusão, que certa prática educacional através do teatro, flexibiliza reações, diminui defesas e multiplica relações.

(7)

ABSTRACT

This research aims to discuss the effectiveness of the theater as a pedagogic practice to promote the ability of oral expression in school. According to Foucault (1977), the educational institution, aiming to "docility" bodies, uses hierarchical look, surveillance and disciplinary measures so that exams allow you to qualify, classify and punish. This situation is coercive and don’t permits a free communication between the different parts of de community. For Bourdieu (2001) by removing spaces, it inhibits creativity, practicing the symbolic violence. I believe that the disciplinary system currently practiced in public schools, roughly speaking, is responsible for the serious crisis in interpersonal relationships. This prevents context guidelines are met, PCNs related to spontaneity, freedom of expression and creation, also advocated by Zumthor (1977). We note that the performance of oral communication is relevant to the effectiveness of the result, may affect positively or not participants. From the application of proposed by Spolin theater games (1992) and Boal (2005) among many others, understand possible path for the development of the student's voice. I would argue, in character, that some completion through educational practice of the theater, loosens reactions, reduces defenses and multiplies relationships.

(8)

LISTA DE SIGLAS

AIDS SÍNDROME DA IMUNODEFICIÊNCIA ADQUIRIDA

CERS COLÉGIO ESTADUAL RAPHAEL SERRAVALLE

EAD MODALIDADE DE ENSINO A DISTÂNCIA

ECA-USP ESCOLA DE COMUNICAÇÕES E ARTES DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

ENEM EXAME NACIONAL DO ENSINO MÉDIO

FACED FACULDADE DE EDUCAÇÃO DA UNIVERSIDADE FEDERAL DA

BAHIA

FACOM FACULDADE DE COMUNICAÇÃO DA UNIVERSIDADE FEDERAL

DA BAHIA

MEC MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E CULTURA

PCN PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS

PNLD PROGRAMA NACIONAL DO LIVRO DIDÁTICO

PPGAC DA UFBA

PROGRAMA DE PÓS- GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS DA UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

SAMU SERVIÇO DE ATENDIMENTO MÓVEL DE URGÊNCIA

SEC SECRETARIA ESTADUAL DA EDUCAÇÃO

LISTA DE IMAGENS

IMAGEM 1 Panóptico de Bentham na arquitetura... 19

IMAGEM 2 Planta baixa da área central do Colégio Estadual Raphael Serravalle... 20

IMAGEM 3 Alunos aguardando para entrar no colégio a partir do segundo horário... 21

IMAGEM 4 Sistema de segurança através de câmeras... 22

IMAGEM 5 Grades em janelas lembrando o sistema prisional... 23

IMAGEM 6 Portões são trancados com cadeados, limitando trânsito... 26

IMAGEM 7 Câmera instalada no corredor central do Colégio Serravalle... 26

(9)

IMAGEM 9 Depoimentos dos alunos... 44

IMAGEM 10 Exercitando equilíbrio e integração... 47

IMAGEM 11 A comicidade evidenciada na Gincana do Colégio Serravalle... 55

IMAGEM 12 Baile de máscaras na abertura da Gincana... 60

IMAGEM 13 Concentração das equipes da Gincana no Jardim de Alah... 61

IMAGEM 14 Café da manhã tropical de uma das equipes... 63

IMAGEM 15 Ludicidade na Gincana: Balé masculino... 66

IMAGEM 16 Documentos produzidos pelos integrantes das oficinas de teatro... 69

IMAGEM 17 Atitudes de raiva e desprezo assumidas pelo aluno na personagem de patrão... 78

IMAGEM 18 Utilizando a autoridade no papel de policiais... 79

IMAGEM 19 Exercícios de conhecimento e exploração do espaço... 81

IMAGEM 20 Focando objetos disponíveis no espaço... 82

IMAGEM 21 Exercícios de domínio corporal e espaço... 82

IMAGEM 22 Entusiasmo de Roberto reflete-se na atitude dos alunos na aula... 85

IMAGEM 23 Leitura dramática: Rosário e o Boi Surubim, dirigida por Roberto Abreu... 86

IMAGEM 24 Cena sobre política... 88

IMAGEM 25 Cena do ônibus no espetáculo Reações Voluntárias... 89

IMAGEM 26 Cena sobre drogas no espetáculo Reações Voluntárias... 89

SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO... 10

2 A ESCOLA QUE FAZ CALAR... 17

2.1 A ORIGEM DA ESTRUTURA ESCOLAR ATUAL... 17

2.2 APROFUNDANDO ALGUMAS QUESTÕES...24

2.3 A RECONQUISTA DA ESCOLA...31

3 A ESCOLA QUE ESCUTA...37

3.1 A ORALIDADE... 37

(10)

3.1.2 Oralidade e Performance...40

3.1.3 Oralidade e PCN... 44

4 PRÁTICAS PEDAGÓGICAS A FAVOR DA ORALIDADE...48

4.1 PRINCÍPIOS EDUCATIVOS A FAVOR DA SOCIALIZAÇÃO...49

4.2 UM TEMPO EXTRACOTIDIANO NA ESCOLA: A GINCANA DO COLÉGIO... 53

4.3 RELEVÂNCIA DE ALGUMAS PRÁTICAS TEATRAIS NA ESCOLA...66

5 FAVORECENDO A ORALIDADE ATRAVÉS DO TEATRO NA ESCOLA... 71

5.1 IMPROVISÃO E JOGOS NA PEDAGOGIA DO TEATRO... 71

5.2 O EXERCÍCIO DA EXPRESSÃO VOCAL: EVIDÊNCIAS DE UMA PRÁTICA...76 5.3 E SE....TRADUZIR É TRAIR...91 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS...96 REFERÊNCIAS... 100 APÊNDICES... 105 ANEXOS...117 1. INTRODUÇÃO

Professora de Educação Artística, com habilitação em Música, minha trajetória sempre foi marcada pelo desejo de encontrar uma forma de promover o sentido de humanidade no aluno através da Arte. A prática em sala de aula levou a inúmeras experiências, muitas delas bem-sucedidas, mas, na minha própria avaliação, ficava uma questão primordial a ser respondida: até que ponto a aprendizagem proporcionada pelo encontro com a Arte era significativa? A resposta que buscava ainda não está completa, mas sem dúvida iniciei uma nova etapa, a partir de 1997, no Curso de Especialização promovido pela Secretaria de Educação do Estado da Bahia, quando descobri o Teatro como linguagem educativa.

Desenvolvi, no referido curso, o Projeto de Teatro na Educação, que fundamentou a proposta de implantação da disciplina Teatro, na escola pública onde trabalho. Apresentei o Projeto Socioeducativo de Teatro ao Colégio Raphael Serravalle que, aprovado, permitiu aos alunos permanecerem na escola durante parte do segundo turno, ampliando suas atividades escolares em pelo menos mais seis horas semanais, o que já foi um benefício para o educando. O Colégio Estadual Raphael Serravalle é uma escola da rede pública do Estado da Bahia, localizada em Salvador, no bairro do Itaigara, ficando próximo ao fim de linha da Pituba, o que lhe confere uma acessibilidade privilegiada. A escola abriga cerca de 2.800

(11)

alunos, divididos em Ensino Fundamental e Médio, ocupando 23 salas de aula, em sua capacidade máxima, e funcionando nos três turnos. Além das salas de aula do ensino regular, oferece espaços pedagógicos específicos, como salas de língua estrangeira, biblioteca, sala de informática, laboratórios de biologia e física, sala de apoio aos alunos com necessidades especiais e duas quadras poliesportivas, uma coberta e outra descoberta. Possui ainda um auditório, com capacidade para cerca de 200 pessoas. Tem uma gestão democrática, com direção eleita pela comunidade escolar, apoio do Colegiado Escolar e do Grêmio Estudantil.

