I. Imputabilidade diminuída até ao Código Penal de 1982
3. Os alienados nos tribunais
O conceito inimputabilidade assentava, assim, num fundamento somático e
biopsicologicamente comprovável – a existência de uma doença em sentido
estrito
111, cuja identificação assentava numa legitimidade científica –, pelo que os
peritos médicos tinham um papel fundamental, o que se revelou basilar para o fim
enfermidade deve ser tal que tire a consciência ou a liberdade dos actos. Frequentes vezes têm eles dado como demonstrado este efeito, baseados em causas que lhes estão muito remotas. Pouco valem as razoes de ordem psicológica que se queiram aduzir em reforço de uma tão livre interpretação da lei» (Fanciulli, G., 1915, pp. 10-11).
Também José dos Santos Silveira: «Não nos é possível, de modo algum, ter a ingénua pretensão
de determinar rigorosamente um critério de normalidade intelectual. (…) O homem normal não pode, no sentido anti-psiquiátrico, ser a resultante de uma operação aritmética, dum cálculo, um termo médio, mas, como observa o Sr. Prof. Cavaleiro de Ferreira, corresponde a um tipo ideal, criado pelo espírito do homem, será, em nosso entender, o tipo de homem que não se adapta à vida social.
«Esta normalidade mental, porém, não corresponde à normalidade de que fala a ciência
psicopatológica. Se pretendêssemos tal coincidência, o mundo seria um vasto manicómio, como lhe chamou alguém, onde raros seriam os perfeitamente equilibrados, porquanto o número das pessoas que sofrem de desvios mentais que se confundem com a normalidade, é esmagadora…» (Silveira, J. S.,
1943, pp. 78-79).
109 Cf. Relatório do Decreto de 10 de Janeiro de 1895 (Augusto, A., 1905, p. 256).
Justificava o Conselheiro António d’Azevedo: «É evidente que é muito árdua a missão dos
peritos, e que o desempenho consciente e cabal dos seus deveres demanda sciencia, que, nem sempre, se adquire no rapudo ensino da medicina legal ministrado nas escolas; mas felizmente existe já no nosso paiz uma pleiade de médicos com abalisada competência no assumpto, adquirida por estudos especiaes, pela clinica mental e ela observação dos criminosos alienados. Não há motivo, pois, para descrer do auxilio valioso que os magistrados judiciários possam obter, quando recorram à medicina legal para a solução do difficil problema de decidir sobre a responsabilidade de alguns criminosos»
(Augusto, A., 1905, p. 259).
110 Cf. Proposta Carta de Lei de 17 de Agosto de 1899, Secretaria d’estado dos negócios
eclesiásticos e de justiça, em 22 de Fevereiro de 1899 – José Maria de Alpoim de Cerqueira Borges Cabral (citado em Augusto, A., 1905, p. 69): «(…) sendo do maior alcance humanitário, averiguar com
exactidão a personalidade moral e intelectual dos presos, o exame biologico impõe-se à nossa consideração. N’este ponto opinámos com o distincto alienista, sr. Dr. Júlio de Mattos, insurgindo-se contra a ausência ou deficiência dos exames aos detidos, mormente sobre o ponto de vista da mentalidade, pois resulta d’ahi que muitos desgraçados, que deveriam ser recolhidos nos manicómios, são impelidos para a forca, para a guilhotina, para o desterro ou para as penitenciárias, como aconteceu a Papavoine, Bouton, Bellingham, Grandi e muitos outros».
111 Cf. Dias, Jorge de Figueiredo (2012), Direito Penal: Parte Geral, Questões Fundamentais, A
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do conflito que até aqui caracterizava as relações entre tribunais e alienistas, uma
vez que se pressupunha uma estreita cooperação entre alienista e juiz
112.
Embora alguns protagonistas do sistema judicial – como António Ferreira
Augusto
113– tenham impulsionado a integração resultados do avanço científico na
prática judiciária, a recepção destas ideias pelos magistrados judiciais foi mais
difícil, produzindo-se decisões que marcaram a história da sociedade e
jurisprudência portuguesas, continuando a manifestar uma forte resistência na
aplicação da exigência de «inteligência e liberdade», na sequência de três ordens
de razões essenciais: a apreensão pelo desconhecido, o receio da simulação e o
impacto social da absolvição. É interessante verificar – como exploraremos nos
próximos capítulos deste trabalho – que estes continuam a representar três das
preocupações essenciais relativas à problemática da inimputabilidade e
imputabilidade diminuída, ainda que com consequências decisórias, em larga
medida, diferentes.
