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Capítulo 3 – O cotidiano fantástico de homens lupinos

III. “Os anéis da serpente”

O penúltimo conto da coletânea de O livro dos lobos trata da oscilação vivida pelo narrador-personagem, tipo clássico na narrativa fantástica, por meio de um sonho.

O conto, “Os anéis da Serpente”, inicia-se com a afirmação da personagem de que nunca havia tido problemas com sonhos: “nunca me preocupei com os sonhos.” (FIGUEIREDO, 2009, p. 125). Nesse sentido, embora o narrador admita por algumas vezes ter tido certa demora em conseguir dormir, ele nunca havia tido problemas com

o conteúdo de seus sonhos.

Fato é que, havia algum tempo, o personagem não dormia direito graças ao produto de sua imaginação, que era constituído por um homem de meia-idade, morador de uma pensão de classe média baixa e que, aparentemente, estava sempre com raiva e nervoso por alguma razão.

A preocupação do personagem a respeito de seu sonho surgiu a partir do momento que ele fez uma leitura casual na qual havia a seguinte história:

[...] naquele livro a escritora contava que escrevia, certa noite, ao lado da cama em que sua mãe dormia. Idosa e doente, a mãe descansava alheia ao trabalho da filha. Ela escrevia uma página de um romance, uma cena em que um violinista executava um improviso empolgado. De manhã, ao acordar, a mãe contou que tinha ouvido durante o sono uma música de violino. (FIGUEIREDO, 2009, p. 126).

O narrador antecipa ao leitor o desfecho do texto e mostra que o fato de nunca ter tido preocupações com sonhos é passado, já que sua imaginação se tornou seu maior pesadelo no decorrer do conto, isto porque o sonho se repetia todos os dias e, curiosamente, sempre da mesma maneira.

A personagem acredita, então, que, se abdicasse de dormir, solucionaria a questão. Para tanto, começou a agir de modo estranho, colocando objetos na sua cama para que não fosse possível o repouso e, consequentemente, o sono, como se pode apreender no fragmento a seguir:

[...] debaixo do lençol os grampos, espetos, cascas duras, tudo o que fere e incomoda e que eu tinha colocado ali justamente para não dormir. Ou pelo menos para que meu sono não se prolongasse nem fosse muito profundo. (FIGUEIREDO, 2009, p. 126).

O fato de a personagem querer reduzir os períodos de descanso é o indício de que ela está assustada e com medo da situação, ainda mais depois da leitura da narrativa a respeito da música do violino que a senhora havia percebido mesmo dormindo.

O medo, como dantes exposto, é essencial para a constituição do fantástico segundo alguns autores e estudiosos dessa temática. Nesse viés, o conto apresenta uma problemática que é constante nas obras fantásticas, que é o surgimento de um

fato novo, uma ruptura com a realidade.

Dessa forma, a narrativa fantástica, consoante Bessière, “provoca a incerteza ao exame intelectual, pois coloca em ação dados contraditórios, reunidos segundo uma coerência e uma complementaridade próprias” (1974, p. 2).

No caso dessa narrativa, a ruptura com a realidade está no fato de a personagem oscilar entre a realidade e a imaginação, as quais parecem, paradoxalmente, conciliáveis na vida do protagonista.

O fato de as personagens dos contos de Rubens Figueiredo hesitar entre um mundo real e um irreal torna-se uma característica muito marcante na coletânea de contos de O livro dos lobos. Não apenas para a constituição dos enredos, mas também para a instauração do insólito nas narrativas.

Nesse sentido, para Atik e Trevisan:

A presença de personagens introspectivas provoca a desestabilização de um entendimento de mundo mais imediato, tal aspecto conjuga-se às formulações de enredos permeados pelas inquietações, pelas dúvidas e pelas manifestações da ambiguidade. [...]. (2012, p. 166).

As inquietações da personagem se sobressaem a partir do momento que ela decide se afastar de seus amigos, porque tinha vergonha do que eles poderiam pensar a respeito de sua imagem quando fossem ao seu quarto e se deparassem com sua cama repleta de grampos e objetos pontiagudos.

Observa-se, por parte da personagem, uma preocupação com a sua imagem: “não gosto de pensar na cara que as visitas, as minhas pouquíssimas visitas, faziam a me ver recolhendo aquelas peças.” (FIGUEIREDO, 2009, p. 126).

