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Academic year: 2021

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(1)UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS. LUÍS PAULO FIÚZA MARQUES. A CONSTITUIÇÃO DO FANTÁSTICO EM O LIVRO DOS LOBOS, DE RUBENS FIGUEIREDO. SÃO PAULO 2019.

(2) LUÍS PAULO FIÚZA MARQUES. A CONSTITUIÇÃO DO FANTÁSTICO EM O LIVRO DOS LOBOS, DE RUBENS FIGUEIREDO. Tese. apresentada. graduação. em. ao. Programa. Letras. da. de. Pós-. Universidade. Presbiteriana Mackenzie, como obtenção parcial do título de Doutor em Letras.. ORIENTADORA: Prof.ª Dr.ª MARIA LUIZA GUARNIERI ATIK. SÃO PAULO 2019.

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(5) DEDICATÓRIA. Dedico este trabalho à minha avó Tereza Weber Fiúza (in memoriam) e ao meu tio Paulo Marques (in memoriam) por auxiliarem em minha formação tanto pessoal quanto profissional..

(6) AGRADECIMENTOS. A Deus por me capacitar na realização deste trabalho. À minha mãe, Neiva Fiúza Marques, por me apoiar na realização desse sonho. Obrigado, mãe, por seu cuidado e sua oração em todos os momentos de minha vida. Mãe, a sua dedicação em minha formação, tanto pessoal quanto profissional, reflete o verdadeiro amor. Ao meu pai, Irany Marques, pela dedicação na vida familiar e acadêmica. Pai, o senhor é um exemplo de superação educacional e espiritual. Agradeço a sua avidez e força que me ensinaram a seguir meus sonhos mesmo em momentos adversos. À Prof.ª Dr.ª Maria Luiza Guarnieri Atik, pelo profissionalismo e dedicação nas leituras e orientações precisas para realização deste trabalho. Obrigado por me apresentar autor e obra que se tornaram objeto de estudo para esta tese. Professora, a senhora se tornou para mim um exemplo a ser seguido na vida profissional. À Prof.ª Dr.ª Ana Lúcia Trevisan, por me apresentar de maneira cativante a literatura fantástica e conduzir meus primeiros estudos nesse campo literário. Professora Ana Lúcia, obrigado pelos direcionamentos acadêmicos para realizar este trabalho. Aos demais membros da Banca Examinadora: Prof. Dr. Cristhiano Motta Aguiar, Prof.ª Dr.ª Ana Luiza Ramazzina Ghirardi e Prof.ª Dr.ª Renata Philippov pela leitura acurada deste trabalho e pelas preciosas sugestões para o desenvolvimento de minha tese. À minha noiva, Graziela Mitsue Uemoto Maciel Martins, pelo apoio incondicional durante todo período de produção deste estudo. Graziela, o seu amor, a sua dedicação e o seu cuidado para comigo ressignificaram minha vida! Ao meu amigo Cristian Vasconcellos, pelo incentivo e pelas dicas valiosas durante o processo de redação deste trabalho. À Universidade Presbiteriana Mackenzie e ao Mackpesquisa, pelo incentivo à minha formação acadêmica e à bolsa de estudos que me permitiu concluir o Doutorado..

(7) RESUMO: Esta pesquisa analisa a instauração do insólito nos contos da coletânea de O livro dos lobos (2009), de Rubens Figueiredo. Para tanto, procurou-se entender como os mecanismos constituintes do fantástico como a hesitação do leitor e/ou da personagem, a falta de nomenclatura das personagens, a imprecisão espacial da narrativa, o narrador autodiegético, a ambiguidade comportamental e discursiva auxiliam na instauração dessa modalidade textual no corpus escolhido. Por conseguinte, a presente tese parte do princípio da importância da leitura do corpus desse estudo, assim como de aparatos teóricos como os de David Roas (2001), Filipe Furtado (1980), Jaime Alazraki (2001), Remo Ceserani (2006) e Rosalba Campra (2016) etc., a fim de compreender as divergências e as aproximações das vertentes a respeito do conceito de narrativa fantástica. O foco deste trabalho está no fato de que os contos partem de um princípio narrativo que oscila entre a realidade e a irrealidade. Os resultados alcançados comprovam que há oscilações e rupturas no enredo dessas narrativas, fatos que estabelecem o fantástico nos contos.. Palavras-chave: Rubens Figueiredo – O livro dos lobos – Literatura fantástica e insólito..

(8) ABSTRACT: This research analyzes the establishment of the insólito in the tales of Rubens Figueiredo's collection, The book of the wolves (2009). For this purpose, it was searched to understand how the constituent mechanisms of the fantastic, such as the reader’s and/or the character’s hesitation, the lack of the characters’ nomenclature, the spatial inaccuracy of the narrative, the self-diegetic narrator, the behavioral and the discursive ambiguity assist in the establishment of this textual modality in the chosen corpus. Thus, this dissertation starts from the principle of the importance of the corpus reading of this study, as well as from the theoretical apparatuses such as David Roas (2001), Filipe Furtado (1980), Jaime Alazraki (2001), Remo Ceserani (2006) and Rosalba Campra (2016) etc, in order to understand the divergences and the approximations of the strands in regarding to the fantastic narrative concept. The focus of this work is on the fact that the tales start from a narrative principle that oscillates between reality and unreality. The achieved results show that there are oscillations and ruptures in the plot of these narratives, facts that establish the fantastic in the tales.. Keywords: Rubens Figueiredo, The book of the wolves, insólito and fantastic literature..

