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Capítulo 3 – O cotidiano fantástico de homens lupinos

I. “Os biógrafos de Albernaz”

O primeiro conto de O Livro dos lobos não trata, literalmente, de lobos, mas da obsessão de um homem para se tornar um sujeito importante a qualquer custo. Nesse sentido, segundo Pereira (2013), o conto é plurissignificativo no que diz respeito à “explosão de agressividade de uma fera sobre outra mais domesticada” (p. 43). Isso porque Nestor, protagonista do conto, trabalha arduamente na produção de uma biografia do pintor Rodrigo Albernaz no ano do seu centenário. A questão é que ele não está sozinho nesse objetivo, já que Torres, o Cego, como era chamado por Nestor, tinha o mesmo fito: publicar uma biografia de Albernaz.

Assim, Nestor entende que Torres é seu concorrente direto e teme que ele, mesmo sendo cego, esteja à frente na produção do livro. Isso se apresenta no conto quando a sra. Murtinho, personagem que aparentemente concederia uma entrevista a Nestor a respeito de Albernaz, morre. O protagonista acreditava que Torres já “devia ter se antecipado e gravado uma entrevista com a sra. Murtinho” (FIGUEIREDO, 2009, p. 9). Tal receio se intensifica porque havia muitos financiamentos para a sua pesquisa, e publicar o livro depois de Torres seria uma catástrofe para sua carreira. Consequentemente, Nestor deixou todo lazer a fim de terminar o livro: “Rodrigo Albernaz imperava absoluto” em sua vida (FIGUEIREDO, 2009, p. 14).

Nestor não cuidava apenas da biografia, mas se atentava também à rotina de seu concorrente. Certa vez, ligou para Torres tentando se aproximar e se certificar de que estava conseguindo vencer seu oponente. Torres, aparentemente, não demonstrava a mesma ansiedade acerca da publicação da biografia, e até mesmo pôs à disposição o seu apartamento para um encontro entre eles.

Nestor, mesmo desconfiado, aceitou o convite, pois acreditava que sua visão seria a melhor arma contra seu oponente. Ao entrar, a primeira coisa que fez foi observar atentamente tudo que cercava Torres. “A primeira coisa que os olhos

buscaram ao entrar no apartamento de Torres foram sinais da presença de outra pessoa. Enfermeira, acompanhante. Mas Torres estava sozinho.” (FIGUEIREDO, 2009, p. 15).

O protagonista ficou impressionado com a organização do apartamento de um sujeito deficiente visual, a ponto de comparar a sua própria casa à de Torres, e entender que sua desorganização poderia ser uma vantagem para o oponente.

Nestor fez duas visitas a Torres. Mas nunca foi capaz de tocar em dois assuntos com o cego, a saber: sobre sua cegueira e a respeito do andamento da biografia elaborada por ele. Embora não conseguisse acabar com sua curiosidade sobre esses assuntos, conseguiu perceber algumas coisas como o fato de que “Torres se encontrava bem documentado” (FIGUEIREDO, 2009, p. 16).

Nestor ficou incomodado quando não compreendeu uma reflexão de Torres. Esse fato o deixou muito envergonhado, pois entendeu que o oponente tinha alguma informação que ele desconhecia sobre Albernaz.

- Alguma vez passou pela sua cabeça que na vida de muita gente, até das pessoas mais próximas, com quem a gente conviveu a vida toda, há pelo menos um fato horrível, que precisa ficar escondido para sempre? (FIGUEIREDO, 2009, p. 16).

Nestor ficou curioso a ponto de observar “a sala num incêndio de olhares e vontades” (FIGUEIREDO, 2009, p. 16), como se procurasse algo que não conhecia, algo que lhe faltava. Depois de tomar o café preparado por Torres, deu-lhe um presente: um exemplar de uma revista na qual havia fotos do casamento de Albernaz. Só em seguida percebeu “o toque de escárnio no ato de presentear um cego com fotografias” (FIGUEIREDO, 2009, p. 17).

Por outro lado, recebeu de Torres uns catálogos das últimas exposições de Albernaz. Aparentemente, nada importante também. Nestor acreditou que com isso eles estavam em equilíbrio novamente. Mas, ao folhear os catálogos, percebeu que havia “um maço de papel dobrado ao meio”, e que não fazia parte do presente. Ficou na dúvida em comentar ou não com Torres a respeito desse material que encontrou, como segue no texto:

Deveria avisá-lo: você esqueceu um papel aqui dentro. Deveria ficar quieto e averiguar se eram coisas úteis. Fingir que nada tinha visto, fingir que estava convencido da falta de importância dos papéis. Fingir para si mesmo, fingir que não fingia. E foi só no elevador, depois de

ter despedido, nem se lembrava como ou com que palavras, que a ideia veio socorrer Nestor. (FIGUEIREDO, 2009, p. 18).

Sentado à mesa de um bar, folheou os documentos e percebeu que eram a respeito de Rodrigo Albernaz. Não eram simples fatos de sua vida, mas, sim, sobre uma situação específica, na qual Rodrigo Albernaz beneficiava-se de sua posição de professor universitário para publicar textos de seus alunos como se fossem de sua própria autoria:

[...] quando professor de pós-graduação, traduzia para francês parágrafos inteiros do trabalho de uma de suas alunas e os incluira em um texto seu publicado na Europa numa coletânea de celebridades da América Latina. Questionado em particular pela aluna, desculpou-se e ofereceu em troca seu apoio para ela ingressar e fazer carreira na universidade. Ela aceitou, cumpriu a prometida carreira e, segundo os documentos, terminou por se aposentar normalmente, já depois da morte de Albernaz. [...] (FIGUEIREDO, 2009, p. 18-19).

