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Capítulo 2 – As transform(ações) fantásticas

III. “Um certo tom de preto”

No quarto conto da coletânea, há uma narrativa em primeira pessoa em que a personagem principal (a qual não é identificada nominalmente) relata a transformação sofrida em sua Casa a partir da chegada de dois “irmãos”, a saber: Custódio e Isabel. A protagonista já os apresenta com certo tom depreciativo, como se estivesse ganhando algo e, ao mesmo tempo, perdendo: “todos diziam que eu estava ganhando uma coisa, só que ninguém me avisou que eu ia perder outra.” (FIGUEIREDO, 2009, p. 82).

Percebe-se que desde o início da narrativa a personagem apresenta, descreve e narra a história de Custódio e de Isabel valorizando-os e tornando-os o foco de sua narração como se ela mesma, a protagonista, estivesse em segundo plano. Dessa forma, é como se a protagonista houvesse se perdido, esquecido de si mesma desde a chegada deles. Evidencia-se isso não só pelo foco da narrativa estar nos irmãos, mas também por não se preocupar com sua identidade, sua apresentação pessoal, como condutora do relatado. A narradora-personagem culpa Custódio e Isabel por perder sua liberdade, sua tranquilidade de viver com os pais, já que era filha única e provavelmente tinha toda atenção para si.

Não há explicação sobre o aparecimento das duas crianças na Casa da protagonista. Ela mesma assume esse fato: “mesmo sem saber apontar um autor ou um responsável pela vinda dos dois irmãos, [...] dali para frente, fez minha vida se esfarelar aos poucos.” (FIGUEIREDO, 2009, p. 83).

A primeira interferência direta na vida da protagonista é o fato de Custódio e Isabel fazerem muito barulho na Casa, o que, de alguma forma, atingia a personalidade da narradora: “Para eu ser o que eu era, para eu ver e apalpar em mim mesma uma pessoa que pudesse ser eu, era necessário silêncio.” (FIGUEIREDO, 2009, p. 83.) A narradora observa essa mudança de rotina com saudosismo, já que, segundo ela, “antes era diferente. A alegria é diferente” (FIGUEIREDO, 2009, p. 84). É interessante perceber que, segundo Jaime Alazraki (1994), o fantástico contemporâneo não apresenta uma progressão na narrativa, não há adereços, ele se coloca de maneira direita ao receptor. Há um efeito de sentido nessa falta de apresentação no texto, uma vez que o leitor não sabe exatamente o que está acontecendo e se baseia apenas na perspectiva do narrador-testemunha. É como se

fosse suprimido certo tempo de análise do ocorrido para próprio leitor, deixando-o na

incerteza da veracidade dos acontecimentos.

Em verdade, o que o leitor mais atento percebe é que o narrador não está ali para apresentar os fatos, mas para influenciá-lo na mesma compreensão que ele, o narrador, tem acerca das duas personagens, colocando-as como causadoras de todos os problemas. Assim, a narradora-protagonista começa a inventar algumas mentiras para acusar Isabel e Custódio e, de fato, acredita ser esse um meio legítimo para se defender e tentar retomar o seu lugar de filha única: “nunca me senti culpada pelas mentiras que inventei.” (FIGUEIREDO, 2009, p. 85).

Outra questão que Alazraki (2000) apontou a respeito do fantástico contemporâneo é o fato de que, já que não há progressão para o clímax do insólito, este se apresenta de forma abundante durante todo o texto, não apenas em um momento. A narrativa, desde o início, traz certa tensão entre as personagens, fato que, ao decorrer do narrado, se intensifica.

Percebe-se isso quando descreve a morte do pardal, ave que tinham resgatado na rua e, depois de alguns cuidados, não resistiu e morreu. Não há apenas a narração do fato, há toda descrição do momento em que, segundo a narradora-personagem, Isabel e Custódio desenterram a ave morta para brincar no quintal, episódio que gera certo estranhamento quanto ao comportamento dos irmãos.

Não há a expressão de medo da personagem nem mesmo do receptor sobre tal ação, há o estranhamento da situação: “minha fragilidade também se expressava assim, nessa inaptidão para sentir medo.” (FIGUEIREDO, 2009, p. 88). Essa inquietude caracteriza, segundo Alazraki (2000), o fantástico contemporâneo.

É interessante observar que a personagem se sente sozinha diante da nova vida, já que seus colegas do condomínio estavam do lado de Custódio e Isabel e os defendiam quando havia alguma brincadeira que acabava mal:

Custódio e Isabel contavam com a extraordinária ajuda de outras crianças do prédio. Havia entre eles um comércio secreto: mentiras e álibis eram trocados por objetos de origem escusa. (FIGUEIREDO, 2009, p. 88).