(9) SUMÁRIO. Introdução ................................................................................................................ 9 Capítulo 1 – Fantástico: Teorias e Conceitos ..................................................... 14 Capítulo 2 – As transform(ações) fantásticas ..................................................... 45 I.. O Livro dos Lobos ......................................................................... 45. II.. “Alguém dorme nas cavernas” ................................................... 46. III.. “Um certo tom de preto” ............................................................. 67. IV.. “O caminho do Poço Verde” ...................................................... 73. V.. A escola da noite ....................................................................... 91. Capítulo 3 – O cotidiano fantástico de homens lupinos...................................106 I.. “Os biógrafos de Albernaz” ......................................................... 106. II.. “A terceira vez que a viúva chorou” ......... ................................ 110. III.. “Os anéis da serpente” ............................................................. 115. Considerações finais .......................................................................................... 126. Referências bibliográficas .................................................................................. 132.

(10) 10. Introdução. Esta pesquisa tem como objetivo verificar a configuração do fantástico nos contos da coletânea O livro dos lobos, de Rubens Figueiredo. Para tanto, depois da leitura dos textos, examinou-se a instauração do fantástico utilizando os princípios teóricos mais contemporâneos a respeito dessa literatura, a saber: os de David Roas (2011), Filipe Furtado (1980), Jaime Alazraki (2001), Remo Ceserani (2006) e Rosalba Campra (2016), os quais nos auxiliaram nas análises do corpus escolhido. Analisou-se como o fantástico na coletânea de Rubens Figueiredo é instaurado por meio do cotidiano e da aparente sensação de normalidade da própria personagem em relação a fatos/episódios narrados, os quais têm um efeito de hesitação no leitor, uma vez que não há limite entre o real e o imaginário nas narrativas, de maneira que o verossímil e o inverossímil se fundem para a constituição do fantástico na coletânea. Além disso, verificou-se que o espaço da personagem e os objetos simbólicos que fazem parte do narrado provocam a inquietação no leitor, reforçando, assim, a modalidade fantástica. Nesse sentido, percebeu-se, desde o início desta pesquisa, que Rubens Figueiredo é um autor muito versátil em sua produção literária, uma vez que, concomitantemente com a produção de suas obras de modelos literários distintos, esmerava-se em seu trabalho de tradução de escritores clássicos da literatura russa como Liev Tolstói e Fiódor Dostoiévski, assim como os da literatura inglesa, fato que certamente influenciou na criação de seus livros. Como professor, Rubens Figueiredo atuou no curso superior de Teoria Literária da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, no ensino médio de escolas públicas e no ensino supletivo no período noturno em escolas do mesmo estado. Ao que se nota, Figueiredo sempre esteve envolvido no mundo das letras, ora por vias acadêmicas, ora como escritor/tradutor. A versatilidade é, então, uma das características do autor, seja na formação acadêmica, seja na vida profissional, seja na tradução e produção literária. O romance O mistério da samambaia bailarina, publicado em 1986, foi a sua primeira obra ficcional. Trata-se de narrativa estruturada sobre as bases do gênero policial clássico, que influenciou a criação de mais duas obras nesse viés: Essa maldita farinha, um ano depois da primeira publicação, e A festa do milênio, publicada em 1990. Tais obras deram início à produção literária que, paralelamente, o autor.

(11) 11. alternava com o seu trabalho acadêmico. Rubens Figueiredo resolveu modificar o teor de sua escrita. Embora ainda inserido na narrativa, Rubens passou a dar preferência a relatos curtos em detrimento dos romances que havia publicado. Daí surgiu a obra que fomenta este trabalho, O Livro dos lobos, que foi publicada em 1994, com uma nova proposta, a qual demonstra a habilidade do autor na constituição do insólito em narrativas curtas. Em 2009, pela Editora Companhia das Letras, o autor reescreveu praticamente toda essa obra e publicou a 2ª edição da coletânea. O exemplar é composto por sete contos, que se diferenciam não apenas pelo gênero dos livros anteriores (romance), mas também pelo assunto abordado em cada conto que, em verdade, se torna, no fluxo de leitura e interpretação do leitor, uma temática única, embora trabalhada de diversas formas. Nessa esteira, é interessante o fato de que o autor, diante de todas as suas obras, escolhe O livro dos lobos para tratar da temática fantástica e modificar totalmente a estrutura de sua narrativa, o que torna essa coletânea de contos especial, já que as narrativas oscilam entre a realidade e a ficção, entre ser e/ou aparentar ser alguém para alcançar interesses próprios e, ainda, apresentar espaços indefinidos onde as personagens se movem. Fatos estes que constituem uma perspectiva fantástica contemporânea. Se nos romances Figueiredo prezava por uma narrativa clássica policial, em sua nova fase, passou a elaborar uma narrativa curta de cunho fantástico. Desenvolveu a escrita com poucas personagens, todavia, as insere em um complexo cotidiano, o qual parece oscilar entre o plano real e o irreal ou, até mesmo, sugerir um sincretismo desses dois polos que, aparentemente, são tão opostos. Isso não diz respeito apenas aos fenômenos físicos como espaços e objetos do narrado, mas também ao campo emocional das personagens, que oscila com frequência. Não obstante a sua participação do cenário literário nacional, ficou ainda mais conhecido depois das premiações no renomeado Prêmio Jabuti de Literatura: em 1998, sua obra As palavras Secretas foi agraciada com o prêmio de melhor livro de contos. Ganhou novamente o Prêmio Jabuti em 2002, desta vez, na categoria romance, com Barco a seco. Em decorrência disso, alguns críticos da literatura nacional reconhecem a importância das obras de Rubens Figueiredo. Um deles é Nelson de Oliveira que, em.