A narrativa fantástica mais contemporânea traz, assim como nos contos da coletânea em análise, uma preocupação grande com a imagem e com a identidade das personagens durante o desenvolvimento do enredo.

Percebe-se esse fato, por exemplo, porque Simão, narrador autodiegético de “Alguém dorme nas cavernas”, não gostava de expor seus hábitos lupinos aos outros. Assim como vimos com as protagonistas Andreia em “A escola da noite” e Diana em “O Caminho de Poço Verde”, mesmo se deparando com tantos problemas físicos e de relacionamentos, não os expunham aos outros, uma vez que se o fizessem não manteriam a aparência desejada para aqueles com quem conviviam.

outros fatores, como a saúde no que dizia respeito ao precioso hábito de dormir, já que a personagem por causa do medo tentava excluir de sua rotina esse hábito tão importante para o ser humano.

Percebe-se que as ações costumeiras da personagem mudam, não apenas no que tange a estado de sono, mas também no que se refere às relações sociais com seus amigos.

Assim, o sonho afeta diretamente seu cotidiano. Transforma a vida da personagem. Entretanto, não apenas a do protagonista, mas também a da personagem sonhada, visto que “ele também dormia e sonhava” (FIGUEIREDO, 2009, p. 128), e, como já citado, transparece toda a sua ira com a situação. É nesse fato que reside o desiquilíbrio do conto, haja vista que o narrador começa a “ter medo de dormir” e passa a colocar grampos na cama, pois percebe que o sujeito do sonho também sonha (FIGUEIREDO, 2009, p. 129).

É nesse momento que a personagem inicia uma análise mais acurada de seu processo imaginativo, talvez levada novamente pelo medo. Assim, ao entrar em estado de sonolência, tomava o cuidado de “olhar” os detalhes do que ocorria a fim de encontrar uma resposta para o que estava vivendo.

A cada dia, tornava-se mais atento aos fatos/objetos do sonho. Percebia alguns detalhes que, talvez, anteriormente, teria deixado passar. O primeiro a ser mencionado foi o anel de serpente que o sujeito utilizava:

[...]. No dedo enfiava sempre um anel dourado e lustroso. Aquilo se repetia e tentei me concentrar no anel, que eu só podia ver à distância. Com o tempo, consegui focalizar melhor a joia, e valeu a pena, pois se tratava de um anel muito bonito, em forma de cobra. (FIGUEIREDO, 2009, p. 128).

Além deste objeto, ao se atentar para as minúcias do sonho, a personagem observa um fato muito curioso:

[...]. Certa manhã, ao pôr os pés na rua e ver a banca de jornais na esquina, lembrei que o homem do meu sonho, depois de sair da boate no final da madrugada, havia comprado um jornal, a caminho de casa. A mesma manchete que eu vira no sonho via agora de novo, no jornal pendurado na banca. Assim que cheguei ao trabalho, contei essa coincidência para Mendonça, [...]. (FIGUEIREDO, 2009, p. 129).

O narrador-personagem tem certeza de que está interagindo com aquele sujeito pelo sonho e que, talvez, não seja apenas uma coincidência, mas uma realidade

duvidosa que gera receio no narrador e coloca em dúvida o leitor, em relação aos fatos narrados.

Tanto leitor como as personagens não conseguem precisar as fronteiras do real e do imaginário no conto, uma vez que parece não haver mais fronteiras entre esses dois mundos, teoricamente, distintos.

Por conseguinte, o protagonista resolve contar a Mendonça o que se passou na noite posterior em relação ao seu sonho. É interessante ressaltar que Mendonça é a única personagem do conto individualizada pelo nome, nenhuma outra personagem, incluindo o protagonista, é denominada. É para esse colega de trabalho que o narrador resolve compartilhar sua inquietude.

Sabe-se que o conto não se torna mais insólito ou não pelo fato de as personagens serem denominadas, individualizadas. Contudo, ao se tratar da modalidade fantástica, e por ser uma característica que se sobressai nessa coletânea – as indeterminações –, entende-se que essa conjuntura auxilia na constituição do insólito, uma vez que o próprio Todorov (2012) reitera o conceito de pandeterminismo nessa modalidade literária, isto é, todos os elementos da narrativa fantástica têm objetivos em si mesmos.

Assim, mesmo que em outras modalidades narrativas também existam relações coesivas entre os elementos do enredo e o seu desenvolvimento, no fantástico, essa interação é basilar para instaurar a dúvida, a hesitação.