As Oficinas de Teatro surgiram em 2005, com o projeto socioeducativo por mim implantado nesse colégio, com a aprovação da SEC e que teve sua continuidade até a presente data, passando, há dois anos, a pertencer ao Ensino Médio Inovador, programa implantado pelo MEC, em cerca de 22 escolas selecionadas na rede pública da Bahia. Essas oficinas funcionam no contra turno do horário regular dos alunos, durante o ano todo, com carga horária semanal de 2 horas, para cada turma, onde são matriculados cerca de 20 alunos.

A prática teatral estimulada pelo Projeto, os bons resultados e as dificuldades encontradas apontaram a necessidade de aprofundar meus conhecimentos teóricos / práticos sobre Teatro e Educação. Por este motivo, no primeiro semestre de 2008, cursei, como aluna especial, a disciplina Arte-Educação, oferecida pelo PPGAC da UFBA, ministrada por Sergio Farias. No segundo semestre, movida pelos mesmos ideais, cursei Arte e Ludicidade na Formação do Professor, ministrada por Cristina D’Ávila e Roberto Sanches Rabello, disciplina do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação da UFBA, ministrada por Cristina D’Ávila e Roberto Sanches Rabello. Ambas me atualizaram e me forneceram maiores instrumentos de intervenção na escola.

Fui selecionada, ainda em julho de 2008, em concurso para a especialização de professores brasileiros, no curso de Ensino de Arte na Contemporaneidade, na modalidade EAD, oferecido pelo DUO – Informação e Cultura, de Belo Horizonte em parceria com o Instituto Ayrton Senna, este último sediado em São Paulo. Este curso, sem dúvida, foi outra importante contribuição para o avanço de meu conhecimento e experiência sobre Arte. Além do contato e diálogo com professores de todo o País, com suas diferentes realidades, em busca de melhorar as condições objetivas do ensino de Arte no Brasil, despertou, ainda mais, meu interesse por manifestações culturais regionais e festas, que retratam as tradições, ritos e peculiaridades de cada lugar.

(12)

Nesta direção, busquei maiores informações sobre as práticas e comportamentos espetaculares, importante objetivo para a aprendizagem do Teatro na contemporaneidade. Então, voltei ao PPGAC e cursei a disciplina Festas e Espetacularidade, ministrada pelos professores Lúcia Lobato e Érico José de Oliveira, como aluna especial, no primeiro semestre de 2009. Ampliei assim minhas pesquisas na Educação, agora introduzindo uma nova perspectiva, baseada em princípios da Etnocenologia, conhecendo autores como Maffesoli (1996), Bakhtin (1992), Duvignaud (1983), Caillois (1967) e Armindo Bião (1999 apud Oliveira, 2006), dentre outros. Ao final do semestre, escrevi um artigo para esta disciplina sobre a Gincana do Colégio Serravalle, defendendo a continuidade dessa festa no currículo escolar, pela sua importância como um dos únicos redutos da aprendizagem prazerosa e significativa da escola neste novo século.

A ideia central desta pesquisa surgiu no desenvolvimento de minha prática pedagógica em sala de aula e da observação de situações críticas no âmbito escolar. A intensidade e a frequência de incidentes desagradáveis, envolvendo alunos e/ou outros participantes da comunidade interna da escola, levaram a questionamentos, não só sobre as causas da atual situação, como também sobre medidas passíveis de minimizar o problema que afeta a tranquilidade e o bom desempenho das atividades rotineiras. A maioria dessas crises leva a pensar na necessidade urgente de uma melhoria nas relações interpessoais dessa comunidade.

No intuito de apreender e tentar analisar as inúmeras facetas dessa questão, proponho o debate dos seguintes fatos: a dificuldade do aluno em se fazer ouvir na escola e a (re)organização do espaço das atividades escolares. Já é tempo, diria até que tardio, de dar maior importância à voz do aluno em nossas escolas.

Várias questões podem ser levantadas a respeito da significância da postura de “escuta” do aluno no ambiente escolar. Por que o professor ainda se mantém na posição de “dono da verdade” em sala de aula? Medo, desconfiança, falta de segurança e hábito, por parte dos professores podem ser justificativas para se conservar essa postura?

Penso que um aprofundamento do conhecimento sobre a voz pode mostrar facetas ainda pouco conhecidas desse “jogo” onde a palavra é o centro e as regras são reconstruídas a cada encontro.

Segundo Paul Zumthor (2005, p. 61):

[...] dentro da existência de uma sociedade humana, a voz é verdadeiramente um objeto central, um poder, representa um conjunto de valores que não são

(13)

comparáveis verdadeiramente a nenhum outro, valores fundadores de uma cultura [...]

É desse poder da voz que o professor teria medo de abrir mão? O controle da situação em sala de aula seria deslocado de um polo dominante para outro, que consideramos inexperiente e caótico, o aluno, porque não organizado segundo a lógica que nos interessa impor? Eis aí questões complexas que certamente não daremos conta de responder nesta pesquisa, mas que refletem a dificuldade dos professores em superar antigos paradigmas que, numa visão deturpada, consideram o jovem a partir do que eles não têm, do que não sabem, do que não são capazes e do que precisam receber do mundo adulto para, de fato, acontecerem.

Entretanto, a partir dos estudos da Organização das Nações Unidas em direção a um desenvolvimento humano sustentável e consequente geração do Relatório da Comissão

Mundial para a Educação no Século 21, coordenado por Jacques Delors (2003) e que

apresentou os novos fundamentos para a educação, um novo marco se estabeleceu, trazendo-nos o desafio de desenvolver o potencial das novas gerações, acompanhado de uma visão que entende o ser humano como portador de uma imensa riqueza, constituída por capacidades, talentos, habilidades e potenciais inatos, segundo publicação do Instituto Ayrton Senna,

Educação para o desenvolvimento humano, em 2004. Essas diretrizes passam a nortear as

nossas práticas pedagógicas na escola, trazendo como consequência um deslocamento do educando para o papel para protagonista do processo educativo e corresponsável por todas as ações que fazem parte desse contexto. Ao assumir esta postura, é indispensável dar “voz” a este aluno, que deve passar a mais que coadjuvante na cena educacional, onde se dará o seu próprio desenvolvimento e de suas competências pessoais, relacionais, cognitivas e produtivas.

Estas questões me levaram a delimitar meu estudo ao desenvolvimento da oralidade do aluno, nas oficinas de teatro. Procurei perceber de que forma esse desenvolvimento da oralidade favoreceria o empoderamento da voz desse aluno na comunidade escolar, modificando suas atitudes. Pretendo que essa voz seja observada como capacidade de expressão, mas não vou me ater aos aspectos da técnica vocal, linguística e/ou gêneros de discurso. Interessava-me saber como o aluno poderia ser capaz de se fazer ouvir dentro da escola. Como poderia conquistar o “espaço dessa escuta”, ser respeitado em suas ideias e reivindicações, participando, enfim, ativamente das decisões que, geralmente, lhe são impostas no dia a dia. A minha hipótese é de que o favorecimento da oralidade através do

(14)

teatro seja uma alavanca para o empoderamento da voz do aluno, na comunidade escolar, modificando a postura de passividade frente aos conflitos de seu cotidiano.

A ação desenvolvida na pesquisa incorporou o conceito de dialogia (BAKHTIN, 1992), ressaltando a ideia de polifonia, o que implicou ação interativa entre a multiplicidade de vozes presentes na escola. Procurei estimular a expressão dos vários pontos de vista particulares, dos múltiplos saberes e da variedade de significados, como forma de enriquecer o debate, de criar um ambiente propício à construção coletiva do conhecimento e de revelar pistas que pudessem orientar a ação. Para Bakhtin, não há apenas um locutor no processo de comunicação e sim vários, mesmo que estejam ausentes, pois o enunciado não é apenas uma frase, uma oração. Em suas palavras: “Cada enunciado é um elo da cadeia muito complexa de enunciados” (1992, p. 291). Os enunciados são construídos durante todo o processo de aprendizagem da língua materna e condensam, dessa maneira, uma polifonia de locutores. Assim, na construção de nosso conhecimento da língua, não nos apropriamos de um conjunto de palavras, verbos, mas sim de um conjunto de enunciados que serão incorporados a outros enunciados preexistentes e estes, por sua vez, formarão o repertório que nos possibilitará uma comunicação adequada na sociedade.