(12) 12. 2001, publicou Geração 90: manuscritos de computador, em que o autor compara os contistas da década de 70 aos da geração de 90, na qual se insere Rubens Figueiredo. Com essa publicação, Oliveira busca apresentar escritores do gênero que se destacaram na produção literária. Beatriz Resende publicou em 2008 a obra Contemporâneos: expressões da literatura brasileira no século XXI, por meio da qual propôs o mapeamento da literatura brasileira. Rubens Figueiredo está situado nesse estudo como um dos contistas de possibilidades plurais da narrativa nacional. É tido, pois, como referencial para a autora: Se quisermos identificar as possibilidades plurais de nossa prosa de ficção, podemos partir do importante elenco de escritores que tornou a década de 1990, especialmente a partir da segunda metade, um momento bastante rico, como Milton Hatoum, que surge maduro, Rubens Figueiredo, Marçal Aquino, Bernardo Carvalho e, num caso peculiar, Paulo Lins. (RESENDE, 2008, p. 22-23).. Outra obra que destaca a produção literária de Rubens Figueiredo é Ficção brasileira contemporânea, de Karl Erik Schollhammer, publicada em 2009. Schollhammer fez um levantamento de produções contemporâneas que buscaram traçar em seus escritos o realismo multifacetário. Em relação à obra de Rubens Figueiredo, o autor destaca a aproximação do fazer literário ao mais cotidiano, à vida ordinária em seus detalhes diminutos, insignificantes. Além dos críticos citados, há também o material produzido por acadêmicos como teses e dissertações que têm como corpus as obras do autor. Embora não exista um volume significativo de trabalhos sobre o escritor carioca, alguns ganham destaque como a tese defendida por Marcelo de Souza Pereira intitulada Fingidores em cena: A metaficção em Sérgio Sant´Anna e Rubens Figueiredo, em 2010, pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro – UERJ, que faz uma análise comparativa entre as produções de Rubens Figueiredo e as de Sérgio Sant´Anna. No que diz respeito a dissertações de mestrado, há alguns trabalhos que se destacam sobre Rubens Figueiredo. O primeiro deles é de autoria de Roberto de Andrade Lota, publicado em 2011 pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, no qual Lota verifica toda a produção romanesca de Figueiredo, buscando compreender o processo de escrita do autor e sua relação com a literatura brasileira contemporânea. Por outro lado, Alexandra Brito da Silva Velásquez, em dissertação intitulada O Fantástico na Prosa Contemporânea, defendida em 2012 também pela UERJ,.

(13) 13. analisa a questão do duplo na ficção de Rubens Figueiredo. Para tal trabalho, referida autora utiliza-se dos estudos de Tzvetan Todorov, Ceserani e Furtado a respeito do estranho, assim como do artigo Umheimliche, de Sigmund Freud, a fim de compreender o estudo do insólito. Além deste estudo, Alexandra busca demonstrar a relação da personagem e de seu duplo em narrativas fantásticas. Um dos mais recentes desses trabalhos produzidos na academia é A cidade e o olhar: Uma leitura de Passageiro no fim do dia, de Rubens Figueiredo, dissertação publicada em 2015 na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. De autoria de Juliana Neves Nogueira, o trabalho é uma análise das representações da cidade e do olhar na obra Passageiro do fim do dia, de Rubens Figueiredo. Além de analisar a obra supramencionada, a autora também faz uma leitura do conto “Escola da Noite”, que pertence à coletânea de contos de O Livro dos Lobos (2009), objeto de estudo deste trabalho. Há também a dissertação de Clarice de Mattos Goulart, intitulada A quem cabe a última palavra? O lugar social do escritor e do crítico em Rubens Figueiredo, que foi defendida na Universidade Federal Fluminense, em 2017. O referido trabalho, contudo, não tem como objetivo tratar da prosa insólita em Figueiredo, mas, sim, discutir a inserção e a manutenção de escritores contemporâneos quando estes são reconhecidos pela publicação editorial e, posteriormente, pela crítica literária. Percebe-se, então, que Figueiredo é um autor estudado no Brasil, contudo, ainda há vasto material para análise de suas obras, sobretudo quanto ao estudo do fantástico. Nesse sentido, o presente trabalho, além de objetivar a verificação dos procedimentos para a instauração da modalidade fantástica em O livro dos lobos, é também uma maneira de reconhecimento e divulgação da produção do autor carioca. Nesse contexto, considerando a polivalência de Rubens Figueiredo na sua produção literária e os trabalhos acerca do autor, desenvolveu-se um estudo teórico a respeito do fantástico, no qual se verificam as várias vertentes desse modelo literário desde o século XIX até o surgimento de conceitos mais contemporâneos a fim de compreender as peculiaridades dessa modalidade literária e de auxiliar no objetivo deste trabalho, que é configuração do fantástico em O livro dos lobos. O estudo teórico inicial do trabalho será fundamental para compreender o fantástico em Rubens Figueiredo. Em que pese não ser o objetivo deste trabalho harmonizar toda a problemática a respeito da categorização da narrativa fantástica – gênero ou modo – bem como estabelecer quais seriam seus elementos essenciais, essa discussão.