O que chama atenção nessa passagem da narrativa não é apenas o fato de um personagem ser nomeado, Mendonça, mas também a atitude do protagonista em lhe revelar o seu medo.

É comum, na literatura fantástica, em especial a dos séculos XVIII e XIX, existirem momentos de tentar racionalizar o insólito, isto é, explicar o fato por alguma justificativa pautada nas leis que regem a realidade. Tradicionalmente, pode-se justificar a falta de racionalização de um fato pela simples coincidência (como é tratado até então pelo narrador) ou pelo consumo de substâncias como drogas, bebidas, até mesmo pelo sonho, como é o caso deste conto.

Mendonça, por sua vez, apenas confirma aquilo que fora, previamente, apresentado pelo discurso do narrador – o fato de tudo ser uma coincidência, como já havia ocorrido com ele:

Isso é mais comum do que a gente pensa. Li uma vez um livro sem perceber, sem saber que está fazendo, a gente põe na memória e num

sonho uma coisa que só viu mais tarde, e depois jura que já tinha visto aquilo antes. Nada de mais. (FIGUEIREDO, 2009, p. 129).

Pode-se inferir dessa situação não apenas uma tentativa de explicação para o insólito, mas também um pedido implícito de ajuda do protagonista, que não consegue nem por parte de Mendonça, nem de outras pessoas com as quais compartilhou o fato insólito. Ele compreende, então, “que não podia falar com ninguém” sobre seu sonho (FIGUEIREDO, 2009, p. 129-130).

É curioso que, quando a personagem entende que não pode contar com colegas e amigos para compartilhar a situação de seus sonhos, marca-se nesse isolamento mais uma característica fantástica, que é a solidão da personagem para lutar contra os seus medos e, se possível, voltar à normalidade.

Transparece, nesse isolamento da personagem, a imagem do lobo, novamente. Tal imagem, segundo Atik e Trevisan (2012, p. 166), está em “todos os contos, como o reflexo de um mundo irracional espelhado em meio às racionalidades cotidianas”.

Esse fato ocorre porque o narrador percebe que as pessoas estão ali interagindo única e exclusivamente por causa de questões profissionais, e não há nenhuma preocupação verdadeira a respeito das inseguranças pessoais dos sujeitos com quem interagem. Para o narrador, só ele é capaz de perceber o que ocorre no exterior de seu escritório:

Da janela ao lado da minha mesa eu via dezenas de janelas de escritórios estendendo-se em todas as direções. Uma paisagem tão quadriculada que chega a espantar que eu nunca tenha visto, em todos esses anos, alguém se debruçar sobre um dos parapeitos e uivar feito um lobo. (FIGUEIREDO, 2009, p. 130).

Ao entender que seus problemas não são importantes para os outros, o próprio narrador começa a mudar a sua atitude diante do sonho. Torna-se ainda mais observador, não apenas no que tange a sua imaginação, mas ao seu dia a dia, pois o sonho interfere diretamente em seu cotidiano. É como se ele se esmerasse no processo de olhar e ver o mundo que o circundava. Como ele mesmo salienta:

Talvez não seja exagero dizer que criei uma técnica. A gente escolhe um ponto de cada vez e imagina que só ele e o nosso olho existem no mundo. A gente circunscreve com firmeza o pensamento, impede que a gente fique pairando ociosa. Assim, a atenção consegue isolar, esquecer o que está em volta, e o ponto, o foco do nosso interesse,

de repente se revela em cada linha, ampliado, orgulhoso, na ilusão da sua aparente proeminência. (FIGUEIREDO, 2009, p. 130-131).

Ao desenvolver a técnica de analisar as pessoas que o cercavam, o narrador- personagem torna-se quase um especialista em detalhes. Assim como o fez em relação à mulher que observava no edifício vizinho ao que trabalhava.

Numas das janelas, às vezes eu detinha o olhar para observar uma mulher morena [...]. Gradualmente consegui observar detalhes que àquela distância pareciam impossíveis de notar [...].

[...]. Notei que nos dedos não tinha anéis. Conheci seus brincos, um por um, par a par, e quando brincos novos apareciam eu logo lhes dava uma atenção especial. [...]. (FIGUEIREDO, 2009, p. 130-131).