Se nos apropriamos de enunciados preexistentes, apropriamo-nos da “fala” de outros, ou melhor, incorporamos outros locutores ao nosso enunciado. Assim, a multiplicidade de locutores está intrinsecamente relacionada à multiplicidade de enunciados que se inter-relacionam. Dessa forma, entendo que a fala é amplamente influenciada pelas experiências vivenciadas na escola e estas são, na maioria das vezes, desencorajadoras, traumáticas e dolorosas para os alunos.

Nesta pesquisa, resolvi ser uma espécie de porta-voz de meus alunos, que gritam enquanto muitos fingem não ouvir... E assim assumir riscos, na tentativa de dar voz ativa a estes sujeitos. Faço isso porque acredito no tipo de teatro que me proponho a fazer.

Com a intenção de definir uma metodologia de pesquisa mais apropriada à investigação do objeto de estudo em questão, pontuou-se a necessidade de realização de um procedimento que contribuísse não somente para o enriquecimento do conhecimento científico, mas que fomentasse também a reflexão e a construção de possibilidades de resolução dos problemas encontrados nessa prática educativa. Nesse contexto, considerei a metodologia da pesquisa-ação, como a melhor alternativa para este caso, no sentido de constituir espaços coletivos de reflexão sobre os problemas vivenciados pelo público-alvo em

(15)

questão. Afinal, “pela pesquisa-ação, é possível estudar dinamicamente os problemas, decisões, ações, negociações, conflitos e tomadas de consciência que ocorrem entre os agentes durante o processo de transformação da situação” (THIOLLENT, 1994 p. 19).

Considerando que nenhuma forma de se construir conhecimento científico é passível de neutralidade, pretendi, com a metodologia da pesquisa-ação, delinear coletivamente as possibilidades de resolução do problema proposto como ponto de partida desta pesquisa. É neste sentido que Thiollent (1994, p.15) afirma:

Na pesquisa-ação, os pesquisadores desempenham um papel ativo no equacionamento dos problemas encontrados, no acompanhamento e na avaliação das ações desencadeadas em função dos problemas. Sem dúvida, a pesquisa-ação exige uma estrutura de relação entre pesquisadores e pessoas da situação investigada que seja de tipo participativo.

Esta pesquisa-ação caracterizou-se pela ampla interação entre o pesquisador e os participantes, buscando analisar coletivamente a importância da prática teatral voltada para o desenvolvimento da conscientização.

Dessa forma, este trabalho estabeleceu contato direto com os atores da pesquisa, através da prática teatral, permitindo-lhes um encontro maior consigo mesmos, com a coletividade e com o meio que os cerca. Procurei compreender, ainda, como o teatro contribui para uma abertura sensível a um pensar e um agir, mais críticos e reflexivos, frente aos problemas sociais encontrados no cotidiano.

No Capítulo 2 – A escola que faz calar, procuro apresentar um panorama da estrutura escolar vigente na maioria das escolas atuais, apoiada nos estudos de Foucault (1977) sobre o sistema disciplinar das escolas, correlacionando essa estrutura à dificuldade do aluno em se movimentar e expressar suas opiniões nesse modelo de instituição. Ainda neste capítulo, levanto alguns questionamentos sobre a prática da violência, inclusive simbólica, constatada na escola, elucidada por conceitos de Bourdieu (2001), mas dialogando com Abramovay e Rua (2002), acerca dos impasses de comunicação entre os segmentos da comunidade escolar; aponto os desafios que a meu ver um educador crítico enfrenta para estabelecer uma prática dialógica, baseada nos princípios de Paulo Freire (1996) sobre a educação emancipadora. Apresento a Escola da Ponte, em Portugal, como exemplo de mudança possível. Finalizo a

(16)

seção com o indicativo de Assmann (1999), a respeito da necessidade de “reencantar” a educação no mundo atual.

No Capítulo 3 – A escola que escuta, apresento uma conceituação de oralidade, baseando-me em Havelock (1995) e Zumthor (1977), reconhecidas autoridades no assunto. Relacionando a oralidade à performance, aproximo desta forma esses conceitos da prática teatral, que é meu foco. A seguir, faço considerações sobre o desenvolvimento da oralidade do aluno, conforme estabelecido na Lei de Diretrizes Nacionais do Ensino Básico (BRASIL, 1996) e nos Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 1998), e a forma irregular como isso ocorre na prática escolar.

No Capítulo 4 – práticas pedagógicas a favor da Oralidade, analiso as possíveis práticas inovadoras no processo ensino - aprendizagem que, no meu entender, favoreceriam o desenvolvimento da oralidade na escola, à luz do pensamento de arte-educadores, como Duarte Jr. (1986a; 1986b; 1988; 2001) e Farias (1989), aliados a Augusto Boal (1977; 1997), e dialogando sempre com Paulo Freire (1977; 1980; 1994, 1996a; 1996b; 2001). Faço correlação com as ideias de Jacques Rancière (2012), a respeito do espectador emancipado que desejo promover nas minhas práticas. Apresento ainda a descrição da Gincana do Colégio Serravalle, como um exemplo de prática socializadora que traz a festa e a ludicidade como elementos norteadores da aprendizagem.

No Capítulo 5 – Favorecendo a Oralidade através do Teatro na escola, desenvolvo a proposta de trabalhar a oralidade na escola, através da prática teatral, pela aproximação dos conceitos de jogo, a partir de Huizinga (2005) e Ryngaert (1996; 2009), justapondo as técnicas de improvisação e jogos teatrais de Viola Spolin (1982; 1999), como pressupostos teóricos para as práticas que utilizamos em nossas oficinas de teatro na escola. Descrevendo minha prática pedagógica, procuro destacar os aspectos relevantes que me levaram a considerar esse processo educativo como forma eficaz de estimular uma nova organização espacial da escola, promover a “escuta” atenta dos alunos e dar “voz” aos jovens, pois são os verdadeiros sujeitos do processo de aprendizagem. Explicitando os conceitos pedagógicos fundamentais à minha pesquisa, nesse levantamento das experiências, reavalio as possibilidades que vislumbro baseada nessa análise.

As considerações finais, no Capítulo 6, dão conta da necessidade de ampliar este estudo em outras direções e aprofundar as pesquisas que iniciei, reconhecendo as dificuldades encontradas, mas também renovando a esperança de vencer os desafios rumo à educação

(17)

dialógica e crítica, investindo na formação de jovens como cidadãos conscientes e participantes de sua comunidade.

2. A ESCOLA QUE FAZ CALAR

2.1. A ORIGEM DA ESTRUTURA ESCOLAR ATUAL

Muito das práticas escolares hoje são decorrentes de modelos concebidos nos séculos XII e XIII, que tiveram a descoberta do corpo como objeto e alvo do poder. Os sinais dessa grande atenção dedicada ao corpo são visíveis na intensificação das ações, tanto para conhecer, no sentido anátomo-metafísico, iniciado por Descartes, quanto para controlar ou corrigir as operações desse corpo, numa perspectiva técnico-política de dominação. Nasce daí uma teoria geral de adestramento, que tinha como finalidade desenvolver a “docilidade” dos corpos, tornando-os passíveis de submissão, utilizáveis, manipuláveis e controláveis. Segundo Foucault (1977, p.126)

“esses métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade, são o que podemos chamar as <<disciplinas>>, que

(18)

aumentam as forças do corpo numa perspectiva de utilidade econômica, ao mesmo tempo em que diminuem estas mesmas forças no aspecto político de obediência”.

O sistema disciplinar caracteriza-se por algumas técnicas particulares. Assim, a disciplina promove, em primeiro lugar, a distribuição dos indivíduos no espaço cercado, para prevenir e remediar os abusos, pois devia atender ao princípio da localização imediata, o

quadriculamento: cada indivíduo no seu lugar e em cada lugar, um indivíduo.