(14) 14. teórica se fez metodologicamente necessária para que se pudesse atingir o objetivo central deste estudo. Assim, o presente trabalho se estrutura da seguinte forma: no primeiro capítulo, inicia-se pelo estudo do arcabouço teórico e histórico a respeito do fantástico; trata-se daquilo que é para os autores desse modelo literário a marca distintiva do fantástico; no segundo capítulo, examina-se parte do corpus escolhido, a saber, os contos “Alguém dorme nas cavernas”, “Um certo tom de preto”, “O caminho do Poço Verde” e “A escola da noite”, para averiguar como ocorre a instauração do fantástico nos mesmos. Verificou-se também como os elementos da narrativa fantástica (tempo, espaço do narrado, solidão da personagem, objetos fantásticos, oscilação entre verossímil e inverossímil, processo identitário das personagens) constituem o fantástico nos contos selecionados a partir de uma transformação pessoal; e, finalmente, no terceiro capítulo, a atenção é voltada para os demais contos da coletânea, a saber: “Os biógrafos de Albernaz”, “A terceira vez que a viúva chorou” e “Os anéis da serpente”. Analisou-se nesse capítulo como os elementos da narrativa fantástica, citados anteriormente, constituem o fantástico nesses três contos a partir do imbricamento dessa modalidade literária ao cotidiano das personagens..

(15) 15. Capítulo 1 Fantástico: teorias e conceitos. “[...] ce genre exige plus de bon sens et d’art qu’on ne l’imagine ordinairement.”. Tzvetan Todorov foi o primeiro autor a sistematizar a literatura fantástica em obra intitulada Introdução à literatura fantástica (1970), por meio da qual tratou de definir essa literatura como um gênero1, basicamente composto pela tríade hesitação, leitor e interpretação. Isso porque, segundo o autor, são essas as principais características do fantástico. A hesitação, para ele, diz respeito à dúvida do leitor e/ou da personagem sobre um momento do enredo que parece não ter sido regido pelas leis naturais e que, assim, romperia com a realidade. O leitor é fundamental para reconhecer a verossimilhança do espaço da narrativa e, depois do momento de rompimento com o real, refletir sobre o contraste entre realidade e situação insólita. No que se refere à interpretação, de acordo com o autor, é a exigência de o leitor não enveredar por uma leitura poética nem mesmo alegórica da obra, o que descaracterizaria, assim, a situação insólita e, dessa forma, o fantástico. Anteriormente a Todorov, outros autores trataram da literatura fantástica como Roger Caillois que, em livro publicado em 1966 ̶ Anthologie du fantastique ̶ , aponta distinções entre o fantástico e o maravilhoso. Consoante o autor, as duas vertentes, apesar de semelhantes, não devem ser confundidas. Isso porque, ao examinar o conceito de conto de fadas, Caillois percebe que ocorre com frequência um fato sobrenatural na trama, assim como no fantástico. Contudo, no maravilhoso, o sobrenatural é retratado como natural, isto é, o real e o irreal convivem harmoniosamente em um mesmo cenário, visto que a magia e a fantasia são regras. 1. Embora reconheçamos a importância do estudo de Todorov, não concordamos com o fato de a literatura fantástica ser tomada como gênero, haja vista as flexibilizações que, historicamente, foram apresentadas por essa literatura, o que nos impede de reconhecermos a mesma como gênero, mas, sim, como um modo literário dinâmico e vivo consoante ao posicionamento de Ceserani (2006)..