A observação dos detalhes decorre do medo gerado pelo sonho, uma vez que acreditava que alguém poderia estar à espreita para encontrá-lo e, talvez, tentar contra a sua vida. Constata que “a sua irritação havia aumentado” (FIGUEIREDO, 2009, p. 132).

Além disso, o protagonista percebe uma mudança nos hábitos do segurança, isto porque, em uma de suas noites de folga, na boate onde trabalhava, ele toma uma direção diferente do trajeto habitual. Tal fato assusta ainda mais o protagonista, já que o sujeito parece estar à sua procura pela cidade.

Nesse sentido, Atik e Trevisan (2012, p. 169) salientam que “o sono e o medo andam sempre juntos no seu dia a dia. Não tem certeza o que, de fato, deve temer, mas sente uma necessidade premente de se livrar daquele sonho”.

Depois de andar pelo centro observando os lugares por onde passava, o sujeito parou em um ponto de ônibus. Esperou um pouco e, quando surgiu o ônibus que estava esperando, fez sinal para que aquele parasse. Para surpresa e assombro do narrador, o ônibus era o mesmo que ele sempre tomava para ir ao trabalho.

[...]. Eu conhecia aquele número, conhecia aquele ônibus. Era a linha que eu mesmo pegava todos os dias para ir ao trabalho e voltar. O segurança da boate nunca andava por aquele lado, jamais pegava aquele ônibus. [...]. (FIGUEIREDO, 2009, p. 133).

O sujeito passou próximo ao trabalho do protagonista, próximo a sua casa, mas parecia não ter precisão ao analisar os espaços e relacionar com aquilo que possivelmente via em seus sonhos: “quando passou pelas imediações do meu trabalho, senti que um lampejo de dúvida rompia de alto a baixo sua consciência.”

(FIGUEIREDO, 2009, p. 134).

É nesse momento que o narrador tem certeza de ter, ao menos, uma vantagem sobre esse sujeito, o de ser um excelente observador: “aquele homem não possuía um poder de observação tão desenvolvido quanto o meu.” (FIGUEIREDO, 2009, p. 134.) Entretanto, percebe também haver uma desvantagem, isto porque, ao contrário do sujeito do sonho, não sabia especificar a boate onde ele trabalhava e muito menos a pensão onde ele morava.

Depois desse ocorrido, ao que parece, o medo da personagem se acentuou, uma vez que evitava ao máximo dormir, já que, para ele “combater a presença ‘daquele homem’, significava combater o próprio sono. A sua resistência ao sono, contudo, representava uma perturbação na vida do segurança. Este passou a ser acometido por ‘sonolência ou desmaios súbitos’ em qualquer lugar” (ATIK; TREVISSAN, 2012, p. 170).

O protagonista toma a decisão de ir ao cinema depois do trabalho, não com o objetivo de se divertir, mas de retardar seu sono ao máximo, já que tal situação “o deixaria acordado até mais tarde do que era de costume” (FIGUEIREDO, 2009, p. 134).

Essa situação do enredo é interessante, visto que, quando toma o ônibus em direção ao cinema, a personagem esquece seu guarda-chuva na lotação e ‘aquele homem’ reaparece em seu sonho procurando pelo mesmo objeto.

[...]. Só mais tarde, já sonhando, fui lembrar que tinha esquecido o guarda-chuva enfiado no vão estreito entre o banco e a parede do ônibus. Era noite de folga do segurança da boate e, no meu sonho, assim que ele sentou para cumprir a sua ronda, fez gestos de quem procura alguma coisa. Num instante encontrou meu guarda-chuva no lugar onde eu mesmo o havia deixado. (FIGUEIREDO, 2009, p. 135).

Remo Ceserani, em O fantástico (2006), trata da questão de objetos mediadores na literatura fantástica. Esses objetos, mateiras ou não, deixam o fantástico mais perceptível no texto. Segundo Lucio Lugnani:

É preciso pensar que o objeto mediador desempenha a função específica dentro do conto fantástico pelo fato de que se trata de um conto em que há um desnivelamento de planos de realidade, o qual não está previsto pelo código e por isso vem marcado por um forte efeito de limite, e no qual o objeto mediador atesta uma verdade equívoca porque inexplicável e inacreditável, posto que inepta. (LUGNANI apud CESERANI 2006, p. 74).

Nesse sentido, o ônibus tomado pelo segurança e o guarda-chuva esquecido nele são elementos mediadores entre a realidade e o sonho, o que torna o conto mais insólito, pois atestam uma ruptura com a realidade.