O espaço escolar segue a ordenação por fileiras, a partir do século XVIII, sendo implantada, tanto nas salas como nos corredores e pátios. Disposição similar aplica-se também às classes de idades, umas após as outras, atribuídas a cada aluno, nas tarefas e provas, bem como na sucessão de assuntos a serem ensinados, adotados segundo uma ordem de dificuldade crescente. A organização do espaço serial, determinando lugares individuais, tornou possível o controle de cada um e o trabalho simultâneo de todos, permitindo realizar uma série de distinções: segundo o nível de avanço dos alunos, segundo o valor de cada um, seu temperamento melhor ou pior, sua maior ou menor aplicação, sua higiene e até segundo a condição financeira dos pais. Nascia, assim, uma máquina de ensinar, mas também de vigiar, hierarquizar e recompensar; resultando em “quadros vivos”, a disciplina resolvia um dos grandes problemas da tecnologia científica e política do século: organizar o múltiplo, instituir mecanismos de controle e domínio. Tem, assim, uma dupla utilidade, sendo uma técnica de poder e um processo oficial de saber.

Por outro lado, o controle da atividade nessas instituições disciplinares se fará pelo horário, procurando-se garantir a constituição de um tempo integralmente útil. Registros apontados pelo autor, dão conta de uma divisão de tempo muito bem estabelecida nas escolas elementares, como o exemplo de tabelas onde constam: “8,45 entrada do monitor, 8,52 chamada do monitor, 8,56 entrada das crianças e oração, 9 horas entrada nos bancos, 9,04 primeira lousa, 9,08 fim do ditado, 9,12 segunda lousa etc.” (FOUCAULT, 1977, p. 137)

Foi definida ainda uma espécie de esquema anátomo-cronológico do comportamento, a elaboração temporal do ato, outra maneira de ajustar o corpo aos imperativos temporais: um corpo disciplinado é a base de um gesto eficiente; em seguida, uma articulação otimizada corpo-objeto, que estabelece uma relação do corpo com o objeto que manipula, formando uma engrenagem.

(19)

o sucesso do poder disciplinar deve-se ao uso de instrumentos simples: o olhar hierárquico (que exerce a vigilância contínua, fiscalização), a sansão normalizadora (que exerce a punição no caso de desvios) e o exame (que permite qualificar, classificar e punir).

Deste modo, a comparação das escolas com as prisões, no que se refere ao espaço físico, à composição arquitetônica, tornou-se possível. Salas distribuídas lado a lado, sem nenhuma comunicação, grades nas janelas, refeitório comunitário, muros altos e com grades, portões sem nenhuma visibilidade para o lado externo à escola.

Mas penso que, se a preocupação maior é com a segurança dos alunos, não é trancando-os numa espécie de cárcere que as coisas vão funcionar. Pois se mexe na estrutura arquitetônica da escola, mas não se modificam as relações humanas (postura pública), nem dos profissionais e nem dos alunos. Com isso quero dizer que os muros podem até proporcionar certa segurança, mas não resolvem os problemas de relações, e sim os dificultam mais, já que existem barreiras reais aos encontros. E ainda, até que ponto esses muros e grades podem proporcionar uma possível segurança com relação aos problemas de drogas e furtos, já que tais problemas estão além dos muros da escola, num espaço externo que continua a ser frequentado pelos mesmos alunos, e que não deixa de existir a partir da solução interna encontrada pela escola?

Talvez os muros, para muitas dessas escolas, tenham simplesmente represados esses fatores dentro delas, na medida em que a maioria destes problemas são problemas também relacionais e não somente arquitetônicos. Nesse caso, o muro torna-se um elemento evidente de violência simbólica, já que ele, por si só, faz com que comportamentos se modifiquem, que palavras sejam suprimidas e olhares ignorados.

A construção das escolas passou a obedecer a quase todas essas disposições e com uma peculiaridade importante, a posição da sala da diretoria permite ter uma visão global de todo o estabelecimento, um “olhar panóptico” – uma construção que se aproxima ao Panóptico de Bentham –, que é uma figura arquitetural dessa composição:

na periferia uma construção em anel; no centro, uma torre; esta é vazada de largas janelas que se abrem sobre a face interna do anel; a construção periférica é dividida em celas, cada uma atravessando toda espessura da construção [...]. Basta então colocar um vigia na torre central, e em cada cela trancar um louco, um doente um condenado, um operário ou um escolar. (FOUCAULT, 1977, p. 177)

(20)

Imagem 1 - Panóptico de Bentham na arquitetura.

Deste modo, como propõe Foucault, as características das prisões também estavam presentes nas instituições escolares. Observem a planta a seguir:

(21)

Imagem 2 - Planta baixa da área central do Colégio Estadual Raphael Serravalle

Assim, mesmo que não apresente efetivamente todas as características descritas, o posicionamento da sala da diretoria e da coordenação pedagógica remete a uma forma de vigilância efetiva. Nas escolas, as práticas transgressoras são “registradas” na forma de “ocorrências”, documentos redigidos pela diretoria e, obrigatoriamente assinados pelo transgressor, como uma forma de confissão de suas ações. Elas relatam as ações dos alunos e dos professores que, posteriormente, são arquivadas e avaliadas. Através dessas “ocorrências”, ambos podem ser suspensos ou expulsos (no caso dos professores, são

(22)

exonerados do cargo, por serem funcionários públicos, dependendo da gravidade do ocorrido). Todas essas evidências são encontradas hoje no Colégio Serravalle, onde realizamos esta pesquisa.

Como Foucault (1977, p. 155-156) resume, o “[...] edifício da Escola devia ser um aparelho de vigiar [...]”. Mas esse aparelho necessitava, para a sua eficácia, da disciplina e de uma vigilância hierárquica. Nessa perspectiva, a vigilância se efetiva na escola, com a presença do diretor, dos vice-diretores, da supervisão pedagógica, da orientação educacional, dos professores e finalmente dos alunos.

Imagem 3 – Alunos aguardando para entrar no colégio a partir do segundo horário.

Ainda hoje, em muitos casos, a entrada dos alunos na escola só é permitida se estiverem uniformizados. Já na portaria entregam uma “carteirinha” de identificação para o controle do comparecimento. Os alunos só podem sair da classe, em horário de aula, munidos de autorização expressa do professor. Estas são algumas das normas sobre circulação, no interior do estabelecimento escolar, que também verificamos no Colégio Raphael Serravalle, atualmente.

(23)

Imagem 4- Sistema de segurança através de câmeras.

Este aparelho, visualizado na ilustração, fica na sala da direção e permite o monitoramento de todas as áreas internas e externas do Colégio Serravalle.

Esse controle rigoroso, aliado a outras regulamentações, forma um sistema punitivo, composto por dispositivos disciplinares que fazem funcionar normas gerais da educação. Essas normas permitem a medicação dos desvios e a redução desses se daria pela aplicação de:

[...] micropenalidades do tempo (atrasos, ausências, interrupções das tarefas), da atividade (desatenção, negligência, falta de zelo), da maneira de ser (grosseira, desobediência), dos discursos (tagarelice, insolência), do corpo (atitudes incorretas, gestos não conformes, sujeira), da sexualidade (imodéstia, indecência). (FOUCAULT, 1977, p. 159)

O receio dos alunos quanto às sanções que vão receber, caso infrinjam as normas, demonstra a eficácia das penalidades, e o funcionamento da engrenagem do sistema punitivo.

Já a partir destas primeiras observações, é possível entender o visível desencantamento em que se acham todos os sujeitos envolvidos nas comunidades escolares, em diversas localidades deste País. Depoimentos de alunos, professores, gestores e pais, deixam claro, em atitudes e palavras, que a escola não corresponde às suas expectativas e vai perdendo cada vez mais sua função social. É possível sentir a gravidade da crise que assola nosso País e se reflete

(24)

nas relações interpessoais presentes na instituição escolar. No caso do Colégio Serravalle, por diversas vezes me vi envolvida, ora como integrante, ora como espectadora, em incidentes desagradáveis que demonstram como a violência permeia essas relações. Embora pareça reflexo natural do cotidiano da época atual, o aumento do individualismo e da aspereza no trato com os outros, não pode deixar de ser percebido por nós, educadores afinados com o pensamento de Dellors (2003) e Courtney (1980), que defendem a humanização como finalidade da educação neste novo século.