(16) 16. para a composição do mundo do “Era uma vez...” – expressão costumeira nesses contos – que transporta o leitor a outro universo de possibilidades, no qual situações insólitas são naturais e, portanto, não causam inquietações do receptor em relação ao texto, porque é constituído de forma distante e estanque de seu público (CAILLOIS apud CAMARANI, 2014, p. 8). O fantástico, por sua vez, de acordo com Caillois, rompe com a estrutura da realidade e, por este rompimento, instaura um novo âmbito de fenômenos que manifestam possibilidades outrora desconhecidas. Para o autor, o fantástico “manifeste un scandale, une déchirure, une irruption insolite, presque insupportable dans le monde réel”2 (CAILLOIS, 1966a, p. 8). Segundo o autor, o fantástico aterroriza porque rompe com os preceitos de normalidade que caracterizam o real, criando, dessa forma, a tensão que causa o terror – o que o diferencia dos contos de fadas, bem como gerando o desfecho infeliz tão frequente nesse modo literário. Ana Luiza Silva Camarani também aponta, em tese sobre os caminhos teóricos do fantástico, que há um diferencial entre o realismo mágico e o romance gótico. Para ela: [...] No romance gótico, esses elementos são explícitos, logo, a incerteza não se manifesta, embora a contradição entre as duas configurações discursivas permaneça. O realismo mágico, por sua vez, mantém a mesma conformação binária, mas elimina a contradição entre o real e o sobrenatural ou insólito: há a naturalização do sobrenatural ou a sobrenaturalização do real, ou ainda o chamado realismo maravilhoso centrado nas crenças étnicas. (2014, p. 8).. Verifica-se, pois, que o sentimento de estranhamento é o principal fator para a distinção entre o fantástico, o gótico e o realismo mágico, uma vez que o insólito, embora seja um elemento comum a todas essas modalidades literárias, constitui-se de modo diferente em cada uma delas. É fato que a literatura fantástica já fora discutida por diversos teóricos. Tzvetan Todorov (1970) buscou identificá-la como gênero, definindo-a de acordo com alguns padrões textuais, que, segundo ele, caracterizam-na enquanto tal. Outros autores, por sua vez, como Remo Ceserani (2006), David Roas (2011), Jaime Alazraki (2001) e. “manifesta um escândalo, uma ruptura, uma erupção incomum, quase insuportável no mundo real.” (tradução nossa) 2.

(17) 17. Rosalba Campra (2016) enveredaram para uma definição de texto fantástico distinta à de Todorov, visto que a trataram como um modo literário, como um texto vivo e que, sendo assim, é suscetível a mudanças em sua constituição. A discussão teórica, no que diz respeito a uma possível classificação do fantástico, instigou-se ainda mais com a publicação de Metamorfose, de Franz Kafka. Enquanto, para Todorov, o fantástico situa-se em um ponto indiscernível entre o Maravilhoso e o Estranho e apresenta em um primeiro momento situações totalmente normais no enredo para, só no futuro, proporcionar ao leitor um momento sobrenatural, verifica-se que, para Kafka, o sobrenatural decorrente da ruptura se dá logo no início da obra, diferenciando-se dos textos fantásticos por excelência. Surge então, por parte dos teóricos, a refutação da tese de Todorov e o surgimento daquilo que, tempos depois, denominariam de neofantástico. A apresentação de um modelo diferente por parte de Kafka, sem, contudo, fugir à modalidade fantástica, levou à necessidade de se estender este conceito, de modo a abarcar novas possibilidades narrativas. Esse caráter flexível da modalidade fantástica ensejou o surgimento do conceito de neofantástico, de maneira a contemplar uma nova geração de textos graças à flexibilidade temporal desse modelo literário, contrariando, assim, a ideia de que o fantástico é um gênero, enquanto texto cristalizado em determinadas características, como salientava Todorov. Ao lado da discussão acerca da construção da narrativa fantástica, existem ainda debates no concernente à forma como o insólito é instaurado no fantástico, seja por meio da relação entre a personagem e seu duplo, seja pela indefinição do espaço e/ou da sua construção (transformação) identitária, o que parece ser uma das grandes vertentes do fantástico pós-estruturalista de Todorov. Essa problemática se insere na história da literatura fantástica. Segundo Camarani, os rudimentos dessa discussão já se encontravam nos textos do autor francês Jacques Cazotte, no século XVIII. É também nesse período que surge o precursor do estudo a respeito dessa modalidade literária, Charles Nodier, que, embora fosse também autor de obras literárias, escreveu, em 1830, o artigo intitulado “Du Fantastique en littérature”, no qual fez um levantamento a respeito de histórias que mantinham um ar de mistério em seus enredos. Para Nodier, o fantástico procede do mundo imaginativo de seu criador e não de uma mente perturbada ou doente, nem mesmo de uma mentalidade visionária ou alucinada..