O primeiro problema relacionava-se com o «receio dos juízes em fazer
depender um espaço vital de uma decisão sobre responsabilidade penal do parecer
de um perito sobre uma ciência relativamente à qual os magistrados não tinham
formação»
114. Se por um lado, os alienistas representavam, para os magistrados, a
112 Cf. Antunes, M. J., 2002, p. 464; Rosário, Rita (2017), “A inimputabilidade por anomalia
psíquica na jurisprudência portuguesa”, in: Anatomia do Crime: Revista de Ciências Jurídico-
Criminais, n.º 5 (Janeiro-Junho), Lisboa: Almedina, pp. 34-36.
113 O referido Procurador Régio relatava a forma como o Ministério Público português
continuava «indifferente ao movimento cientifico que [ia] alastrando no estrangeiro», em vez de se «mostrar familiarizado com os estudo sobre medicina legal e alienista, especialmente sob o ponto de
vista de responsabilidade criminal, se estão fazendo na Alemanha, na França, na Itália e até na nossa vizinha Espanha, na qual, como tenho tido ocasião de ver, se acham traduzidas as obras de maior valor científico a respeito daquelas duas ciências» (Augusto, A., 1900, p. 259).
Notava, no entanto, alguma evolução – «alguns dos meus Delegados, embora em pequeno
número, como tenho observado pelos processos e pela correspondência trocada com esta Procuradoria Regia, vão mostrando que lhe são familiares as resoluções dalguns desses problemas, o que para mim é muito grato e uma demonstração valiosa do seu estudo e da sua aplicação (…). Não admira porém que da parte da nossa magistratura haja por ora uma certa reserva a respeito dos estudos medico legais e alienistas, não tanto como em outros tempos, a avaliar pelas decisões dos tribunais superiores que mostram por isso já não serem estes indiferentes a tais questões, que para se resolverem há necessidade de serem chamados legalistas e alienistas, mas pelo sobressalto que levantam sempre as consequências destes estudos e pela impressão que produzem na opinião pública ignorante» (Augusto, A., 1900, p. 260) –, destacando o papel pioneiro do Tribunal da Relação do
Porto: «os tribunais portugueses, especialmente a Relação do Porto, não parecem já indiferentes às
novas ideias bem como alguns tribunais de primeira instância, havendo a respeito destes assuntos decisões que muito os honram e ilustram» (Augusto, A., 1900, p. 263).
114 Seguimos aqui, de perto, Maria João Antunes: «a jurisprudência continuou a evitar o
recurso ao auxílio dos «alienistas» com o desiderato de aferir da exigência legal de «inteligência e liberdade», revelando certa desconfiança em relação às conclusões periciais por aqueles apresentadas, bem como algum receio de que os arguidos simulassem a respectiva situação mental.
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face de uma ciência ainda relativamente desconhecida para estes e, por
conseguinte, de base insuficiente para sustentar uma decisão jurídica; por outro
lado, as controvérsias verificadas no contexto daquela ciência reforçavam as
dificuldades de aceitação das conclusões dos peritos como factor decisivo de
solução de casos criminais
115.
Por outro lado, a possibilidade de simulação ou manipulação do próprio
perito pelo arguido motivava grande preocupação dos juízes
116. Na verdade, os
alienistas procuraram responder a esta inquietação – também verificada no seio da
sua profissão
117– através do estudo e divulgação de formas de detectar a
simulação. Júlio de Mattos, por exemplo, dedicou no seu Manual das Doenças
Mentaes um inteiro capítulo à «Loucura Simulada», no qual teceu uma série de
considerações sobre as precauções a tomar pelos peritos a fim de «distinguir o
alienado do simulador». Decisivo terá sido, também, o impacto da opinião pública
sobre estes casos
118.
Um dos exemplos paradigmáticos da relatada resistência da jurisprudência
nacional face à questão da inimputabilidade (e imputabilidade diminuída) foi o
caso de Marinho da Cruz, amplamente referido, quer na literatura da época
119, quer
Estava patente um conflito que opunha, «por um lado, o direito penal saído do “Século das Luzes” e o antigo direito contido nas ordenações; e, por outro, os tribunais e os alienistas, uma vez que o espaço dos primeiros, até aí inviolável, foi invadido pela Ciência dos segundos, a qual começou por se sentir intrusa e desconsiderada» (Antunes, M. J., 2002, p. 18).
115 Neste sentido: «No dizer dos alienistas mais conscienciosos, é mui difícil afirmar onde
começa e termina a zona do delírio e a do estado são, tais e tantas são as variadas e multíplices manifestações que as doenças mentais apresentam. Não há, no dizer de Cullerre, phrenometro para poder calcular com exactidão o poder das forças de impulsão e o contrapeso exercido pelas forças
de resistência. A nossa lei não fixa as regras para se conhecer com precisão o estado de anormalidade
das faculdades intelectuais de qualquer indivíduo» (Augusto, A., 1900, pp. 263-264).