Nestor percebeu que tinha em mãos um escândalo. Um escândalo que, em verdade, não era seu, pois os documentos pertenciam a Torres. Mas não era o que ele mesmo pensava, já que havia recebido das mãos do próprio Torres:

[...] Não precisava devolver os papéis. Torres, o Cego, lhe entregara deliberadamente os documentos originais. Era um admirador irredutível de Rodrigo Albernaz. Talvez uma lealdade nascida na juventude: quem sabe em meio a que sonhos e turbulências de adolescentes ele havia selado uma aliança com Albernaz. [...]. (FIGUEIREDO, 2009, p.19).

Nestor tentava enganar a si mesmo. Sabia que Torres não publicaria as informações que mostravam um lado obscuro e desconhecido de Albernaz, já que se o fizesse “os dois Albernazes – o morto e o renascido – se aglutinariam em um só: um híbrido, uma aberração” (FIGUEIREDO, 2009, p. 20). Sentiu-se então no dever não apenas por publicar tal fato, mas por saber que isso lhe traria reconhecimento, pois “aquela novidade bastava para o futuro livro” (FIGUEIREDO, 2009, p. 19). E, para isso, Nestor trabalhou muito a ponto de precisar de bebidas e tranquilizantes para manter seu ritmo de trabalho e camuflar a consciência do que estava prestes a fazer. Por fim, o livro foi publicado:

Dentro do prazo, o livro foi apresentado à editora e publicado, enfim, poucos meses antes de expirar o ano centenário. Os protestos da família de Albernaz e um confuso processo na justiça vieram no momento exato, como um coro que fez o livro subir ao céu. (FIGUEIREDO, 2009, p. 20).

Nestor, posteriormente à publicação, ganhou notoriedade. E aí que reside a grande ironia do conto. O protagonista, que não tinha uma deficiência visual, paradoxalmente, prefere fingir que não sabe o que fez a fim de se tornar famoso, já que com a publicação da obra “acumula propostas e oportunidades de trabalho, sem saber até que ponto provinha de seu livro ou das sete páginas cedidas pelo Cego” (FIGUEIREDO, 2009, p. 21).

Essa é a marca dessa narrativa fantástica que se volta para o sujeito moderno, apresentando-o como ele é. E, no caso de Nestor, segundo Pereira (2013), apresentando “a sua ambição, sua falta de escrúpulos, seu instinto de competição, seus preconceitos, sua crueldade” (p. 155).

Logo em seguida à publicação do livro de Nestor, Torres lança a sua biografia sobre Albernaz, a qual não faz tanto sucesso, visto que não apresenta novidades, muito menos um escândalo.

Assim, o protagonista percebe que Albernaz havia morrido duas vezes: a primeira, a morte literal, e a segunda, a morte figurada, pela desconstrução de sua imagem. De acordo com Pereira (2013), “[...] Nestor e Torres tornam-se tanatógrafos de Albernaz. Produzindo uma escrita deliberadamente cega sobre o biografado, os biógrafos o matam uma segunda vez” (p. 156).

É interessante que, embora Nestor tenha gerado toda polêmica por causa da publicação dos documentos, ambos os autores causaram a segunda morte de Albernaz. Isso porque, se o material estivesse ainda com Torres, ele não o publicaria, fato que demonstra também o caráter do Cego, já que encobriria da crítica e do público leitor em geral um episódio que fez parte da vida do artista. Para Pereira, “nos dois casos, escrever equivale a matar. Um biógrafo mata o real por espetacularizá-lo; o outro, por encobri-lo de forma deliberada” (2013, p. 156).

Não satisfeito, o ambicioso Nestor resolveu no ano seguinte entrar em contato novamente como Torres a fim de lhe propor um trabalho em conjunto:

̶ Para mim, Torres, você é o grande especialista no assunto. Há um novo campo aberto para pesquisas e descobertas importantes. Há até certa ansiedade por isso em parte do público. Podíamos nos unir, obter informações novas e publicar juntos um novo livro, um desdobramento, que aproveitasse o sucesso do primeiro e ampliasse as revelações sobre Rodrigo Albernaz. Seria mais fácil de fazer do que o primeiro livro e poderia trazer vantagens para nós dois. (FIGUEIREDO, 2009, p. 22).

Apresenta-se, novamente, o “homem-lobo” Nestor tentando se aproveitar da situação para conquistar mais fama e dinheiro, explorando uma exposição de vida de Albernaz para se tornar um grande escritor. Ele sabia que, para conseguir mais, seria necessário o auxílio de Torres. Dessa forma, a escrita tornou-se, em consonância com Marcelo Pereira, “um produto a ser consumido. Quando bem trabalhada, segundo a lógica do mercado, a escrita pode ser uma atividade lucrativa, pagando o preço de tornar-se descartável” (2013, p. 156).

De certa forma, a escrita de Nestor era descartável, haja vista que o fato que lhe trouxe fama em sua obra foram algumas páginas retratando uma situação desconhecida da vida de Albernaz. O restante da obra foi, praticamente, descartável. Não interessava. A não ser o fato que demonstrava até que ponto o ser humano pode chegar a fim de alcançar alguns objetivos pessoais; foi assim com Albernaz, com Nestor e com Torres.

O cego, no entanto, vai até a cozinha fazer um café, assim como procedeu na última vez que Nestor esteve em sua casa. Este acreditava que ele estava pensando na proposta. Mas não. O cego se retirou e queimou na boca do fogão alguns papéis, nos quais, provavelmente, havia mais documentos acerca de curiosidades da vida de Rodrigo Albernaz. Nesse sentido, para Pereira (2013), o fogo nos documentos representa o silenciamento das vozes e a destruição da expectativa de Nestor em produzir uma nova obra (p. 157).

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