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3 O BRINCAR/JOGO DE PAPÉIS SOCIAIS

4.3 As categorias de análise

4.3.2 O brincar/jogo de papéis sociais

4.3.2.2 A origem histórica do Jogo Protagonizado

Na tentativa de compreender a origem histórica do jogo protagonizado Elkonin (2009) recorreu aos estudos de diversos autores. Um aspecto fundamental nessa compreensão e que serve como ponto de partida é a tese de Plekhánov de que, em toda a história da sociedade, o trabalho antecede o jogo. Nesse sentido, Elkonin (2009) reflete acerca da origem dos brinquedos e sua vinculação com a história das ferramentas de trabalho dos homens e dos utensílios sagrados. Assim, a origem do jogo protagonizado está intimamente relacionada ao trabalho dos adultos e como as crianças eram inseridas neste.

Elkonin (2009, p. 49) afirma que não é possível observar de modo direto como surgiu o jogo protagonizado. “Os poucos dados de que dispomos permitem formular [...] a hipótese do nascimento do jogo protagonizado; esclarecer [...] as condições históricas em que se fez necessária essa formação original da vida da criança na sociedade”.

O autor destaca ainda a relevância de estudos sobre o lugar ocupado pela criança na sociedade, “[...] nas diversas fases do desenvolvimento histórico; e, sobre o caráter e o conteúdo dos jogos infantis nesses mesmos períodos. A natureza dos jogos infantis só pode compreender-se pela correlação existente entre eles e a vida da criança na sociedade” (ELKONIN, 2009, p. 48).

Assim, para entendermos as condições históricas da origem do jogo protagonizada faremos um resgate desde as sociedades primitivas aos tempos atuais, visando apresentar o lugar ocupado pela criança nestes períodos.

De acordo com Elkonin (2009) nas sociedades primitivas não havia um limite entre adultos e crianças. As crianças adquiriam independência precocemente e eram inseridas desde muito cedo no trabalho dos adultos. O autor ainda afirma que, nesse período, “[...] não existem dados exatos sobre os jogos infantis [...] os etnógrafos e exploradores [...] indicam que as crianças brincam pouco, sempre do mesmo jeito, dos afazeres dos adultos, e seus jogos não são protagonizados” (ELKONIN, 2009, p. 57).

O autor utiliza outros três estudos para exemplificar que a brincadeira nas sociedades primitivas era escassa ou inexistente. Livingston que estudou a tribo dos bakalahari, disse que nunca viu as crianças brincarem. Miklukho-Makai que se dedicou ao estudo dos papuas afirmou que as crianças brincavam pouco. E, “Bryant, que viveu cerca de 50 anos entre os zulus, descreve vários jogos das crianças dessa raça, mas entre eles não há nenhum jogo protagonizado” (ELKONIN, 2009, p. 58).

Elkonin (2009, p.59) justifica a ausência de jogos protagonizados nestas sociedades primitivas no fato de que nestas as crianças vivenciam uma situação especial, “[...] encontram-se tão atrasadas em comparação com suas coetâneas da sociedade contemporânea no desenvolvimento dos jogos protagonizados quanto adiantadas no sentido da independência, participação na atividade laboral dos adultos e aptidão para tanto”.

Já com a mudança do caráter da produção, que passou da coleta de alimentos naturais e formas primitivas de caça e pesca para formas de produção mais elevadas, como a agricultura e pecuária, houve, também, uma nova divisão do trabalho segundo o sexo. “A criação de gado tornou-se um afazer masculino. As mudanças operadas na economia geral deram lugar a que a economia doméstica, que foi esfera principal do trabalho da mulher, se separasse como ramo peculiar da produção” (ELKONIN, 2009, p. 60-61).

Nessa nova configuração, Elkonin (2009) afirma que as crianças deixaram de participar diretamente em atividades laborais que eram superiores a elas. “Às crianças pequenas foram confiados apenas alguns aspectos do trabalho doméstico e os afazeres mais simples” (ELKONIN, 2009, p. 61). Nesse momento também “[...] surgem equipamentos em tamanho reduzido, adaptados especialmente às possibilidades das

crianças; esses equipamentos são utilizados em condições aproximadas às reais, ou seja, não idênticas às do adulto” (ELKONIN, 2009, p.61).

Elkonin (2009, p. 63) ressalta, porém, que estes equipamentos/ferramentas não se constituem em brinquedos e sim ferramentas que as crianças devem aprender a “[...] manejar o mais cedo possível e cujo manejo aprende ao empregá-los praticamente nas mesmas tarefas que os adultos”.

Neste período de desenvolvimento da sociedade, o autor aponta que as meninas de quase todos os povos possuíam bonecas. Segundo Bogoraz-Tan, uma função da boneca se refere à função protetora da maternidade: “[...] a boneca deve assegurar à moça a fecundidade e o bom parto no futuro. Por isso, a fabricação de bonecas adquiriu o caráter de ocupação especial” (ELKONIN, 2009, p.65). Outro autor, Reison-Pravdin também destaca a função laboral da boneca uma vez que, “[...] costurando vestidos para uma boneca, a menina adquire hábitos importantes [...] Desse modo, sendo a boneca, protetora das funções maternais da futura mulher, [...] serviu desde a primeira infância para ensiná-las a governar a casa e a costurar” (ELKONIN, 2009, p.66-67).