Richard Courtney (1980, p. 4) afirma que:

Precisamos proporcionar uma educação que possibilite os homens desenvolverem suas qualidades humanas. É esta a maior necessidade de nosso tempo. A crescente especialização de nossa sociedade científica tende a não se concentrar nas qualidades essencialmente humanas. Tanto em nossa educação quanto em nosso lazer, precisamos cultivar o ‘homem total’ e nos concentrarmos nas habilidades criativas do ser humano.

Afirmações como esta me levam a analisar alguns aspectos mais específicos, procurando razões para entender o fato de a escola ter chegado a esse quadro tão desolador.

Imagem 5 – Grades em janelas lembrando o sistema prisional.

(25)

Num primeiro momento, vamos examinar a questão da nossa escola quando comparada à uma instituição disciplinar e dos espaços físicos suprimidos ou modificados por ela. Essa escola, tendo como objetivo educar, acaba por inibir a criatividade dos alunos, ao lhes suprimir espaços, deixando-os cada vez mais trancados em sala de aula. Dentro das salas são confinados em suas carteiras, limitados nos seus gestos e calados em suas expressões verbais. É comum ouvirmos queixas, quando os alunos passam a ser ouvidos sobre seu cotidiano nas salas de aula, como fizemos nas oficinas de teatro, após se sentirem mais seguros: “na aula da professora tal, eu nem me mexo para ela não implicar comigo” ou “se

eu perguntar alguma coisa ou falar que não entendi, aí sim ela vai me chamar de burro e não vou ter nenhuma chance na prova” , são algumas falas.

A escola, na maioria das vezes, ignora a presença de alunos que necessitam de movimento e de espaços diferentes de comunicação, praticando claramente uma violência simbólica, impondo o que ela considera como o melhor espaço. A violência simbólica é o tipo de violência mais difícil de ser percebida, sendo praticada não só no interior da escola, não só pelos adolescentes, mas, acredito, pela sociedade de um modo geral, já que é o tipo de violência onde o poder está por toda parte,

não é inútil lembrar que - sem nunca fazer dele, numa outra maneira de o dissolver, uma espécie de círculo cujo centro está em toda parte e em parte alguma - é necessário saber descobri-lo onde ele se deixa ver menos, onde ele é mais completamente ignorado, portanto, reconhecido: o poder simbólico é , com efeito, esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem. (BOURDIEU, 2001, p. 7-8)

As pesquisadoras Abramovay e Rua (2002, p. 335) percebem também esta dificuldade de identificar a violência simbólica, e o quanto ela é recheada de poder. Elas observam que:

A violência simbólica é mais difícil de ser percebida do que a violência física, porque é exercida pela sociedade quando esta não é capaz de encaminhar seus jovens ao mercado de trabalho, quando não lhes oferece oportunidades para o desenvolvimento da criatividade e de atividades de lazer; quando as escolas impõem conteúdos destituídos de interesse e de significado para a vida dos alunos.

Esta situação é evidente na maioria das escolas em que trabalhamos, e particularmente no Colégio Serravalle. A distância que existe entre o currículo formal e a realidade do mundo contemporâneo é sempre questionada pelos educandos, quando lhes é dada qualquer

(26)

oportunidade de justificar seu desinteresse pelas aulas. Mas quem vai dar valor à opinião de jovens que são tidos como inaptos, sem visão de futuro e/ou incompetentes? Quem vai ouvi-los, se é dessa forma que são visualizados pela instituição escolar?

Muitos educadores sabem que as queixas desses alunos têm fundamento. No Colégio Raphael Serravalle, não é diferente. Os professores não se acham confortáveis em sala, sentem-se também insatisfeitos com os resultados dessa prática autoritária, mas são temerosos demais para promover mudanças, acostumados a um labor que não lhes custa pesquisa e esforços mais profundos, e se encontram, de certa forma, imersos no afã dessa correria, que os impele a trabalhar em três turnos para sobreviver com míseros salários. Posso dizer que são como cargas pesadas a deslizar descontroladamente numa ladeira, sem freios, certos que nada auspicioso os espera ao fim de tudo.

Ao lado do engessamento dos currículos, permanece a questão espacial que constrange a todos que penetram esse ambiente. A educadora Guacira Louro(1997, p. 58) nos diz que:

A escola delimita espaços. Servindo-se de símbolos e códigos, ela afirma o que cada um pode (ou não pode) fazer, ela separa e institui. [...] O prédio escolar informa a todos/as sua razão de existir. Suas marcas, seus símbolos e arranjos arquitetônicos ‘fazem sentido’, instituem múltiplos sentidos, constituem distintos sujeitos.

Imagem 6 – Portões são trancados com cadeados, limitando trânsito.

Observando as afirmações que descrevem essa realidade escolar, onde muros e grades invadem o espaço cotidiano, posso dizer que há um esquadrinhamento do espaço, uma

(27)

limitação do trânsito, tendendo às vias de mão única, por artefatos que nos interceptam: são barreiras que impedem o livre fluxo das pessoas e das comunicações (internas e externas) entre elas. Por outro lado, formatam a vigilância das condutas corporais e verbais de quem por ali circula. Que estratégias podemos usar para quebrar essas barreiras?

Podemos perceber que é como se a escola caminhasse para se tornar um espaço de segurança máxima, onde somente as pessoas autorizadas podem entrar e onde todos os atos são vigiados, seja por guardas ou por vigilância eletrônica: Sorria! Você está sendo filmado!

Imagem 7 - câmera instalada no corredor central do Colégio Serravalle.

A instituição de muros e grades em muitas escolas é uma das evidências de tal vigilância, onde tudo é controlado, entradas e saídas, atitudes e conversas, palavras e sussurros... Muitas vezes, atos espontâneos são trocados por reproduções ou códigos, para os adolescentes não serem descobertos em suas reais atitudes. Michel Foucault (1977 p. 154) avalia que,

Toda uma problemática se desenvolve então: a de uma arquitetura que não é mais feita simplesmente para ser vista (fausto dos palácios), ou para vigiar o espaço exterior (geometria das fortalezas), mas para permitir um controle interior, articulado e detalhado – para tornar visíveis os que nela se encontram; mas geralmente, a de uma arquitetura que seria um operador para a transformação dos indivíduos: agir sobre aquele que abriga, dar domínio sobre seu comportamento, reconduzir até eles os efeitos do poder, oferecê-los a um conhecimento, modificá-los.

(28)

Nesta nova perspectiva apontada pelo autor, a proposta de uma educação dialógica, que busco em minha prática, tem como um de seus objetivos substituir a autoridade intelectual e moral pela interação e investigação. Se o educando estiver curioso a respeito do conhecimento e plenamente envolvido na ação pedagógica, não haverá necessidade de pressões externas que interfiram em seus atos, uma vez que estarão direcionados ao objeto de conhecimento. Acho que vale a pena investir numa relação de afeto entre educador e educando, em uma verdadeira relação de troca, de diálogo. Quando falamos de afeto, segundo Wendell (2009, p.61), estamos fazendo referência primeiramente à noção de relação interpessoal, na qual vê-se o aprendizado da convivência baseada numa educação para o desenvolvimento humano, ainda conforme orientações de Dellors (2003).

Nesta relação e convívio com as outras pessoas, é preciso desenvolver “a capacidade de se colocar no lugar do outro”, respeitando suas diferenças, sabendo que “interagir é estar atento [...] saber falar, saber ouvir, ensinar falando, aprender ouvindo”, mantendo um compromisso com o coletivo (ANDRÉ; COSTA, 2004, P.78-79, apud Wendell, 2009, p.61).

