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Organização social, propriedade e uso da terra

Como se constrói a marginalização de territórios agrícolas? Foi esta, recorda-se, a questão que se colocou de início. A questão pode ser posta de outro modo: que mecanismos explicam a desigual produção e distribuição espacial da riqueza? Limita-se, obviamente, o âmbito da questão ao espaço rural e às actividades que nele se desenvolvem. É, antes de mais, a relação entre a sociedade e o uso da terra que se pretende analisar. Posta a questão em termos de redistribuição da riqueza, surgem dois níveis importantes de análise: por um lado o dos processos sociais de apropriação da riqueza, o que remete para o domínio dos direitos de propriedade; e por outro, o da sua desigual produção o que, conjugado com o primeiro, conduz ao campo da renda fundiária.

Está-se, portanto, face a um problema de produção e apropriação de renda. Nestas condições, a teoria da renda fundiária, enquanto modelo explicativo da formação diferencial de uma mais valia, parece incontornável. Porém, esta teoria trata os preços e os direitos de propriedade como exógenos. Ora, a propriedade determina diferentes capacidades de adaptação ao sistema de preços e, nessa medida, é também determinante da hierarquização de territórios em função da renda. A configuração dos direitos de propriedade constitui pois um elemento central na definição do problema. Assim relativamente a este último aspecto, procura-se sustentação teórica no quadro da teoria dos direitos de propriedade. O objectivo não é, contudo, tentar uma síntese entre estes dois quadros teóricos distintos, mas, tão só, procurar em ambos instrumentos que permitam construir um referencial de análise.

A tarefa a que se dedicam os próximos capítulos é, pois, a de construir um referencial teórico de análise, sustentado simultaneamente na teoria da renda fundiária e na teoria dos direitos de propriedade.

Assim, dedica-se este capítulo à revisão de alguns desenvolvimentos teóricos em torno da questão da propriedade que se consideram centrais para orientar posteriormente a investigação. A primeira secção tem um carácter mais introdutório e genérico: retêm-se algumas ideias que constituem marcos teóricos importantes para a compreensão do papel da propriedade na organização das sociedades ocidentais actuais.

Como se viu já no capítulo anterior, a convivência de uma zona de apropriação privada do território com uma zona comunal é uma característica das comunidades de aldeia. Por esse facto, dedica-se a segunda secção do capítulo ao estudo dos diferentes regimes de propriedade, tendo como interrogação central a existência ou não de diferente eficácia na exploração e gestão dos recursos naturais.

Na terceira secção discute-se, à luz da teoria dos direitos de propriedade, um problema central na reconfiguração dos espaços rurais: a produção de bens públicos de carácter ambiental no espaço rural, bem como as características da oferta e procura desses bens. Em

particular, constitui preocupação central discutir a capacidade de o mercado e os direitos de propriedade regularem a produção desse tipo de bens.

Numa última secção do capítulo faz-se uma reflexão de síntese, em torno das mudanças sociais e da relevância dos direitos de propriedade na explicação das transformações das formas de uso dos recursos naturais.

2.1 - A origem do conceito de propriedade contemporânea

Num texto bem conhecido12 e polémico, Pisani defendia que “a concepção francesa do direito de propriedade é um «acidente histórico»; [...] que a propriedade não é portanto um elemento absoluto mas circunstancial.” “Que esta concepção francesa, [...] de modo algum corresponde às exigências e objectivos da nossa sociedade." “[...] que ela constitui uma anomalia e um obstáculo.” “Que o estudo das necessidades da nossa sociedade permite desenvolver uma nova definição das relações do homem e da terra [...].” “Que esta concepção pode ser concretizada [...]." (1977 : 19)

Esta posição, oriunda de um homem que assumiu grandes responsabilidades na vida política francesa, revela bem a controvérsia que envolveu historicamente a instituição social da propriedade privada da terra e que continua a encerrar nas sociedades actuais.

A relação da sociedade com a terra foi sofrendo transformações importantes na história das sociedades ocidentais e, na sua configuração actual, é relativamente recente. Bromley (1988: 25) identifica cinco grandes períodos. No princípio – até há aproximadamente dez mil anos – a terra distinguia-se pela sua irrelevância. Juntando-se e caçando as pessoas viam a terra como mero espaço e lugar. O seu significado social era reduzido.