(18) 18. De acordo com Nodier, o fantástico: [...] é oriundo do racional, do desenvolvimento da mente humana. Ao avançar em seu conhecimento do mundo, o ser humano observa que toda vez lhe escapa um elemento para que possa chegar a um conhecimento completo de seu ambiente e sente a presença de um conjunto de fenômenos que não pode reconhecer completamente. Trata-se da existência de um mundo fantástico [...], que não é regido por leis diferentes das que dominam o mundo positivo, mas por uma espécie de hiperbolização das leis positivas. [...] (NODIER apud CAMARANI, 2014, p. 14-15).. O conceito de sobrenatural, consoante o autor, já existia há tempos, mas o modo fantástico, tal como é conhecido, só ganhou uma impulsão significativa com os ideais de fantasia que se consolidaram no século XVIII, influenciado pelas grandes revoluções da época. Isto porque, para Camarani, a Europa fora fatigada por séculos de racionalismo e, portanto, de aversão ao sentimentalismo, cujo efeito inibiu a manifestação dessa modalidade literária (CAMARANI, 2014, p. 15). Outro escritor que trouxe importantes contribuições ao estudo do fantástico, posterior a Nodier, foi Guy de Maupassant. Para ele, autores como Edgar Allan Poe e E. T. A. Hoffmann tinham a habilidade de causar inquietação aos leitores, na medida em que, quase sempre, alguma coisa inexplicável ou quase impossível ocorria nos textos fantásticos (CAMARANI, 2014, p. 22). No século XIX, Maupassant escreveu dois textos curtos, mas esclarecedores, sobre as narrativas fantásticas, cujo assombro, segundo ele, fundamentava-se em conteúdos interiores do sujeito, e não em entidades exteriores a ele como criaturas sobrenaturais, mudando de uma perspectiva objetiva para uma de efeito psicológico do fantástico, tais como a alusão ao sonho, à imaginação ou, até mesmo, à loucura. A respeito disso, Camarani explica que: Maupassant despede-se, assim, do fantástico que o positivismo e a industrialização teriam destruído, em um tom saudoso e até mesmo plangente. Observa que a noite não mais aterroriza o homem, para quem não há mais fantasmas, nem espíritos, pois tudo o que era chamado “fenômeno” é explicado por leis naturais. (2014, p. 23).. Fato é que tanto Nodier como Maupassant refletiram sobre o fantástico de tal maneira que, posteriormente, as suas ideias tornaram-se basilares para a constituição de teorias sobre a modalidade fantástica..

(19) 19. Tais transformações do fantástico foram inclusive discutidas no livro Le conte fantastique en France, de Pierre-Georges Castex (1962). A questão levantada nesta obra diz respeito às mudanças do fantástico, surgidas no período entre Nodier e Maupassant. Enquanto o primeiro autor atinge seus objetivos escrevendo sobre sonhos e visões, o segundo, por desejar se voltar à realidade, precisou valer-se da alucinação no interior da narrativa. Nesse sentido, Castex concluiu que a evolução dessa literatura, entre os séculos XVIII e XIX, repousou principalmente na psique da personagem. Para Louis Vax, em texto publicado em 1965, La séduction de l’étrange, o fantástico não deveria fugir à realidade, mas se aproximar desta a fim de que a ruptura, que o caracteriza, fosse potencializada pelo contraste entre o insólito e o real. Vax parte do princípio de que há elementos narrativos propícios a essa ruptura e que corroboram o efeito fantástico, pois, segundo ele, “um conto fantástico seria uma história de vampiro, de fantasma, de lobisomem, e não uma história de passarinhos e flores” (VAX apud CAMARANI, 2014, p. 46). Além dessas características, há ainda, de acordo com ele, uma participação importante do leitor no que diz respeito ao sentimento de estranhamento e à criação de um cenário previamente pensado para causar esse efeito no fantástico. Para ele: A narrativa fantástica gosta de nos apresentar, habitando o mundo real onde nos encontramos, homens como nós, postos de súbito em presença do inexplicável. [...] o fantástico nutre-se dos conflitos do real e do possível. (VAX apud CAMARANI, 2014, p. 43).. Nesse sentido, ao lado da ocorrência, em um cotidiano de certezas, de um fato absurdo, insólito, sem uma explicação racional, o autor elenca outra característica essencial para a estruturação do fantástico, a saber: a consequente crise instaurada pelo embate do real com o irreal, a incerteza de se estar mesmo vivendo um fenômeno sobrenatural ou se tal episódio não passa de uma coincidência ou de um sonho, por exemplo. Para tanto, o autor enfatiza a necessidade da credulidade do leitor em relação à narrativa, fato este que só se consegue mediante alguma medida de verossimilhança da narrativa em relação à realidade do leitor. Em consonância com Camarani:.