Além de seus colegas, a narradora-personagem observa a mudança de comportamento de sua mãe, que passou a gritar com ela:

Minha mãe passou a gritar comigo por qualquer motivo. Coisas quebradas, objetos no chão, roupas perdidas. O grito foi um sotaque novo que logo aprendi a marcar na minha nova língua. Roubada, acusada de displicência, suspeita de todos os egoísmos, passei direto do silêncio ao grito. Dizer que tinha sido a Isabel, o Custódio só servia para piorar as coisas. (FIGUEIREDO, 2009, p. 90).

É como se o mundo ao redor da protagonista tivesse se voltado contra ela de uma maneira muito cruel, uma vez que as interferências da chegada de Custódio e Isabel não afetaram apenas o cotidiano da narradora, mas também a relação de seus pais, que discutiam depois das travessuras da filha em relação aos dois novos integrantes da casa:

O silêncio da minha mãe durou alguns dias, eu acho. Não falava comigo. Entre ela e meu pai surgiu uma aspereza até então desconhecida, interceptada nos olhares, nas bocas, no ruído dos talheres no prato. (FIGUEIREDO, 2009, p. 93).

A partir do momento em que a relação dos pais da garota começa a ser problematizada pelos irmãos, a garota parece ter uma visão mais desconfiada dos irmãos, inclusive comparando-os a entidades malignas que dividem o mesmo quarto. Essa reflexão fica perceptível quando Custódio tem pesadelos, e a narradora acredita que ele está possuído e que a escuridão e o sono davam poderes a eles:

Custódio às vezes tinha pesadelos e, como dormíamos os três no mesmo quarto, era comum eu acordar ouvindo a sua voz rosnar, guinchar, experimentar diversas encarnações. [...]. Cheguei a ouvir um arremedo da minha própria voz nos pesadelos de Custódio. Deitada no escuro, eu tinha medo e ia adquirindo a convicção intuitiva de que os dois eram dotados de algum poder perigoso, que só a escuridão e o sono deixavam transparecer um pouco mais. Um poder cujo alvo lógico e natural só podia ser eu. (FIGUEIREDO, 2009, p. 93-94).

De fato, qualquer atitude dos irmãos era analisada de maneira negativa ou até mesmo pessoal pela protagonista como quando os irmãos passaram a usar óculos e, segundo a narradora, era a forma de eles esconderem os olhares sobre ela: “tinha algo a ver com a necessidade de ocultar os olhos, isso eu sei.” (FIGUEIREDO, 2009, p. 97.) A protagonista tinha a certeza de que qualquer mudança de comportamento dos irmãos era para atingi-la, como se houvesse uma verdadeira guerra entre eles.

isso com seus pais, faziam frequentemente com os colegas do condomínio e até mesmo com os professores da escola onde estudavam: “Exercitavam seu poder encarando os professores e fazendo com que se calassem. E, até com o homem que vendia sovertes numa carrocinha na porta da escola, o qual estranhamente às vezes lhe davam chiclete de graça.” (FIGUEIREDO, 2009, p. 97.)

Percebe-se, no decorrer do conto, que a personagem além de modificar seu comportamento, visto que ela “quebrava muito as coisas na casa, torneiras, louça, aparelhos elétricos, e se isso os enfurecia [referindo-se aos pais] tenho também a certeza de que no fundo sentiam certa pena de mim” (FIGUEIREDO, 2009, p. 98), também transforma a sua maneira de se comunicar com os outros, uma vez que essa interação se torna mecânica, como a própria personagem narra: “Se eu falava com meus pais, ou com Custódio e Isabel, eram palavras mecânicas que escorriam para fora de mim. Era cada vez menos a minha presença e solidez.” (FIGUEIREDO, 2009, p. 98).

É interessante o fato de haver no espaço da narrativa certa divisão: o espaço específico em que a narradora frequentou no passado – casa, condomínio, escola, casa do avô, etc. – e o espaço em que ela não nomeia e de onde ela consegue contar a história, no presente.

O espaço da narrativa fantástica é essencial para a constituição do insólito e, portanto, do fantástico. Assim como exposto no primeiro capítulo deste trabalho, Furtado (1980) analisa esse elemento da narrativa como um ambiente ambíguo, que gera verossimilhança e, ao mesmo tempo, incerteza e imprecisão. É dessa forma que se apresenta o espaço no conto “Certo tom de preto”. Em primeiro plano, o espaço é como algo que se assemelha à realidade do leitor e depois (quando a personagem está em outro lugar que não se sabe onde) gera dúvidas.

É nesse novo ambiente que ela, aparentemente, sente-se segura ao expor sobre os fatos, é como se ela tivesse conseguido uma inspiração para relatar a história, já que, segundo ela mesma, é nesse ambiente que ela consegue refletir acerca de tudo que ocorreu: “Aqui tenho muito tempo para pensar e lembrar, e mais sossego do que jamais pude gozar a vida inteira.” (FIGUEIREDO, 2009, p. 97).