O segundo período mostra um grande sentido de coesão de grupo e o crescimento do que designa por propriedade social da terra. Este foi o período das grandes cidades-estado. De facto, na sociedade romana os direitos de propriedade são rigorosamente definidos e extremamente limitados. “O formalismo extremo que acompanha a transmissão das propriedades fundiárias interdita a sua assimilação a uma mercadoria.” Apesar deste formalismo rigoroso, ou por causa dele, “o estatuto do solo aparece ao longo de toda a história romana como o problema fundamental dos confrontos sociais. Atravessando toda a Republica romana, a luta de classes tem um só tema e objecto: a questão agrária, o acesso à terra, a propriedade fundiária.” (Pisani, 1977: 32)

Esta era chega ao fim quando o império romano começa a declinar. Após a sua ruína (por não ter resolvido o problema do solo, sustenta Pisani) surge uma nova inovação institucional de “complexidade e sofisticação nunca vistas”: o feudalismo. Esta é a terceira era na história da propriedade da terra segundo Bromley.

A característica central do feudalismo é simples: governo através da intermediação da terra. A terra constituía o instrumento através do qual o estado centralizador, ainda incipiente, adquiria coerência por meio de um sistema articulado que conferia privilégios cedendo direitos sobre a terra. “O feudalismo actuava recrutando ao nível local aliados prometedores e elevando-os acima dos seus vizinhos” (Bromley, 1998: 25).

Repare-se que durante o feudalismo a propriedade fundiária não era redutível a um direito sobre a terra; como refere Guigou (1982: 18) “ela está intimamente ligada a um direito sobre os homens. A propriedade da terra confunde-se com o exercício de um poder sobre um território”.

Com a perda de um dos ingredientes fundamentais do feudalismo: a reversão para o rei dos domínios de terra após a morte do súbdito beneficiado, surgem as condições para o aparecimento da livre propriedade privada. A propriedade simplifica-se e cumpre novas funções. A multiplicidade de formas de apropriação, características do regime feudal, reduz- se à forma moderna de propriedade: a propriedade privada individual. Por outro lado, a nova ordem social, sustenta a estrutura de classes sociais na apropriação dos meios de produção e, por isso, necessita legitimar a propriedade em contraponto com a velha ordem feudal, marcada por uma estrutura de classes rígida que, claramente, contrariava os interesses da burguesia emergente.

Actualmente, ainda segundo Bromley, encontramo-nos numa era (o quinto período) na qual a sociedade, “mais uma vez, tenta confrontar aqueles que imaginam que por deterem a terra tem um especial direito sobre a natureza e direcção da política pública. Mais de quinhentos anos após o feudalismo ter desaparecido na Europa, aqueles que detêm a terra continuam a desempenhar um indevido papel na máquina do governo; mais uma vez [...], este nexo de governo pela terra está destinado a ser quebrado.” (Bromley, 1998: 25)

“No feudalismo, Alfa dá terra a Beta e assim Beta pode controlar Gama. Esta é a díade feudal. Hoje os Betas e Gamas lutam entre si acerca do propósito social da terra e Alfa é chamado a mediar. Alfa (agora o Governo) tem que proteger os direitos de uns ou de outros.” (Bromley, 1998: 25)

O moderno conceito de propriedade tem, pois, uma história relativamente recente. Basicamente, surge por contraponto à ordem feudal característica do antigo regime. A filosofia desempenha um papel central neste processo. Locke (1632 – 1704), considerado normalmente como o percursor da moderna teoria da propriedade, sustenta que se trata de um direito natural, anterior e superior às leis do estado e liga-a à ideia de liberdade. Para ele, a propriedade constitui o instrumento essencial através do qual a liberdade poderá ser atingida. (Bromley, 1998: 23). Locke considera mesmo que a única função do estado é proteger a propriedade: “porquanto o governo não tem outro fim senão a conservação da propriedade” (Locke, 1689, § 94 [1993: 399])

