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3 O BRINCAR/JOGO DE PAPÉIS SOCIAIS

4.2 A Psicologia Histórico-Cultural

Shuare (1990) afirma que foi no Primeiro Congresso de Psiconeurologia, realizado em 1923 em Moscou que foi pensada, pela primeira vez, a necessidade de fundamentar a ciência psicológica nos postulados do materialismo dialético. Dois trabalhos contribuíram para tal: o artigo de V. I. Lenin Sobre a importância do materialismo combativo (1922), no qual “[...] se formulou as tarefas do partido relativas à divulgação do materialismo dialético como base para o desenvolvimento das ciências naturais e sociais” (SHUARE, 1990, p.52, tradução nossa54, grifo nosso); e o

texto Psicologia e Marxismo de Kornílov que também expressou a necessidade de aplicar o marxismo à psicologia.

Quanto às discussões empreendidas neste Congresso acerca do problema metodológico fundamental que se delineou e, posteriormente, se tornou o foco das reflexões, Shuare (1990, p.53, tradução nossa55) destaca dois pontos:

54 No original, temos: “[...] se formularon las tareas del partido em cuanto a la difusión del materialismo

dialéctico como base para el desarrollo de las ciencias naturales y sociales” (SHUARE, 1990, p. 52).

55 No original, temos: “[...] en primer lugar, la aplicación creativa de la dialéctica como método de

investigación; en segundo lugar, la superación de la ruptura, posteriormente agudizada, entre la definición de la psiquis como produto de la matéria altamente organizada, como función del cerebro y la naturaleza social de la conciencia y de la personalidad humana” (SHUARE, 1990, p. 53).

Em primeiro lugar, a aplicação criativa da dialética como método de investigação; em segundo lugar, a superação da ruptura, em seguida agravada, entre a definição da psique como produto da matéria altamente organizada, como função do cérebro e a natureza social da consciência e da personalidade humana.

Já o segundo Congresso de Psiconeurologia foi realizado em 1924 em Petrogrado. O artigo de Necháev teve destaque, pois neste o autor tentou rejeitar qualquer enfoque filosófico nos problemas da psicologia e reforçar os princípios do empirismo. Este artigo foi bastante criticado, pois os pesquisadores consideravam que era uma defesa de posições idealistas. Ao contrário, o artigo de Kornílov O método dialético em psicologia tentava demonstrar a necessidade e o valor da aplicação deste método, que seria a base de um novo enfoque na psicologia. Shuare (1990) ressalta que a concepção de Kornílov apresenta sérias insuficiências, porém suas intervenções e o cargo de diretor que ocupou de 1923 até 1930 no Instituto de Psicologia serviram de “[...] pólo de atração para a constituição de um grupo de jovens investigadores (Vigotski, Luria, Leontiev e outros) que em breve dariam origem a uma das correntes mais importantes e frutíferas da psicologia mundial” (SHUARE, 1990, p.53-54, tradução nossa56).

Foi neste segundo Congresso que Vigotski fez sua primeira aparição pública, com a apresentação de três trabalhos: O método de investigação reflexológica e psicológica; Como devemos ensinar agora a psicologia e Resultado de uma pesquisa sobre o humor dos graduados de escolas de Gomel no ano de 1923. “Como assinalaram Leontiev, Luria e outros, a intervenção de Vigotski produziu uma enorme impressão em seus ouvintes e Kornílov o convidou para trabalhar no Instituto de Psicologia” (SHUARE, 1990, p. 54, tradução nossa57).

Shuare (1990, p.55-56, tradução nossa58, grifo do autor) aponta quatro características básicas deste Congresso, a saber:

56 No original, temos: “[...] polo de atracción para la constitución del grupo de jóvenes investigadores

(Vigotski, Luria, Leóntiev y otros) que pronto darían origen a uma de las corrientes más importantes y fructíferas de la psicología mundial” (SHUARE, 1990, p. 53-54).

57No original temos: “ Como señalan Leóntiev, Luria y otros autores, la intervención de Vigotski produjo

uma enorme impresión em sus oyentes y Kornílov lo invitó a trabajar em el Instituto de psicología” (SHUARE, 1990, p. 54).