Se nem sempre é fácil conter a euforia natural dos jovens diante de situações novas, entendo que essa característica pode ser usada como uma força promotora da aprendizagem. Durante o trabalho em nossas oficinas, raramente me defrontei com as atitudes de violência e desrespeito que acontecem constantemente nas salas de aula, conforme relatos dos professores de minha escola.

O que importa, para muitas escolas, é conservar sua imagem, ou seja, não ter alunos perambulando pelo edifício escolar, mas sem se preocupar necessária e objetivamente com o conteúdo que o professor está lecionando. É “importante” não deixar alunos fora da sala de aula, pois estar fora da sala de aula é associado, principalmente, a termos como malandragem e falta de produtividade.

O sair da sala de aula pode ser, às vezes, mais produtivo do que ficar dentro dela, sendo mais importantes a postura do educador e as estratégias de mediação do conhecimento que se propõem em sua prática. Porém, a noção comumente aceita é de que espaços livres são

perigosos e por isso têm de ser substituídos ou eliminados, cada vez mais rápido, diante da

eterna expectativa de invasão do ambiente escolar. O perigo aqui remete a outras atividades para as quais os alunos se tornam disponíveis, ao ocuparem outros espaços da escola. Uma evidência dessas situações é a desorganização que se instala, quando há falta de professores, e

(29)

os alunos ficam espalhados pelos corredores, sem uma atividade específica, o que ocorre com muita frequência nas escolas públicas. Para a administração escolar, muitas vezes o mais interessante é ter controle sobre o fluxo de pessoas no espaço, assim,

Determinando lugares individuais tornou-se [...] possível o controle de cada um e o trabalho simultâneo de todos. Organizou uma nova economia de tempo de aprendizagem. Fez funcionar o espaço escolar como uma máquina de ensinar, mas também de vigiar, de hierarquizar, de recompensar. (FOUCAULT, 1977, p. 126)

A realidade escolar, sobretudo a realidade da escola pública em nosso País, tem dado sinais de um paulatino esgotamento do paradigma moderno de reprodução e socialização do conhecimento, a partir de práticas pouco dialógicas de ensino-aprendizagem, paradigma que se estrutura segundo a perspectiva da homogeneidade e que dá valor de totalidade aos fragmentos de conhecimento que manipula. Vários são os exemplos deste esgotamento, como mostram os resultados do ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio), nos últimos anos: alunos que concluem os cursos sem adquirir os requisitos básicos para o ingresso no mercado de trabalho ou numa Instituição de Ensino Superior; alunos que não são realmente leitores e muito menos demonstram domínio sobre conceitos e cálculos matemáticos, conforme mostram os relatórios dos professores universitários encarregados dos vestibulares e a longa lista de empregos disponíveis à espera de pessoas com melhor qualificação, independentemente do seu grau de escolaridade. Embora não seja o único objetivo da escola, o preparo para o mercado de trabalho é uma das exigências da sociedade capitalista em que vivemos, sendo mais importante ainda para as classes menos privilegiadas, que contam com o início das atividades profissionais dos filhos, como uma forma de alívio das despesas domésticas.

Além disso, há sérios problemas disciplinares que vêm se avolumando no interior das instituições de ensino, talvez por falta de melhor preparo do professor para lidar com as novas realidades socioeducacionais, como a falta de acompanhamento dos estudos dos adolescentes pelos pais e a desestruturação da família, por exemplo, conforme já citado em Dellors (2003). A esse respeito, considerações serão detalhadas mais adiante sobre o pensamento de Paulo Freire, na Pedagogia da Autonomia (1996b), e de Edgar Morin (2000), no livro Sete saberes

(30)

É interessante observar que reforçamos essa estrutura escolar, à medida que executamos tarefas e controles arbitrários (ordens impostas, vigilâncias e castigos). Atitudes que silenciam os desejos éticos dos sujeitos envolvidos na aprendizagem, impedindo a circulação de saberes e, consequentemente, atrofiando mundos possíveis, que urgem por ser imaginados, desejados e experimentados, se direcionados a uma nova construção da relação ensino-aprendizagem. Esses controles reforçam concepções e práticas de saberes descontextualizados, como se pudéssemos ensinar sem fazer conexões com a vida, onde esses saberes são produzidos, ignorando os embates e conflitos que oficializaram a seleção de alguns saberes e a exclusão de outros. Embora tenhamos a percepção de que a construção dessa instituição social – a escola – tenha sido sedimentada historicamente ao longo dos anos, alicerçando-se em outros controles de poder, desde os religiosos até os oriundos dos governos e dos mercados, cabe a nós romper com as grades que transformam a escola em agência burocrática e subalterna, mera reprodutora de uma sociedade capitalista e desumanizadora.

Imagem 8 – Entrada dos alunos a partir do segundo horário, após longa espera.

Quem se interessa em compreender a escola tem a esperança e o desejo de torná-la mais igualitária, mais aberta a todas as diferenças e movimentos que a constroem e reconstroem, em práticas intensificadoras da democracia. Quem assim pensa, poderia oscilar diante do propósito de promover uma prática pedagógica como exercício de liberdade? Poderia professar, ainda, a continuidade do uso de posições rígidas e autoritárias? A retirada das barreiras que isolam a escola do mundo e o arejar dos currículos, em práticas dialógicas e renovadoras, ambos ocorrerão à medida que sujeitos atuantes, nos campos educacional e

(31)

social, intensificarem suas ações no sentido de aliar a vida e a escola, trazendo para este espaço as questões, necessidades, urgências e desejos daquela. Não será batalha solitária, exigindo união de forças e interesses certamente contrários à classe dominante, mas nem por isso poderá dar lugar a ações de violência, para que não passemos a reproduzir a opressão que nos oprime, conforme já nos alertava Paulo Freire, em sua Pedagogia do Oprimido (1994). Para isso, serão necessárias múltiplas ações e interações que, de dentro da escola, se articulem ao fora dela, seu exterior, e vice-versa, num amplo exercício de reflexão e ressignificação da instituição escolar.

Este caminho não indicaria que precisamos manter um respeito pelos saberes dos educandos, pelos seus direitos de ampliar seus conhecimentos, pelas necessidades geradas em sua própria vida, em uma aprendizagem compartilhada, baseada na troca, através de uma comunicação intensa? E, principalmente, de uma escuta atenta?

O adolescente deveria ter a possibilidade de absorver o discurso ou não, ser consciente dos fatos a partir de uma leitura filtrada de algo que talvez se chame de realidade. Ele deveria tentar desenvolver a possibilidade de opinar e de expor as suas metas. Construir a sua própria existência no mundo, deixar marcas na vida do outro. E perceber que, se existe um futuro, este deveria ser imaginado por ele mesmo, para assim projetar, pelo menos em parte, a sua construção. Porém, muitos adolescentes nem percebem que essa exclusão, esse sentir-se diferente, também podem fazer parte de um jogo de poder. Assim, quem sabe, possamos contribuir na construção ideológica, social, corporal, política, educacional desses sujeitos com quem trabalhamos, na verdade nossos parceiros, transformando essa escola que muitas vezes propõe a passividade, ao invés de incentivar a criatividade.

Convém salientar que tais desafios não se resumem à atuação da escola e de seus profissionais, pois esta é uma questão posta para toda a sociedade. Para delimitar o papel da escola, é necessário começar pelo seu elemento mais básico: a motivação dos estudantes para o propósito do educar. É cada vez mais evidente na sociedade a falta de estímulo e interesse, de estudantes e da família, em relação à escola, pois esta não tem dado conta do papel de inserção dos sujeitos, qualitativamente, no contexto social. Para muitos estudantes, a escola não tem nenhum sentido, pois não garante a sua aprendizagem e é, muitas vezes, um local desprovido de prazer e criatividade.