O direito natural à propriedade, superior às leis do estado, resulta, para Locke, do valor do trabalho; só o trabalho legitima a propriedade: “Ainda que a terra e todas as criaturas

inferiores sejam comuns a todos os homens, mesmo assim cada homem tem uma propriedade na sua própria pessoa. Ninguém tem qualquer direito sobre ela senão ele. O labor do seu corpo e o trabalho das suas mãos é, podemos dizer, propriamente seu. Por isso, tudo aquilo que ele tira do estado que a natureza lhe deu, em que empregou o seu trabalho e juntou alguma coisa própria, torna-se propriedade sua. Pois que tendo sido removido por ele do estado comum em que a natureza o pôs, juntou-lhe por meio do trabalho alguma coisa que exclui o direito comum dos outros homens” (1690: § 27 [1960: 17-18])). A propriedade individual dos bens não produzidos, que não resultam portanto do trabalho individual, tem legitimidade na medida, e só, das necessidades individuais e da capacidade de trabalho: “A mesma lei natural que através deste homem nos dá a propriedade, também limita essa propriedade. [...] Tanto quanto qualquer um puder empregar em benefício da vida antes de esbanjar, tanto pode apropriar por meio do seu trabalho. Tudo o que exceder isto é mais do que a sua parte e pertence aos outros. Deus nada fez para o homem desperdiçar ou destruir” (ibd.: § 31). Em suma: “Tanta terra quanta um homem lavra, planta, melhora, cultiva e pode usar o seu produto, tanta é a sua propriedade” (ibd.: § 32).

A noção de valor trabalho não era, porém, nova. Já cerca de 30 anos antes William Petty, bem como diversos autores após ele (cfr. Guigou, 1982), defendiam que só a terra e o trabalho eram fonte de valor. “Nós designamos o nosso ouro e a nossa prata por nomes diferentes [...]. Mas o que eu direi sobre esta questão, é que tudo deveria ser avaliado segundo duas denominações naturais que são: a terra e o trabalho” (Petty, 1905 [1662]: 44).

A corrente de pensamento dos direitos naturais tem uma grande importância durante o século XVII e princípio do século XVIII. Este modelo de propriedade ajusta-se a uma economia de produção simples de mercadorias, destinado a satisfazer necessidades individuais e garantir ao produtor pleno direito sobre os produtos por si produzidos. Porém, o desenvolvimento de um modo de produção e de acumulação do tipo capitalista requeria uma concepção mais utilitarista da propriedade. Assim, “o jusnaturalismo e as teorias da propriedade a ele ligados, vão cedendo progressivamente terreno às concepções utilitaristas com o avançar do século XIX” (Hespanha, 1990: 26).

Neste processo surge uma oposição fundamental entre o valor fundador da moderna concepção de propriedade, a liberdade e a igualdade de todos os homens perante os direitos naturais, por oposição à segurança. Bentham explica claramente o sentido da evolução: “Quando a segurança e a igualdade estão em conflito não há que hesitar um só momento. A igualdade deve ceder. A primeira é o fundamento da vida; a subsistência, a abundância, a felicidade, tudo depende dela. [...] Mas se a propriedade tivesse de ser subvertida com a intenção expressa de estabelecer a igualdade na posse, o mal seria irreparável. Não haveria mais segurança, nem iniciativa, nem abundância! A sociedade voltaria ao estado selvagem de que emergiu [...]. Qualquer sistema é melhor do que a anarquia que se seguirá à subversão do princípio da segurança” ” (Bentham, 1978: 57).

Era esta, de resto, já a visão de Hume, um dos fundadores da concepção utilitarista da propriedade e opositor das ideias naturalistas: “[...] os historiadores, e o próprio senso comum, dão-nos conta de que, por mais atraente que possa ser a ideia de uma igualdade perfeita, ela é, no fundo, impraticável; e, mesmo que o não fosse, seria extremamente perniciosa para a sociedade humana” (Hume, 1739, II: 188)”.

A partir de finais do século XIX, por vários condicionalismos da evolução da sociedade, a propriedade sofre nova metamorfose. Perde “a natureza de um direito sobre as coisas materiais [...], transformando-o (de novo), num direito a valores não corpóreos, basicamente rendimentos” (Hespanha, 1990: 43). De uma forma geral, resume ainda Hespanha, “o conteúdo da propriedade relativizou-se e o seu exercício passou a subordinar-se crescentemente a determinantes institucionais exteriores à vontade do seu titular”.

