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Origem e diretrizes do “Apostolado Social” Jesuíta

2. O CONTEXTO DA ATUAÇÃO DOS JESUÍTAS NA AMÉRICA LATINA E NO BRASIL

2.2. Origem e diretrizes do “Apostolado Social” Jesuíta

A companhia de Jesus é uma Ordem Religiosa conhecida pela sua presença universal no campo da educação: universidades, colégios e em contextos de maior pobreza, pela opção pela educação popular e, em contextos com maior penúria, se destaca o trabalho na área social, na qual é reconhecida pelas importantes iniciativas.

Especificamente no que diz respeito à área social, na América Latina e Caribe, os Jesuítas são responsáveis, atualmente, por 45 Centros Sociais, nos quais trabalham

1.933 pessoas, sendo 469 voluntários e 60 jesuítas, em tempo integral ou parcial. Além desses centros, existem ainda 65 obras sociais, envolvendo aproximadamente 40.000 pessoas, a maioria atuando como voluntárias. Considerando que no mundo todo estão representados nessa área com 549 Centros e Obras Sociais, sem incluir as 1.500 obras de educação popular11 da entidade denominada Fé e Alegria12, os números da atuação na América Latina e Caribe demonstram sua importância nesse continente – cerca de 1/5 da atuação social global realizada pelos Jesuítas13.

A missão dos jesuítas, com foco central no serviço da fé e na promoção da justiça, que se consubstancia no diálogo cultural inter-religioso e na atenção às novas fronteiras como desafio permanente, está posicionada no âmbito das complexas mudanças provocadas pelo neoliberalismo que aprofunda os abismos da desigualdade social.

A carta dos superiores Provinciais Jesuítas sobre “O Neoliberalismo na América Latina”, fruto de reflexão na assembleia de 1996 no México, marcou posição dos Jesuítas no contexto latino-americano na década de 90. Trata-se de reflexão dos líderes Jesuítas da América Latina e Caribe à luz da CG 3214

: “a compreensão verdadeira dos problemas sociais, econômicos e políticos”. Esse documento ajuda a descobrir como anunciar o Evangelho e como participar, de modo específico e sem procurar suplantar outras competências, nos esforços requeridos para uma promoção real da justiça, como demonstra a posição explicitada pelos superiores das 14 províncias/regiões ou países15:

[...] queremos partilhar com vocês e com todos os que estão preocupados e comprometidos com a sorte do nosso povo e, em particular, dos mais pobres, algumas reflexões sobre o sistema econômico conhecido como neoliberalismo e sobre os seus efeitos em nossos países. Não queremos nem podemos aceitar pacificamente que as medidas econômicas implementadas nos últimos anos, praticamente em todos os países da América Latina e do Caribe, sejam o único modo possível de orientar a economia, nem que o empobrecimento de milhões de latino-americanos seja o custo inevitável de um futuro desenvolvimento.

11 Plano Político Institucional (PPI) da Região Brasil Meridional, 2008, p.14

12 Fé e Alegria; Organização dos Jesuítas que surgiu em 1955 em Caracas, Venezuela, no Brasil foi criada em 1981 e atualmente são 21 países que em três continentes (América Latina, África e Europa) constituem a Federação Internacional Fé e Alegria com sede em Bogotá, Colômbia. Fé e Alegria é Movimento Internacional de Educação Popular Integral e Promoção Social.

13 Segundo relatório do XVIII Encontro Social da CPAL, realizado em julho de 2009 em Cochabamba na Bolivia, é “Centro Social Jesuíta” o que desenvolver pesquisa e produção de conhecimento. Os demais são considerados “Obras Sociais”. 14 CG32, Congregação Geral da ordem dos jesuítas com representação mundial Para refletir sobre os novos contextos e

mundiais e definir as formas atualizadas de responder pela missão às diversas realidades e contextos.

15 CG32, Congregação Geral da ordem dos jesuítas com representação mundial Para refletir sobre os novos contextos e mundiais e definir as formas atualizadas de responder pela missão às diversas realidades e contextos.