Elkonin (2009) destaca nos exercícios realizados pelas crianças com ferramentas dois elementos de situação lúdica. O primeiro relaciona-se à presença de certo convencionalismo da situação em que transcorre o exercício. Como exemplo, Elkonin (2009, p.69) diz que “[...] o pequeno toco que assoma entre as ervas não é uma rena de verdade; nem o alvo contra o qual o rapazinho dispara uma flecha é uma raposa ou um milhafre. Esses convencionalismos vão sendo paulatinamente substituídos por objetos verdadeiros de caça e pesca”. O segundo refere-se ao fato de que ao manipular um instrumento de tamanho reduzido, a criança realiza uma ação parecida à do adulto, o que “[...] permite supor que se compare ou talvez se identifique com o caçador ou o pastor adultos, com seu pai ou seu irmão mais velho. Assim, pode haver implícitos nesses exercícios elementos de jogo protagonizado” (ELKONIN, 2009, p.69).

Elkonin (2009) também discorre acerca da dupla natureza da ação com um objeto que a criança assimila como sendo o modelo oferecido pelos adultos. Por um lado, há o aspecto técnico operante, “[...] que requer uma orientação para as propriedades do objeto e para as condições de execução do ato; por outra parte, é um modo social de executar a ação, da qual o adulto é veículo e, por isso mesmo, dá lugar a que a criança lhe equipare” (ELKONIN, 2009, p.69).

Os dados apresentados da carência de jogos protagonizados entre as crianças que crescem em sociedades menos desenvolvidas também são desse período. Tampouco se encontra aí, entre as crianças, ou só se encontra raramente, o jogo protagonizado em forma evoluída. Não há necessidade alguma de praticá-lo. As crianças entram na vida da sociedade sob a direção dos adultos ou por sua conta: os exercícios no manejo dos instrumentos de trabalho dos adultos, no caso de adquirirem o caráter de jogos, serão de jogos esportivos ou de competição, mas não protagonizados. A reconstituição da atividade dos adultos em condições lúdicas especiais carece de todo o sentido em virtude da identidade das ferramentas que utilizam as crianças e os mais velhos, bem como da gradual aproximação das condições de seu emprego às situações concretas de trabalho. E embora as crianças não participem nele, levam o mesmo gênero de vida que os adultos, em condições algo mais brandas, porém totalmente reais (ELKONIN, 2009, p. 75).

Apesar do exposto acima, o autor afirma que nessa etapa de desenvolvimento da sociedade é raro, porém já se encontram os jogos propriamente protagonizados. Como exemplo, Elkonin (2009) traz os trabalhos de Mead com crianças de seis anos que fazem casinhas com troncos de árvores e brincam como estivessem se dedicando aos afazeres domésticos. O autor assinala que os jogos descritos por Mead e outros pesquisadores representam aspectos da vida e das relações entre os adultos que são inacessíveis ou proibidos para as crianças. Nesse sentido, Elkonin (2009, p.76) destaca que “[...] é lícito supor que os jogos protagonizados que surgem nesse grau de desenvolvimento são um modo peculiar de penetração na esfera da vida e relações adultas interditada para as crianças”.

Ainda nesse período do desenvolvimento histórico se complicam as possibilidades de inserção das crianças no trabalho produtivo, principalmente devido ao desenvolvimento da produção, a modernização dos equipamentos de trabalho, o aparecimento de elementos da indústria doméstica, e, consequentemente de formas mais complexas de divisão do trabalho e das relações de produção (ELKONIN, 2009).

Assim, Elkonin (2009) destaca, neste período, duas mudanças que ocorrem simultaneamente, referentes ao caráter da educação e ao processo de formação da criança como membro da sociedade. A primeira refere-se à “[...] preponderância conferida a algumas faculdades gerais e necessárias para dominar qualquer instrumento (desenvolvimento das coordenações visomotoras, movimentos leves e precisos, destreza, etc)” (ELKONIN, 2009, p. 79-80). Ainda no tocante a essa mudança, a sociedade pode agir de três formas: na criação de objetos especiais que auxiliarão no exercício dessas faculdades; ou de “[...] instrumentos reduzidos [...]simplificados e

desprovidos das funções iniciais, instrumentos que serviram na etapa anterior para o treinamento direto, ou, inclusive objetos especiais preparados pelos adultos para as crianças” (ELKONIN, 2009, p. 80). A segunda mudança relaciona-se ao aparecimento do brinquedo simbólico. É através deste que as crianças reconstituem as esferas da vida e da produção que almejam.

Elkonin (2009) conclui essa discussão acerca da origem histórica do jogo protagonizado afirmando, portanto, que o jogo tem sua origem no desenvolvimento histórico como resultado da mudança de lugar ocupada pela criança no ambiente das relações sociais. “Por conseguinte, é de origem e natureza sociais. O seu nascimento está relacionado com condições sociais muito concretas da vida da criança na sociedade e não com a ação de energia instintiva inata, interna, de nenhuma espécie” (ELKONIN, 2009, p.80).

Nesse sentido, Leontiev (2006b, p.125) acrescenta que o brinquedo surge na criança em idade pré-escolar “[...] a partir de sua necessidade de agir em relação não apenas ao mundo dos objetos diretamente acessíveis a ela, mas também em relação ao mundo mais amplo dos adultos”. Assim, “[...] nos brinquedos do período pré-escolar, as operações e ações da criança são, assim, sempre reais e sociais, e nelas a criança assimila a realidade humana” (LEONTIEV, 2006b, p.130).

O autor destaca ainda que na moderna Psicologia Infantil e na Pedagogia o período do jogo protagonizado recebeu a denominação de período de desenvolvimento pré-escolar. No próximo item trabalharemos a origem ontogenética do jogo.