Tal fato gera, consequentemente, certa inquietação no leitor, pois não se sabe de onde ela está escrevendo, uma vez que ela só se reporta ao lugar com o adjunto adverbial “aqui” e o descreve com um espaço em que há um esquema de segurança reforçado, pois a própria personagem expõe que não consegue fugir de lá. Pode-se

inferir que, talvez, ela esteja internada em uma espécie de clínica ou hospital psiquiátrico, visto que demonstrou um transtorno comportamental por tudo o que ocorreu quando narra determinado trecho:

Um movimento de sombra sobre sombra chamou minha atenção. Vinha do lado onde estava Isabel. Um certo tom de preto. Uma camada de preto. Uma camada de preto queria ressaltar do preto geral, e se reconcentrava, se depurava, se desembaraçava de empecilhos e disfarces. Isabel tinha tirado os óculos e olhava pra mim. Longo, cilíndrico, sinuoso. Uma espécie de braço imaterial se estende através da escuridão, feito da própria escuridão, e entrou livre pelos meus olhos. Com o gesto de quem enfia a mão no fundo do balde cheio de água para apanhar um anel que caiu no fundo. Lá no fundo, o anel era eu mesma, o centro em que eu tentava me resumir e resguardar o que restava. […]. (FIGUEIREDO, 2009, p. 99-100).

Não há uma explicação na narrativa para tal fato, apenas uma narração subjetiva do ocorrido, que gera certo estranhamento, visto que parece haver um contato com outro mundo, com a escuridão, com aquilo que a protagonista denomina de “certo tom de preto”, expressão que dá nome ao conto. É interessante que a personagem parece ter se tornado um espírito e consegue ver o seu próprio corpo, como se houvesse separado a matéria corporal da espiritual:

Vi meu próprio corpo parado na escuridão enquanto eu me afastava dele. Compreendi que por alguns instantes eu ainda pude enxergar e ver a mim, como se meus olhos estivessem no anel, desprendido do meu corpo. Assim, me voltando para trás, avistei no espaço, no centro de um negro mais difuso e poroso, o denso ponto preto para onde eu estava sendo puxada. […]. Houve uma explosão de alegria com a minha chegada, que era na verdade a minha partida. (FIGUEIREDO, 2009, p. 100).

A expressão paradoxal “chegada” e “partida” cria um efeito de sentido interessante para o conto, uma vez que a protagonista parece ter morrido ou ter sido internada ou, simplesmente, ter desmaiado. Enfim, não se sabe direito. E é a partir dessa hesitação do que de fato ocorreu que se constitui o fantástico no conto.

Aparentemente, a personagem parece voltar a si quando, segundo ela: “a luz reacendeu.” No entanto, é nesse momento de consciência de si mesma que ela percebe que sua mãe havia lhe chamado de Isabel, isto é, a própria mãe confundiu o nome, ou seja, a identidade da filha: “minha mãe podia ter se enganado, trocado o nome na pressa e na distração normal de falar.” (FIGUEIREDO, 2009, p. 101.) Mas aí

ocorre um episódio estranho, pois não apenas a mãe troca os nomes das filhas, como também o pai: “em seguida meu pai, da cozinha, chamou Isabel para ajudar com a louça e, dirigindo-se a ela, usou o meu nome.” (FIGUEIREDO, 2009, p. 101.) A garota perde a razão e grita com os familiares: “ ̶ Não sou Isabel.” (FIGUEIREDO, 2009, p. 101.)

Nesse momento, até os vizinhos estão observando a situação na Casa por causa dos gritos e do barulho dos objetos que eram jogados sobre Custódio e o pai da garota, pois foram eles que tentaram contê-la, conforme o trecho:

Quando Custódio e meu pai vieram me segurar, acho que eu já tinha atirado algumas coisas no chão e quebrado objetos na sala. A massa que me sufocava era o mesmo ar de sempre, só que inflamado, endurecido pela minha respiração. Deitaram-me à força no tapete. Com alegria, ouvi dizerem coisas terríveis sobre Isabel. Mas logo entendi que a Isabel de que falavam era eu. (FIGUEIREDO, 2009, p. 101).

Em seguida a esse episódio na casa da família, a protagonista é levada para o ambiente no qual ela consegue analisar os fatos para contá-los por meio do seu processo de escrita: “Trouxeram-me para cá e tudo continua na mesma desde então.” (FIGUEIREDO, 2009, p. 101.) Efetivamente, há apenas uma situação que mudou segundo a própria narradora, que é o fato de Custódio e Isabel se casarem. E, dessa forma, a narradora tenta “provar” para si mesma que ela não é Isabel já que, “ao contrário do que pensam, ao contrário do que está escrito, eu não me casei” (FIGUEIREDO, 2009, p. 102).

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