Embora o teor e modo de apresentar o conteúdo desta Carta não fosse consenso entre todos os Jesuítas naquele momento, nenhum Superior Provincial16 dos

diversos países de América Latina se contrapôs naquele contexto, e identificaram os principais elementos do que chamaram de “medidas conhecidas como neoliberais e suas características”:

- O crescimento econômico, e não o pleno desenvolvimento de todos os seres humanos, em harmonia com a criação, é considerado a razão de ser da economia.

- Tende-se a reduzir a intervenção do Estado, até despojá-lo de sua responsabilidade de garantir os bens básicos que todo cidadão merece, pelo simples fato de ser pessoa humana.

- Eliminam-se os programas destinados a criar oportunidades para todos e, em seu lugar, oferecem-se ajudas pontuais a grupos determinados.

- Privatizam-se as empresas estatais, baseando-se no critério de que o Estado é sempre um mal administrador. Abrem-se, sem restrições, as fronteiras para mercadorias, capitais e fluxos financeiros, mas, ao mesmo tempo, deixa-se sem a devida proteção os produtores mais pequenos e mais fracos.

- O problema da dívida externa é ignorado ou não recebe o tratamento adequado, e o seu pagamento obriga a reduzir drasticamente os investimentos sociais.

- A complexa gestão da economia nacional limita-se a tarefas de ajuste de variáveis macroeconômicas como, por exemplo, equilibrar o orçamento fiscal, reduzir a inflação e estabilizar a balança de pagamentos, como se disso dependesse todo o bem comum, sem que haja preocupação com os novos problemas que esses ajustes criam para a população e que o Estado deveria levar em consideração.

- Supõe-se que esses ajustes produzirão um forte crescimento, elevarão os níveis de renda e assim acabarão resolvendo a situação dos mais necessitados.

- Para estimular os investimentos privados, eliminam-se os “obstáculos” que as leis que protegem os trabalhadores poderiam representar para esses investimentos.

- Os grupos poderosos são liberados de cargas tributárias e de obrigações relativas ao meio ambiente, e são protegidos para acelerar o processo de industrialização, provocando uma concentração ainda maior da riqueza e do poder econômico.

- A atividade política põe-se a serviço desse tipo de economia chamada “livre”. Por um lado, suprimem-se todos os obstáculos que dificultam o exercício do livre mercado. Por outro lado, introduzem-se controles políticos e sociais, por exemplo, para a livre contratação de mão de obra, para garantir a hegemonia desse mesmo mercado.

Devemos reconhecer que essas medidas de ajuste também tiveram resultados positivos inegáveis. Como apontávamos antes, os mecanismos de mercado contribuíram para aumentar a oferta de bens e serviços de melhor qualidade e preço. A inflação foi reduzida em quase todo o continente. Os governos foram liberados de tarefas que não eram da sua competência, para poderem se dedicar melhor, se assim o desejarem, à promoção do bem comum. Cresceu e generalizou-se a consciência da austeridade fiscal que permite uma melhor utilização dos recursos públicos. As relações comerciais entre as nossas nações se estreitaram.

Esses aspectos positivos, porém, estão longe de compensar os desequilíbrios e perturbações que o neoliberalismo provoca e que se manifestam: na concentração da renda, da riqueza e da propriedade da terra; na multiplicação de massas urbanas sem trabalho ou de grupos humanos que subsistem graças a empregos instáveis e pouco produtivos; na falência de muitas pequenas e médias empresas; na destruição e deslocamento forçado de populações indígenas e rurais; na expansão do narcotráfico, particularmente em setores rurais cujos produtos tradicionais foram excluídos da

16 Superior Provincial – responsável pela promoção da Companhia, no ambiente institucional e suas comunidades religiosas e suas atividades apostólicas. A ele compete providenciar, com a ajuda de colaboradores de diversos tipos, o funcionamento das instituições de acordo com os objetivos estabelecidos e a adequada administração de seus bens materiais.

concorrência do mercado; na falta de segurança alimentar; no aumento da criminalidade, provocada com frequência pela fome; na desestabilização das economias nacionais, provocada às vezes por uma especulação internacional não controlada; nos desajustes nas comunidades locais, causados por projetos de empresas multinacionais que não levam em conta os interesses dos moradores etc.