116 Maria João Antunes relata como «apesar deste consenso legislativo e doutrinal em torno
de um novo conceito de responsabilidade criminal, não se diga que ele também se estendeu aos nossos aplicadores do direito. Pelo contrário, também entre nós foram mal recebidas pelos tribunais as novas leis por, no entender dos magistrados, as suas providências representarem mais uma concessão, entre muitas outras, aos criminosos, muitas vezes tendo sido vistas como puro meio ardiloso de subtracção à justiça penal» (Antunes, M. J., 2002, p. 143).
117 Assim: «Os casos de loucura simulada estão longe de ser frequentes; comtudo, é importante
o seu conhecimento, porque “o perito collocado em face de um arguido cujo estado mental a justiça lhe confiou a missão de examinar, deve sempre ter em vista a possibilidade de uma simulação” (Tardieu)»
(Mattos, J., 1884, p. 372).
118 Relatava António Ferreira Augusto como era «ainda a perniciosa influência da velha escola
a predominar e de não haver por parte dos nossos tribunaes a coragem sufficiente para arcar com as apreciações do público, e, muitas vezes, com as considerações feitas por uma imprensa nem sempre rectamente dirigida» (Augusto, A., 1900, p. 333).
119 António Ferreira Augusto, por exemplo, destacava os casos de Marinho da Cruz e João
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na actual
120: o alferes que assassinou um colega de escola do Exército (a 22 de
Abril de 1886) foi absolvido num primeiro julgamento (em Julho de 1887), em
razão da crise de epilepsia sob cuja influência estava quando praticou o homicídio,
mas acabou, depois, por ser condenado (em Agosto de 1888), contrariando-se as
conclusões preconizadas por vários alienistas. O caso é particularmente
interessante, dada a sua relação com uma temática profundamente sensível à
época – a da homossexualidade – e um problema cujo tratamento pelo direito penal
é ainda hoje controverso – do ciúme – uma vez que, de acordo com as informações
disponíveis, Marinho da Cruz e a vítima eram amantes, devendo-se o crime «ao
ciúme que o cadete sofreu quando o seu amante o abandonou para se juntar a uma
namorada»
121. Enquanto esta circunstância foi utilizada como argumento pela
acusação, a defesa e os alienistas envolvidos no caso focaram-se na insanidade e
epilepsia do arguido
122.
Particularmente controverso foi, também, o caso Josefa Greno, que assassinou
o seu marido, Adolfo Greno, tendo sido internada para observação no Hospital de
Rilhafoles, por decisão do Conselho Médico-Legal após a sua detenção. Tendo
embora o relatório pericial – redigido por Miguel Bombarda e publicado em
conjunto com Silva Amado e Diogo Valadares, ao qual juntou «dezasseis pareceres
de alguns dos mais influentes alienistas e especialistas forenses da época, a quem
havia solicitado, por carta, colaboração (…), entre outros, a Mattos, Lombroso,
Sèglas, Magnan, Kraepelin, Schule, Wernicke, Hitzig, e Kraft-Ebing» – classificado
Josefa como alienada, sendo o crime «produto» da sua paranóia, esta conclusão,
ainda que assente na existência de uma patologia do cérebro
123, provocou, mais
120 Maria João Antunes abre a sua Tese de Doutoramento, precisamente, com este caso
(Antunes, Maria João, 2002, Medida de Segurança de Internamento e Facto de Inimputável em Razão
de Anomalia Psíquica, Tese de Doutoramento em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de
Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra: Coimbra Editora).
121 Cf. Curado, M., 2007, p. 105.
122 Assim: «A acusação considerava que o crime se deveu ao ciúme e que o arguido era
responsável pelos seus actos. A defesa, liderada por Tomás Ribeiro, recorreu às teorias sobre insanidade e epilepsia de Cesare Lombroso, que chegou a escrever uma carta em favor de Marinho para o segundo julgamento marcial (Howes, 2002). Este caso tem características que se reiteram em muitos outros: o arguido tem estatuto social acima da média; o crime cometido liga-se a um dos assuntos mais sensíveis para a moral da época (a homossexualidade); os litigantes recorrem às teorias sobre o comportamento humano mais sofisticadas da época; e, aspecto decisivo, o julgamento é acompanhado e influenciado pela opinião pública» (Curado, M., 2007, p. 105).
123 Reforçada com a realização da «autópsia de Josefa Greno que falecera aos 54 anos de
idade de «mal de Bright» (…). O cérebro de Josefa apresentava- se como se de uma «ruína» se tratasse, e pelas lesões evidenciadas revelar -se -ia «absolutamente incompatível com um espírito são». As lesões eram «grosseiras», «brutais», e em intertextualidade explícita (que em inúmeros