58 No original, temos: “[...] 1) la salida de escena de las corrientes tradicionales de la psicología empirista

subjetivista y experimental; 2) la formulación del programa declarativo de Kornílov de construir la psicologia basado em lo materialismo dialéctico y la unión en torno de dicho programa de jóvenes entusiastas de la ‘ revolución psicológica’; 3) el auge de las corrientes objetivistas que, habiendo planteado a necesidad de um estudio verdadeiramente científico del comportamento, no superaron, em realidad, el dualismo em psicología; 4) la primera formulación, aún no muy clara y embrionária todavia, de um enfoque realmente nuevo de la psiquis, de la aplicación creadora del materialismo dialéctico y,

1) a saída de cena das correntes tradicionais da psicologia empirista subjetivista e experimental; 2) a formulação do programa declarativo de Kornílov de construir a psicologia com base no materialismo dialético e a união em torno deste programa de jovens entusiastas da revolução psicológica; 3) o auge das correntes objetivistas que, depois de terem levantado a necessidade de um estudo verdadeiramente científico do comportamento, não superaram, na realidade, o dualismo em psicologia; 4) a primeira formulação, ainda não muito clara e embrionária, todavia, de um enfoque realmente novo da psique, da aplicação do materialismo dialético e, sobretudo, histórica ao estudo dos fenômenos psíquicos, ou o início das investigações de L. S. Vigotski na ciência psicológica.

Shuare (1990) destaca que Vigotski foi o primeiro a conseguir aplicar o materialismo histórico e dialético à ciência psicológica, de modo a provocar uma revolução na Psicologia. Os psicólogos soviéticos que tentaram fundar a psicologia no materialismo dialético, dentre estes: Básov, Blonki e Kornílov tinham uma série de dificuldades derivadas de um erro metodológico básico. A autora afirma que esse erro “[...] consistiu na aplicação mecânica de algumas teses do materialismo dialético à psicologia; na compreensão superficial desta filosofia e o desconhecimento da importância que o materialismo histórico tem para a ciência psicológica” (SHUARE, 1990, p. 57, tradução nossa59). Shuare (1990) ainda aponta que a ausência de uma verdadeira cultura metodológica dialética contribuiu para a formulação de concepções reducionistas.

Na teoria de Vigotski “[...] o eixo que, como espiral dialética, organiza e gera todos os demais conceitos, é o historicismo” (SHUARE, 1990, p. 59, tradução nossa60).

O tempo é definido como o vetor que define a essência da psique humana. Vigotski compreende o tempo, no sentido do materialismo histórico, como sendo algo além de um postulado filosófico abstrato. Para ele, o tempo humano é história e, para compreendê-lo o conceito de atividade e, sobretudo, o de atividade produtiva são fundamentais (SHUARE, 1990). Ou seja, tem-se no estudo do ser humano um objeto histórico social.

sobre todo, histórico al estudio de los fenómenos psíquicos, o sea el inicio de las investigaciones de L. S. Vigotski en la ciencia psicológica” (SHUARE, 1990, p. 55-56).

59 No original, temos: “[...] consistió en la aplicación mecânica de algunas tesis del materialismo

dialéctico a la psicología, la comprensión superficial de dicha filosofía y el desconocimiento de la importância que el materialismo histórico tiene para la ciência psicológica” (SHUARE, 1990, p. 57).

60 No original, temos: “[...] el eje, que, como espiral dialéctica organiza y genera todos los demás

Nesse sentido, Shuare (1990, p. 61, tradução nossa61) afirma que:

A história da psique humana é a história social de sua constituição. Uma vez estabelecida, no entanto, não é dada diretamente na implantação de estruturas orgânicas da criança, mas está pressuposta como uma qualidade que o sujeito em desenvolvimento deve se apropriar. Assim como a psique não é algo imutável e invariável no curso do desenvolvimento histórico da sociedade, não é no curso do desenvolvimento individual; as transformações experimentadas são tanto estruturais como funcionais.

Outra característica importante na teoria de Vigotski produzida pelo eixo histórico é a concepção do caráter mediado da psique humana. A diferença dos fenômenos psíquicos naturais dos animais e dos homens é o produto da completa interação do indivíduo com o mundo, sendo esta mediada pelos objetos criados pelo homem (SHUARE, 1990).

Além do exposto, Vigotski encontrou no materialismo histórico dialético a concepção filosófica geral e o enfoque epistemológico adequado para refletir a dinâmica de desenvolvimento do objeto de estudo da Psicologia (SHUARE, 1990). O autor buscou aprofundar seus estudos em uma Psicologia que se voltasse para o indivíduo como um todo e não fragmentado, que considerasse o histórico e o social num movimento dialético para o desenvolvimento humano.