Como consequência de tudo isso, junto com um crescimento econômico moderado, aumenta em quase todos os nossos países o mal-estar social que se expressa em protestos cívicos e greves. Em algumas regiões, volta a ganhar força a luta armada, que nada resolve. Enfim, aumenta a oposição a uma forma de orientar a política econômica que, longe de proteger e promover o bem comum, aprofunda as causas tradicionais do descontentamento popular: a desigualdade, a miséria e a corrupção[...] 17

De fato, essa carta toca nos pontos principais do problema social em um modelo econômico hegemônico que mantém e aprofunda as desigualdades sociais. A preocupação fundamental subjacente ao documento é o tipo de sociedade proposta e da concepção de ser humano em um modelo econômico neoliberal.

Contudo, na mesma Carta, os superiores provinciais Jesuítas da América Latina deixaram sua contribuição apontando algumas tarefas: em primeiro lugar, o sentido de trabalhar a partir de Universidades, centros de estudo e pesquisa e promoção social, pelas Ciências Sociais e com muitos outros agentes que também lutam pela causa dos empobrecidos vitimizados pelo sistema econômico. Essa forma de atuação se foca na visão de que o esforço conjunto sempre une conhecimento mais profundo da realidade e dos impactos do neoliberalismo e ajuda a discernir linhas de ação que fortaleçam um trabalho em rede pela superação da miséria e da pobreza. Este maior conhecimento e ações a serem implementados deveriam levar a um efetivo caminhar com as “vítimas” deste sistema e processo, mediante presenças concretas de solidariedade para a defesa dos direitos dos excluídos e empreender, conjuntamente, diálogos com os setores que controlam as decisões, para a construção de sociedades que, sem excluir ninguém, integrem de fato, na sua vida e atividades, o maior número possível de pessoas. Para tanto se indicam alguns elementos importantes:

[...] fortalecer as tradições culturais e espirituais de nossos povos, para se possam situar a partir de sua identidade [...] incorporar no trabalho educativo valores necessários para formar pessoas capazes de preservar o primado do ser humano [...] partilhar com outros a análise sobre neoliberalismo, enfatizando os valores que devem ser preservados e promovidas e as possíveis alternativas [...] 18

17 Carta dos Superiores Provinciais da AL contra o Neoliberalismo, 2004, p.3 18 Carta dos Superiores Provinciais da AL contra o Neoliberalismo, 2004, p.3

Ademais, a carta citada explicita a relevância de uma vida simples, contra o consumismo e o exibicionismo; efetivamente a preocupação dos jesuítas é a vivência e testemunho de coerência e solidariedade com os excluídos. É o que lhes brota como sentido da espiritualidade inaciana é o permanente exercício de liberdade diante das coisas, dos bens e que esses sirvam ao ser humano e não o escravizem. Por extensão, os Jesuítas deveriam manter distância de empresas sem ética e que mais exploram do que valorizam o trabalho humano. Essa carta claramente explicita a posição dos Jesuítas em torno de uma posição institucional ética, política e pedagógica na construção de outro tipo de sociedade, animada pelo carisma inaciano, explicitado em outro trecho:

[...] queremos reafirmar deste modo a opção radical de fé que nos levou a responder ao chamado de Deus, no seguimento de Jesus Cristo, pobre e humilde, para sermos mais livres e eficazes na busca da justiça... Junto com muitos outros, buscaremos comunidades, tanto no nível nacional como latino-americano, verdadeiramente solidárias, nas quais a ciência, a tecnologia e o mercado estejam a serviço de todas as pessoas dos nossos povos: uma sociedade na qual o compromisso com os pobres manifeste que o trabalho a favor do pleno desenvolvimento de todos, sem exclusão, constitui a nossa modesta, mas séria contribuição, para a maior glória de Deus na história e na criação.19

As tarefas apresentadas realmente explicitam o sentido mais profundo da missão e carisma dos jesuítas e, ao mesmo tempo, animam a muitos no compromisso com a causa dos excluídos e a lutar com ousadia criticamente contra o modelo de sociedade neoliberal. Nos próximos parágrafos apresentaremos o que nos anos subsequentes se desenvolveu nos trabalhos em rede, nos centros sociais de pesquisa, na reflexão e na prática pedagógica popular, que foi provocando em muitas pessoas diferentes processos de transformação individual e social.