(20) 20. [...]. O pensamento de Vax encontra, assim, o de Nodier quando este enfatiza a necessidade de identificação entre as palavras do contador de história e o público, isto é, a necessidade de crença (ou a qualidade de ser convicto) por parte do contista. (2014, p. 49).. Percebe-se, portanto, que há inúmeras divergências teóricas sobre o conceito de literatura fantástica, e que, a despeito de tantas divergências, um ponto parece ser unânime entre os teóricos: o sentimento de estranhamento. Além deste sentimento característico, é ainda fundamental uma interação entre o tempo e o espaço na construção da narrativa fantástica, visto que, frequentemente, esses elementos fundem-se a fim de instaurar efeitos de sentido. Para Camarani, espaço, tempo e sentimento de estranhamento são fundamentais para criar a hesitação, sentimento característico da modalidade fantástica. Outro aspecto essencial à narrativa fantástica, conforme a grande maioria dos autores que trataram desse modelo literário, seria o fato de esta ser escrita em primeira pessoa. Isso se daria por dois motivos. Primeiramente porque, por essa forma autodiegética, tem-se a possiblidade de aproximação entre leitor e personagem, sendo aquele conduzido por esta ao longo do enredo do texto. Depois porque, com frequência, a solidão da personagem diante dos fatos/episódios insólitos salienta o caráter fantástico da narrativa, visto que a ausência de qualquer outra testemunha do fato insólito reforça a sua inexplicabilidade. De acordo com Camarani:. [...]. A solidão fantástica não se refere apenas a um isolamento objetivo: é a negação da comunidade humana. A solidão do cenário reflete a solidão da vítima; o espaço fantástico é, assim, a expressão da solidão em que a loucura e o horror aprisionam suas vítimas. (2014, p. 52).. O isolamento é, assim, uma característica das personagens de contos fantásticos que, ao lado do fato de ser narrado em primeira pessoa, é capaz de promover a proximidade entre o leitor e o narrador. Depreende-se da discussão antes exposta que, na modalidade fantástica, a incerteza sobre realidade ou ilusão não se dá apenas no campo teórico, mas também no campo da técnica discursiva acerca da natureza dessa modalidade. Outro autor que discute sobre a literatura fantástica é Filipe Furtado em seu livro intitulado A construção do fantástico na narrativa, publicado em 1980. Já de início,.

(21) 21. Furtado aponta que um dos elementos indispensáveis para a constituição do fantástico é a “temática de índole sobrenatural” (1980, p. 7). Tal conceito é enfatizado pelo autor ao trazer para a discussão o campo emocional do receptor do texto. Isto porque, assim como fora discutido com Todorov, o leitor é, consoante Furtado, parte essencial no jogo das emoções e, consequentemente, na constituição do insólito. Nesse sentido, o autor vale-se das palavras de H. P. Lovecraft (2007), segundo o qual não se deve julgar uma história sobrenatural pelas possíveis intenções do escritor, nem tão somente por uma narrativa mecânica na constituição do enredo, mas observar a que nível emocional ocorre o ápice de estranhamento, já que, no campo emotivo, o leitor é peça fundamental. No que diz respeito ao leitor, além de abordar a reflexão emotiva de H. P. Lovecraft, Furtado também considera e exalta o estudo de Tzvetan Todorov em Introdução à literatura fantástica (1970). Embora o próprio autor discorde de alguns pontos tratados por Todorov (os quais são, posteriormente, discutidos em sua obra), ele evidencia a importância dos estudos de Todorov como um dos mais completos realizados no que diz respeito à narrativa fantástica, sobretudo acerca da hesitação – elemento constituinte desse modelo literário. Filipe Furtado, contudo, prefere não elaborar uma definição para o texto fantástico, diferentemente de Todorov. Em detrimento disso, busca mostrar o caráter dinâmico da literatura fantástica, uma vez que ela se organiza por elementos que são também comuns a outros textos literários. O que, de certa forma, gera um sincretismo literário do fantástico em relação a outras modalidades literárias. Nesse norte, Furtado trabalha com o viés desenvolto do fantástico e de sua relação com outros textos literários, mostrando a dificuldade de equilíbrio na constituição de um padrão estrutural rigoroso. Não obstante a dificuldade de se estabelecer um padrão para o modo fantástico, Furtado parte de um princípio: que as marcas dessa modalidade se revelam, basicamente, nos fenômenos ou seres inexplicáveis (1980, p. 19). No que diz respeito a estes fenômenos, Furtado trabalha com posição maniqueísta. Isso porque, para o teórico, pode haver uma representação extranatural do bem ou do mal. Porém, por outro lado, em concordância com os estudos de Louis Vax, ele pontua que, para o fantástico, convém uma experiência axiológica negativa, isto é, para o mal. Tal afirmação é construída a partir da necessidade de confrontação.

(22) 22. com realidade que só pode se dar, por completo, quando esta ocorre pelo viés do. sobrenatural negativo, uma vez que é por meio deste que há o arrepio, o medo, enfim, a hesitação sombria. Para Furtado, o sobrenatural positivo pode causar certo distanciamento da narrativa fantástica, visto que um fantasma “bom” não causaria o mesmo efeito daquele esperado para um texto fantástico. Como outra consequência, o autor também se atenta ao fato de que, nessa hipótese, a narrativa poderia se enveredar para o discurso religioso, uma vez que, se uma personagem vê algo sobrenatural como um fantasma que vem para auxiliar e fazer o bem para a mesma, não há horror nessa ação, não há uma figura monstruosa e muito menos hesitação sombria no ocorrido, já que este fantasma poderia ser explicado por um discurso cristão, como o surgimento de um anjo. Assim, de acordo com a obra de Furtado e dos estudos de Louis Vax, as personagens que representam entidades religiosas (Jesus, Deus, Espírito Santo, etc.) não são ideais para a constituição do fantástico, posto que a sua aparição e a ação entre as outras personagens seriam consideradas um milagre, não algo fantástico. Por outro lado, o diabo e suas entidades, que representam o sobrenatural negativo, são personagens que auxiliam para o efeito de estranhamento não só das personagens, mas também dos leitores e, portanto, são favoráveis a essa modalidade literária. Ainda, em relação ao sobrenatural positivo, há a possibilidade de ser um texto maravilhoso, onde os fatos não são postos à prova, mas são naturalizados pelos leitores e personagens, dado que, de acordo com Furtado:. [...]. No maravilhoso não se verifica sequer a tentativa de fazer passar por reais os acontecimentos insólitos e o mundo mais ou menos alucinado em que eles têm lugar. Estabelece-se, deste modo, como que um pacto tácito entre os fenômenos nele surgidos de forma apriorística, como dados irrecusáveis e, portanto, não passíveis de debate sobre a sua natureza e causas. (1980, p. 35).. A diferença entre o maravilhoso e o fantástico, para Furtado, reside na capacidade do último constituir uma narrativa dúbia, em que os fatos sobrenaturais não.