(32)

A meu ver, se a escola conseguir seduzir o estudante para o desejo de aprender, seja criança, adolescente ou adulto, já estará dando importantes passos na concretização de uma educação enquanto compromisso social. Dessa forma, Assmann (1999, p. 29) faz um significativo comentário sobre as características da escola, que, diante de tanta novidade e informação, precisa possibilitar ao estudante reconhecê-la como um espaço de descobertas, conquistas e aprendizagem, proporcionando prazer e ternura:

O ambiente pedagógico tem de ser lugar de fascinação e inventividade. Não inibir, mas propiciar, aquela dose de alucinação consensual entusiástica requerida para que o processo de aprender aconteça como mixagem de todos os sentidos. Reviravolta dos sentidos-significados e potenciamento de todos os sentidos com os quais sensoriamos corporalmente o mundo. Porque a aprendizagem é, antes de mais nada, um processo corporal. Que ela venha acompanhada de sensação de prazer não é, de modo algum, um aspecto secundário.

Fica assim evidente a necessidade de aliar o trabalho pedagógico a um processo de valorização dos sentidos, pois educar pode ser comparado a um ato de conquista da atenção dos estudantes. Uma prática educativa pautada somente no aspecto cognitivo do ser humano perde o sentido para o aprendiz, por isso é necessário proporcionar o encantamento em relação às possibilidades de descoberta dos conhecimentos e dos mistérios da vida. Enfim, se a escola não abre espaço para a experiência coletiva do prazer, continuará perdendo o seu crédito e, junto com ele, seus estudantes. Ao se distanciar da experiência lúdica, a escola torna-se apenas instrutiva, não sendo mais compatível com a sociedade atual e os anseios dos novos aprendizes.

Assmann (1999, p. 34) é decisivo quanto ao rumo da educação nesse sentido:

O reencantamento da educação requer a união entre sensibilidade social e eficiência pedagógica. Portanto, o compromisso ético/político do/a educador/a deve manifestar-se primordialmente na excelência pedagógica e na colaboração para um clima esperançador no próprio contexto escolar.

O autor reafirma, ainda, a responsabilidade do docente em tornar visível o gozo de estar colaborando com uma união profunda entre processos vitais e de conhecimento.

(33)

A respeito dos processos de conhecimento, concordamos com Morin (2000), quando ele sustenta que o ser humano é formado por uma identidade complexa, individual, e outra identidade comum, transpessoal e terrena. Para dar conta da educação, no âmbito da complexidade do ser humano, o autor nos alerta para saberes necessários à educação do

futuro. Vamos rever brevemente o que Gadotti (2003, pgs. 118-119) nos informa a respeito

desses saberes:

1º – Conhecer o que é conhecer, prestar atenção à “cegueira do conhecimento”. Ao conhecer, o ser humano pode ser levado ao erro, à ilusão. É um risco que assume todo aquele que se coloca no caminho do conhecimento. Aprender que o próprio erro faz parte desta busca. Existe muito conhecimento produzido pela nossa fantasia. Sem querer, mentimos para nós mesmos. Nossa memória falha. Daí a necessidade do combate incessante pela lucidez.

2º – Conhecer o que é pertinente. Não aprender por aprender ou aprender qualquer coisa. Selecionar o que aprendemos. Aprender o global, o complexo, o contexto. Relacionar o todo com as partes. Superar as antinomias sujeito-qualidade, quantidade-qualidade, razão-emoção, liberdade-determinação, essência-existência, superar a racionalização, isto é, a falsa racionalidade.

3º – Ensinar a condição humana. O ser humano, na sua existência individual e cósmica, é tudo que devemos aprender. Conhecer o sentido de nossas vidas, a origem e o destino do universo. Fazemos parte de um universo em expansão, em auto-organização viva e permanente.

4º – Ensinar a identidade terrena. Nosso destino comum no planeta. Compartilhamos, com outros seres e coisas, a vida num planeta no qual nosso destino é comum a todos os que fazem parte dele. Nossa identidade terrena nos liga ao destino cósmico, muito mais do que a uma sociedade. Educar para adquirirmos e aperfeiçoarmos nossa identidade e consciência terrenas.

5º – Educar para enfrentar as incertezas. Aprender a navegar no oceano do imprevisto, do inesperado, do incerto. A incerteza faz parte da história humana. “O futuro permanece aberto e imprevisível”, nos diz o autor.

6º – Ensinar a compreensão. O fim da comunicabilidade humana não é explorar o outro, tirar proveito dele, mas compreendê-lo melhor. Educar para superar a visão mercenária e capitalista de comunicar para manipular. Educação omnilateral,

(34)

multicultural, integral. Comunicação não apenas racional, intelectiva, mas afetiva e emocional, intersubjetiva, aberta a reaprender sempre.

7º – Aprender a ética do gênero humano. O novo paradigma é a Terra. A Terra vista como uma única comunidade. A ética não se confunde com uma postura moral individual. Ela representa um comportamento novo em face de uma nova compreensão do ser humano, como indivíduo/sociedade/espécie. Não tem sentido sermos inimigos uns dos outros, pois somos hóspedes de uma mesma Terra, cidadãos do mundo. A Terra é uma Mãe-Pátria comum.

Talvez consideremos que tudo isso é, óbvio, ideal. Mas, então, por que não o fizemos até agora? Pode-se dizer que há uma enorme distância entre perceber e fazer. Para que não permaneçam no papel, como a maioria das generalizações dos discursos das grandes conferências mundiais, esses grandes ideais da educação necessitam ser assumidos pelos agentes da educação, por nós professores. Só assim serão legitimados pelo coletivo. Então, a mudança se dará, tal qual aconteceu na Escola da Ponte, em Portugal, que escolhi como exemplo para ilustrar essa possibilidade de mudança.

A Escola da Ponte, em Vila das Aves, é mais que uma escola com um ambiente amigável e solidário de aprendizagem. É uma comunidade educativa. Mais do que um projeto de educação para a cidadania, a Escola da Ponte se distingue pela práxis de educação na cidadania. É uma comunidade profundamente democrática e autorregulada, onde todos os seus membros concorrem genuinamente para a formação de uma vontade e de um saber coletivos. Suas normas e regras decorrem da necessidade sentida por todos de agir e interagir de certa maneira, de acordo com uma ideia coletivamente partilhada do que deve ser o viver e conviver em um ambiente propício para a aprendizagem.

Outro aspecto, talvez o mais significante na experiência inovadora da Escola da Ponte é a reformulação, absolutamente radical, dos papéis do “professor” e do “aluno”, como membros de uma comunidade educativa. Os professores não estão no centro da vida escolar, mas em permanente movimento de acompanhamento, orientação e reforço do percurso de aprendizagem e desenvolvimento pessoal e social de cada aluno. O currículo não existe em função do professor, mas é uma permanente referência desse percurso do aluno, solidariamente partilhado por todos.

A Escola da Ponte é uma surpresa para qualquer visitante pela aparente subversão de um conjunto de mecanismos e rituais que nos acostumamos a associar à organização e ao

(35)

funcionamento de uma escola. Na Ponte, tudo parece funcionar numa outra lógica. Sem aulas, sem turmas, não há também fichas ou testes elaborados por professores para a avaliação dos alunos. Além do espaço absolutamente democrático, sem divisórias em classes, o tempo, sem toques de campainha, também obedece a uma outra ordem, a da necessidade do trabalho conjunto. Comentando o que observou em visita a essa escola Rubem Alves (2011, p.45) afirma:

Na escola da Ponte, as crianças que sabem ensinam as crianças que não sabem. Isso não é uma exceção. É a rotina do dia a dia. A aprendizagem e o ensino são um empreendimento comunitário, uma expressão de solidariedade. Mais que aprender saberes, as crianças estão aprendendo valores. A ética perpassa silenciosamente, sem explicações, as relações naquela imensa sala.

Consultando o Projeto Educativo da Escola da Ponte, que é dirigida por José Pacheco, destaquei alguns princípios que me parecem muito relevantes:

2- A intencionalidade educativa que serve de referencial ao projeto Fazer a Ponte orienta-se no sentido da formação de pessoas e cidadãos cada vez mais cultos, autónomos, responsáveis e solidários e democraticamente comprometidos na construção de um destino coletivo e de um projeto de sociedade que potenciem a afirmação das mais nobres e elevadas qualidades de cada ser humano.