As concepções fundadoras da propriedade moderna sofreram, pois, uma evolução significativa. A propriedade é hoje vista mais como uma relação social traduzida num conjunto de direitos: encerra uma relação entre um objecto (de apropriação) e a pessoa que o apropria, garantindo a essa pessoa direitos sobre o objecto que, simultaneamente limita a todas as restantes. Trata-se pois da regulação de relações sociais que a estrutura jurídica da sociedade deve formatar e garantir. Curiosamente, os textos jurídicos têm uma evidente dificuldade em definir o conceito. O Código Civil de 1867 (Livro I sobre os direitos originários, art. 366) definia assim o direito de propriedade: “O direito de apropriação consiste na faculdade de adquirir tudo o que for conducente à conservação da existência e à manutenção e ao melhoramento da própria condição. Este direito, considerado objectivamente, é o que se chama propriedade.” Porém, actualmente, os textos jurídicos limitam-se a regular as formas de protecção do direito de propriedade, mas omitem a sua definição. O mesmo se passa noutros países como é, por exemplo, o caso dos EUA (Yandle 1995).

Esta dificuldade jurídica, revela bem a complexidade da propriedade e das múltiplas implicações que daí decorrem. No entanto ela é eminentemente uma questão jurídica. Como refere Bentham, “ a propriedade e o direito nasceram juntos e morrerão juntos. Antes de as leis existirem não havia propriedade. Acabem com as leis e a propriedade cessará” (Bentham, 1978: 52). A propriedade é pois um contrato social acerca de direitos sobre um objecto ou um recurso.

2.1.1 - O conceito de direitos de propriedade

Mais recentemente, a propriedade, nas suas implicações económicas e sociais, tem vindo a ser tratada como um conjunto de direitos que podem ser separados ou recombinados numa grande variedade de formas (MacPherson, 1978).

Nesta perspectiva os direitos de propriedade determinam uma relação social entre um indivíduo e o resto da sociedade relativamente a um objecto ou recurso. O direito de propriedade só ganha sentido quando todos os outros reconhecem o direito, assumindo,

simultaneamente, a obrigação de o respeitar. Ou seja, aos direitos correspondem sempre obrigações. Ambos constituem faces da mesma moeda, não sendo possível existirem os primeiros sem a garantia das segundas. Deste modo, a efectivação dos direitos de propriedade requer um mecanismo social de salvaguarda, que imponha aos restantes as correspondentes obrigações de os respeitar. Compete normalmente ao estado a delimitação do âmbito dos direitos e das correspondentes obrigações, bem como a gestão dos mecanismos que os garantem.

Os direitos de propriedade constituem, simultaneamente, um pilar estruturante de uma sociedade de mercado, através dos fluxos de benefícios que os recursos geram e que o direito de propriedade permite capturar. Ou seja, a propriedade constitui o poder de controlo sobre os fluxos de benefícios. Repare-se que, vista desta forma, a propriedade assume valores variáveis consoante a exacta configuração de direitos que o estado aceita proteger. Tomando o exemplo clássico do criador de gado e do agricultor, se o direito de propriedade sobre a terra não incluir o direito de impedir a passagem do gado, o fluxo de benefícios que o agricultor pode esperar será bem menor do que no caso de a invasão da terra pelo gado ser proibida13. Do mesmo modo, no caso de uma instalação pecuária, os custos de exploração, e logo o fluxo de benefícios, serão diferentes consoante os direitos de propriedade incluam ou não o direito de descarregar os efluentes directamente no curso de água mais próximo. No segundo caso, obrigando a tratamento das descargas, obviamente, os custos de exploração serão mais elevados. A propriedade e o seu valor são pois relativos face ao conjunto de direitos e obrigações que o estado acorda fixar e proteger.

A teoria económica dos direitos de propriedade, construída em boa parte a partir dos trabalhos de Coase e Demsetz, sustentava-se, na sua origem, no pressuposto de que a atribuição inicial dos direitos de propriedade é de menor importância: é relevante que exista uma definição clara de direitos, a partir da qual possa surgir uma negociação entre quem detém os direitos e quem, de alguma forma, é afectado por esses direitos, mas pouco importa como se encontram distribuídos à partida. O óptimo social será atingido através da negociação, independentemente da atribuição inicial dos direitos. Esta posição veio a ser largamente refutada, sobretudo porque, advogando a neutralidade dos direitos de propriedade, escamoteia os efeitos de redistribuição de riqueza que resultam do status quo inicial de direitos.14

13 Embora, na ausência de custos de transacção, o resultado agregado (social) possa ser o mesmo, como postula o teorema de Coase. Retoma-se esta questão mais à frente.