Leontiev (1978) afirma que Vigotski foi o primeiro a formular a tese de que o princípio diretor da edificação da psicologia do homem deve residir na démarche histórica. Ademais, o autor destaca que Vigotski, além de criticar as concepções biológicas naturalistas do homem, “[...] introduziu na investigação psicológica concreta a ideia da historicidade da natureza do psiquismo humano e a da reorganização dos mecanismos naturais dos processos psíquicos no decurso da evolução sócio-histórica e ontogênica” (LEONTIEV, 1978, p. 153).

A estrutura mediatizada dos processos psicológicos aparece sempre a partir da apropriação por um indivíduo das formas de comportamento que foram inicialmente formas e comportamento imediatamente social. Ao fazê-lo, o indivíduo assimila o nó (estímulo-meio) que mediatiza o processo considerado; este pode ser um meio material (um instrumento), conceitos verbais socialmente elaborados ou qualquer

61 No original, temos: “[...] la historia de la psiquis humana es la historia social de su constitución. Una

vez constituida, sin embargo, no está dada de manera directa en el despliegue de las estructuras orgánicas del niño, sino que está presupuesta como cualidad de la que debe apropriarse el sujeto em desarrollo. Así como la psiquis no es algo inmutable e invariable en el curso del desarrollo histórico de la sociedad, no lo es tampoco en el curso del desarrollo individual; las trasnformaciones que experimenta son tanto estructurales como funcionales” (SHUARE, 1990, p. 61)

outro sinal. Assim se introduz em psicologia uma nova ideia capital, a tese de que o principal mecanismo do desenvolvimento psíquico no homem é o mecanismo da apropriação das diferentes espécies e formas sociais de atividade, historicamente constituídas (LEONTIEV, 1978, p. 154-155).

Tendo como base os ideais levantados anteriormente, Vigotski (2004) defendia a construção de uma nova sociedade (socialista), na qual pudesse ocorrer o desenvolvimento livre e completo do pleno potencial humano. Ademais, o autor buscava apoiado em Marx, o desenvolvimento omnilateral do homem e não o desenvolvimento unilateral e distorcido das capacidades humanas.

Vigotski trabalhou com diversos autores, que juntos compuseram a corrente teórica denominada Psicologia Histórico-Cultural62 que surgiu no início do século XX na ex-União Soviética (URSS), no contexto da Rússia pós-revolucionária. Os principais nomes63 desta corrente são: Liev Semiónovich Vygotsky (1896-1934); Alexis Nikoláevich Leontiev (1903-1979); Alexander Románovich Luria (1902-1977); Daniíl Borísovich Elkonin (1904-1984); Vasili Vasílievich Davidov (1930-1998); Alexandr Vladimirovich Zaporozhets (1905-1981); Piotr Iakovlevich Galperin (1902-1988) e Lidia Ilínichna Bozhovich (1908-1981).

Bozhovich (1976) afirma, portanto, que a tarefa da psicologia soviética foi investigar as particularidades psicológicas da criança segundo sua idade, que não se limitam à característica dos processos psíquicos isolados e sim revelam a estrutura da personalidade integral da criança em seu processo de formação e desenvolvimento.

A Psicologia Histórico-Cultural, portanto, alicerçada nos pressupostos do materialismo histórico dialético, enxerga a sociedade como aquilo que cria o próprio ser humano e não como algo externo ao indivíduo ou como uma força estranha à qual o indivíduo deve adaptar-se.

Após essa breve exposição do surgimento da Psicologia Histórico-Cultural e de seus pressupostos principais, abordaremos a seguir as categorias por nós analisadas ao longo de nosso trabalho, quer seja: a zona de desenvolvimento proximal e o brincar e o jogo de papéis sociais.

62 Esta corrente teórica também tem outras denominações, tais como: Escola de Vigotski, Psicologia

Sócio-Histórica, Teoria Histórico-Cultural ou Teoria da Atividade.

63 A biografia dos autores da Psicologia Histórico-Cultural está presente ao final da obra: DAVIDOV, V;

SHUARE, M. (Org.). La Psicologia Evolutiva y Pedagógica en la URSS: antologia. Moscou: Editorial Progresso, 1987.