3- A Escola não é uma mera soma de parceiros hierarquicamente justapostos, recursos quase sempre precários e atividades ritualizadas – é uma formação social em interação com o meio envolvente e outras formações sociais, em que permanentemente convergem processos de mudança desejada e refletida. (Projeto Educativo, disponível em http://www.escoladaponte.com.pt) escoladaponte.com.pt

Embora se perceba estes mesmos princípios, quase com os mesmos termos, em grande parte dos projetos educativos das outras escolas, incluindo o Colégio Serravalle, a diferença está na sua ampla aplicação, na efetiva prática deles na escola. A Escola da Ponte vive esses princípios, ao contrário das outras em que são meras palavras em um papel que poucos leem e menos ainda aplicam.

Quanto aos resultados que a Escola da Ponte atinge na educação com seu projeto diferenciado, nada melhor que transcrever parte do Contrato de Autonomia concedido à escola pelo governo do seu país:

(36)

Desde 1976 que o Projecto Fazer a Ponte vem sendo desenvolvido numa lógica de progressiva autonomia, antecipando, por um lado, inovações curriculares e pedagógicas que a administração educativa acaba, mais tarde, por acolher e, em parte, tentar generalizar ao todo nacional (de que é um bom exemplo, entre outros, o Decreto-Lei nº6/2001, de 18 de Janeiro, que aprovou a chamada Reorganização Curricular do Ensino Básico) e dando origem, por outro, a um modelo de organização de escola que, em muitos aspectos, diverge do modelo prevalecente de escola pública estatal.(...)

Realizada, em 2003, a Avaliação Externa do Projecto Fazer a Ponte e conhecidas e sufragadas superiormente as conclusões e recomendações formuladas pela Comissão de Avaliação, que, de uma forma irrefragável, reconheceram a especificidade, a coerência e a sustentabilidade das práticas educativas e de organização pedagógica da Escola, estão reunidas as condições para celebração do contrato de autonomia entre a Escola e o Ministério da Educação.(Contrato de Autonomia, concedido pelo Ministério de Educação de Portugal à Escola da Ponte, Vila das Aves, 14 de Fevereiro de 2005, disponível em http://escoladaponte.com.pt).

Concluindo essa espécie de voo panorâmico sobre uma escola “dos sonhos”, como é chamada a Escola da Ponte por Rubem Alves (2011), deixo as palavras de seu diretor José Pacheco, em entrevista ao portal brasileiro Educacional (http://www.educacional.com.br), como esperança de concretização: “Talvez as “pontes” que vão sendo criadas em Portugal venham a atravessar o Atlântico, para desassossegar os espíritos e participar da abertura de outros “buracos”...Aqui ele se refere a “buracos” como o espaço aberto com a derrubada de paredes entre as salas de aula.1

A descoberta dessa escola representou para mim uma extraordinária iluminação e acendeu uma esperança de continuidade na minha pesquisa.

Aceitando esse desafio de mudança, empreendi uma nova prática nas oficinas de teatro do Serravalle. Tentando realizar uma educação dialógica, logo me deparei com um fator relevante: como dialogar com alunos acostumados somente a ouvir? Como vencer a

1 O modelo revolucionário da Escola da Ponte, referência mundial em educação, foi a inspiração para o Projeto Âncora – ONG em Cotia, São Paulo, com 17 anos de atuação na área social – lançar sua escola de educação básica. Assim como a portuguesa, a Escola Projeto Âncora não tem séries; alunos de 6 a 10 anos estudam juntos, desenvolvem projetos de pesquisa de acordo com suas afinidades e são orientados por professores e pedagogos. O projeto pedagógico conta com a colaboração do educador português José Pacheco, fundador da Escola da Ponte.

(37)

passividade com que eles aceitam as verdades prontas que lhe são repassadas? Por que lidam tão mal com situações onde há a possibilidade de se expressar oralmente?

Esse aspecto se destacou como muito importante para alavancar todo o processo: a oralidade dos nossos estudantes passou a ser meu foco de observação, orientando minha prática para sua potencialização nas oficinas de teatro.

3. A ESCOLA QUE ESCUTA 3.1 A ORALIDADE

(38)

Segundo Havelock, o desenvolvimento crescente de pesquisas, a partir dos anos de 1960, no campo de estudos que investiga as relações entre o oral e o escrito, coloca os conceitos de oralidade e de oralismo em uma situação diferente da que ocupavam anteriormente, ganhando maior importância acadêmica. Esses conceitos contribuem para a caracterização de sociedades que, dispensando o uso da escrita, têm se valido da linguagem oral em seus processos de comunicação. As expressões têm sido utilizadas também para identificar certo tipo de consciência, supostamente criada pela oralidade (Havelock, 1995). Essas preocupações têm sido centrais aos estudos realizados nesse campo.

A “oralidade primária” é a classificação que é dada à oralidade de uma cultura totalmente desprovida de qualquer conhecimento da escrita ou da impressão. É “primária” por oposição à “oralidade secundária”, da atual cultura de alta tecnologia, na qual uma nova oralidade é alimentada pelo telefone, pelo rádio, pela televisão ou por outros dispositivos eletrônicos, cuja existência e funcionamento dependem da escrita e da impressão, de acordo com Walter Ong (1998).

Antes da invenção da escrita, a expressão do pensamento e a linguagem humana tiveram forma apenas em significados orais, corporais e rituais. Sem a escrita, a educação das pessoas fazia-se pela prática e os conhecimentos eram transmitidos às gerações futuras através do corpo, tanto pela fala, quanto pelo jogo, símbolos e performances. A distância entre o emissor e o receptor era a do alcance do som da voz.

Estranhando que, a despeito de tantas disciplinas instituídas, ainda não se tenha uma ciência da voz, Zumthor (1977, p. 11) assim a descreve:

[...] a voz é querer dizer e vontade de existência, lugar de uma ausência que, nela, se transforma em presença; ela modula os influxos cósmicos que nos atravessam e capta seus sinais: ressonância infinita que faz cantar toda matéria [...].

E justifica esta lacuna, em decorrência de um antigo preconceito, segundo o qual todo produto da linguagem se identifica com uma escrita, tornando difícil o reconhecimento e a validade daquilo que não o é. Evidencia, assim, a antiga tendência de se sacralizar a letra.

A prática de sacralização da letra é evidente na escola onde trabalhamos, sujeitando os educandos a extenuantes exercícios escritos de análise gramatical, completamente descontextualizados do cotidiano e ignorando qualquer tipo de linguagem oral, seja a

Referências

Documentos relacionados

continua patente a ausência de uma estratégia de desenvolvimento sustentável, o que poderá ser consequência ser tão insignificante que tal preocupação ainda não se

No final, os EUA viram a maioria das questões que tinham de ser resolvidas no sentido da criação de um tribunal que lhe fosse aceitável serem estabelecidas em sentido oposto, pelo

Nesse contexto, o presente trabalho tem como objetivo realizar testes de tração mecânica e de trilhamento elétrico nos dois polímeros mais utilizados na impressão

Os principais objectivos definidos foram a observação e realização dos procedimentos nas diferentes vertentes de atividade do cirurgião, aplicação correta da terminologia cirúrgica,

O relatório encontra-se dividido em 4 secções: a introdução, onde são explicitados os objetivos gerais; o corpo de trabalho, que consiste numa descrição sumária das

psicológicos, sociais e ambientais. Assim podemos observar que é de extrema importância a QV e a PS andarem juntas, pois não adianta ter uma meta de promoção de saúde se

libras ou pedagogia com especialização e proficiência em libras 40h 3 Imediato 0821FLET03 FLET Curso de Letras - Língua e Literatura Portuguesa. Estudos literários

A partir da junção da proposta teórica de Frank Esser (ESSER apud ZIPSER, 2002) e Christiane Nord (1991), passamos, então, a considerar o texto jornalístico como