O fato de a personagem ver, no sonho, seu guarda-chuva na parede da pensão onde o homem dormia incomodava-o: “Eu me irritava agora ao ver, no sonho, toda noite, meu guarda-chuva pendurado no quarto do segurança.” (FIGUEIREDO, 2009, p. 136). A personagem percebe que precisa combater essa situação e, para tanto, é necessário “combater o sono”. Como mencionamos alhures, ao resistir ao sono, acabou afetando a vida do segurança, cujos desmaios contínuos tornaram-se gozações entre os amigos, que “zombavam dele por esse motivo, chamavam-no de velho, senil, fracote, alguns quiseram até falar em epilepsia, e confundiam as sílabas” (FIGUEIREDO, 2009, p. 137).

Outro fato é tido pelo narrador como extraordinário. Na tentativa de não dormir, o protagonista acaba pegando no sono no mesmo momento que o segurança e ambos sonham com a mesma coisa.

[...]. Sonhamos os dois ao mesmo tempo e sonhamos com uma cobra. Um instante, um lampejo. Rastejava entre a grama, a caligrafia de um S. O couro do animal era quase dourado, rodeado por uma série de listas negras, paralelas, como anéis. [...] (FIGUEIREDO, 2009, p. 137).

É curiosa a reação do narrador, pois, embora o sono e o medo estivessem imbricados, com este “sonho em comum” ocorreu a ele uma possível solução para esse impasse:

[...] O segurança, ao acordar do seu desmaio, apalpa “instintivamente o anel de serpente no dedo” e o narrador, ao despertar, sente uma alegria inexplicável, entrevê “naquela confusão” um meio de se libertar. Seria, pois, um sonho dentro de outro sonho? O próprio narrador hesita, quando diante de outra situação, ao olhar fixamente para a mão moça do escritório ao lado do seu, vê o anel de serpente do segurança em seu dedo. Neste momento, conclui que uma parte de seu sonho ganhava concretude em sua vigília. (ATIK; TREVISSAN, 2012, p. 171).

Consoante o conceito de pandeterminismo de Todorov, todas as coisas da narrativa fantástica, durante seu desenvolvimento, vão combinando para o desfecho da história. No conto em questão, a mulher do edifício vizinho ao do protagonista, por

coincidência, conhece o segurança na boate. Em uma segunda oportunidade, no ambiente de trabalho do segurança, eles acabam se conhecendo melhor, passando uma noite juntos na pensão. No outro dia, ao chegar ao escritório, o protagonista percebeu algo diferente no dedo da garota, ou seja, “um anel dourado” (FIGUEIREDO, 2009, p. 141). O protagonista estava convencido de que tomar o anel desta garota seria a saída desse pesadelo que ele mesmo havia criado.

Planeja roubar o anel da garota no final do expediente. Conforme havia engendrado, consegue realizar o roubo e voltar para casa aliviado, acreditando que tudo voltaria a um estado de equilíbrio em sua vida. Tomou, então, as seguintes providências:

[...]. Ao chegar em casa, retirei da cama todos os grampos, gravetos, cascas secas, pinos, tudo que representava a negação do meu sono. Eu não precisava de nada mais além do anel. [...] (FIGUEIREDO, 2009, p. 143).

O anel parece transformar a vida do protagonista. Ao chegar em casa, ele se reencontra com o sono, seu “velho companheiro” (FIGUEIREDO, 2009, p. 143). Os fatos não são tão simples quanto parecem. Quando começa a sonhar, depara-se novamente com o segurança, aparentemente dormindo como sempre, na pensão. A única diferença é que agora ele não acordou.

Gera-se, como é característica do texto fantástico, a dúvida se ele está morto ou, apenas, dormindo. Segundo o desfecho da narrativa, para o protagonista, ambos estão, agora, presos “no mesmo sono” (FIGUEIREDO, 2009, p. 143).

Nesse sentido, segundo Atik e Trevisan:

Os anéis da serpente, dourados e negros, trazem o sonho para a realidade ou a realidade para o sonho. Talvez o insólito, no conto, possa se explicar pela liberação dos desejos adormecidos, pela indagação reflexiva a respeito da percepção da realidade e, em última instância, sobre o a identidade do sujeito. Afinal, a consciência do “ser” pode manifestar-se tanto na concretude do mundo empírico como na realidade do universo onírico, em ambos os casos é na construção

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