14 Bromley salienta vivamente este aspecto: “Os conflitos surgem quando zelosos economistas afirmam que a ubiquidade dos mercados resolverá todos os problemas ambientais, ou quando auto- proclamados justos planificadores ou burocratas reclamam saber melhor o que deve ser feito. Nenhum dos grupos é explicito acerca do processo que advoga, o qual resulta numa realocação – ou num reforço – de fluxos de rendimento (ou benefício) entre os indivíduos na sociedade, resultando esta realocação ou reforço do suporte, da modificação da estrutura de direitos” (Bromley, 1991: 20). Michelman (1992) afirma que “a questão da distribuição é endémica na ideia de um esquema constitucional de liberdade baseada na propriedade”.

Esta visão (que se pode designar por clássica) conceptualiza os direitos de propriedade como sendo fixos e imunes a mudanças dos seus limites ao longo do tempo. As únicas interacções relevantes são as que se produzem no mercado através da negociação de direitos. Singer (2000), partindo do conceito de contingência dos direitos de propriedade introduzido por Unger (1987), defende que os direitos de propriedade devem ser entendidos simultaneamente como contingentes e contextuais. “O contexto inclui os efeitos do exercício dos direitos de propriedade nos outros e a mudança das condições e dos valores. Os direitos de propriedade são contingentes porque a mudança das circunstâncias modifica os direitos que são reconhecidos pelo sistema” (Singer, 2000: 10). O modelo clássico, segundo este autor, não reconhece que todos os direitos de propriedade no sistema legal foram de facto contextuais, em mudança ao longo do tempo, e dependentes dos efeitos que o seu exercício tem nos outros. Os direitos de propriedade, como muitos autores reconhecem, não são apenas relações entre pessoas e coisas, mas relações entre pessoas relativamente a recursos materiais (Hohfeld, 1913, Bromley, 1991).

2.2 - Regimes de propriedade

Embora, frequentemente, se associe a propriedade individual à noção de direitos de propriedade, existem várias formas possíveis de organização da estrutura de direitos e obrigações que caracterizam a relação entre os indivíduos relativamente a um particular recurso. Demsetz (1967) distingue entre propriedade comunal, propriedade privada e propriedade estatal. Esta distinção, apesar de mais rica do que a ideia simplista de que os direitos de propriedade são sempre direitos individuais, e que subjaz à maioria dos modelos económicas dos direitos de propriedade, sustenta-se numa distinção entre o número de indivíduos que partilham simultaneamente os mesmos direitos. A distinção não comporta por isso os arranjos institucionais e os mecanismos de gestão que estão associados aos diferentes regimes de propriedade. Por outro lado, esta distinção, omitindo a situação de livre-acesso, de ausência de propriedade, leva a confundir esta situação com o regime, bem distinto, de propriedade comum. A teoria da “tragédia dos comuns” não é mais do que um reflexo desta formalização teórica. Sustenta-se, de facto, na confusão entre propriedade comum e livre acesso e nega aos regimes de propriedade comum um carácter institucional que comporta mecanismos de regulação do uso entre os indivíduos que detêm em comum os direitos de propriedade.

Analisam-se de seguida mais em pormenor cada um destes regimes de propriedade, pretendendo sobretudo reflectir sobre o ajustamento da propriedade às transformações económicas e sociais, tanto no regime de propriedade privada como no regime de propriedade comum. Pretende-se, em particular, distinguir claramente o regime de propriedade comum do regime de livre acesso.

2.2.1 - Regimes de propriedade estatal

Num regime de propriedade estatal a propriedade e o controle do uso de um recurso é exercido directamente pelo estado. Várias possibilidades de regulação do uso dos recursos são possíveis sob este regime de propriedade: ou a sua utilização é cedida a indivíduos ou grupos mediante condições, ou o estado promove directamente o seu uso através de agências governamentais. Na história recente portuguesa há vários exemplos de passagem de