(23) 23. podem ser explicados e se mantêm assim até o final da narrativa3. No maravilhoso, por outro lado, não há esta ambiguidade uma vez que as personagens e o próprio leitor não põem à prova a veracidade dos fatos apresentados pela narrativa, mas os aceita como comum ao texto. Para Furtado, então, a primeira condição do fantástico é o enunciado metaempírico, como já referido, pois é por meio dele que ocorre ambiguidade 4.Tal fato é criado, segundo o autor, mediante uma subversão da normalidade, isto é, comum ao cotidiano (1980, p. 44). Semelhante a Todorov, Furtado defende a tese de que o receptor do fantástico, necessariamente, precisa reconhecer o cenário como comum àquele ao qual está habituado. Dessa forma, quando essa normalidade está instaurada entre o receptor e o texto, é que ocorre a ruptura com a realidade por meio de uma ação insólita, sobre a qual o receptor questionar-se-á se ela está dentro do plano verossímil ou se ele está vivenciando, de fato, uma experiência sobrenatural. Quando se trata dessa ruptura com o real, é importante entender o conceito de realidade para Furtado. Segundo ele, o real é aquilo que, além de existir de fato, está em comum acordo com a opinião pública, isto é, com o senso comum.. [...]. Isto equivale a dizer que o verossímil remete o texto, antes de mais nada, para um corpus complexo, basicamente determinado pelas camadas sociais dominantes numa época e num espaço geográfico definidos. Compõem-no as normas de conduta individual e coletiva ao correntemente observadas e as linhas fundamentais da carga ideológica que essas normas pressupõem. (1980, p. 46).. Entende-se, portanto, que o real é uma construção social daquilo que de fato existe e daquilo que efetivamente pode vir a existir de acordo com normas preestabelecidas. Nesse sentido, o real é constituído por um caráter relativo, uma vez que depende da evolução ou substituição de conceitos à medida que a sociedade evolui. Por esse viés, o maravilhoso não evidencia preocupação com o senso comum, isto é, com a realidade, mas, pelo contrário, subverte-o para adequar a proposta ao. 3. Todorov, em Introdução à literatura fantástica (1970), denomina fantástico puro tal efeito, uma vez que não se resolve a intriga do sobrenatural até o final da narrativa. 4 Para tal efeito, Todorov trabalha com o conceito de hesitação..

(24) 24. gênero. O fantástico, por sua vez, enquadra-se em um cenário verossímil para a opinião pública, ao menos até o momento de ruptura. Ademais, para o fantástico é imprescindível uma atitude que aterrorize ou que no mínimo deixe a personagem perplexa diante do fato sobrenatural – em especial a personagem testemunha. Em relação às personas da narrativa fantástica, Furtado defende o emprego de figuras respeitadas em âmbito social, quer pela idade quer pela sabedoria, visto que tal fato corrobora com o contrato de veracidade da narrativa. Assim, são incomuns ao fantástico personagens pertencentes à classe de operários ou à de pequenos burgueses, uma vez que, em geral, elas não são tidas como “idôneas para atestar a veracidade do acontecido” (FURTADO, 1980, p. 54). Além disso, podem surgir personagens que têm como função afirmar a impossibilidade do estranho, são denominadas de personagens cépticas. Essas personagens são, frequentemente, respeitadas pelas demais, ocupam uma posição privilegiada e contribuem para afirmação de que o acontecimento foi uma ilusão e pode ser racionalizado. Para tanto, elas mesmas procuram uma solução plausível, que muitas vezes está no plano de referências factuais de diversas áreas do conhecimento, ou, até mesmo, em uma simples coincidência. Independentemente da forma, a tentativa de racionalização do fato insólito por uma personagem é também constituinte do fantástico. Isso porque, para Furtado, essa explicação falaciosa gera no leitor a confiança de que o narrador está sendo imparcial quanto ao sobrenatural. Ademais,. caso. o. narrador-personagem. não. busque. racionalizar. o. estranhamento, o leitor poderá interpretá-lo como normal naquele universo ficcional, fato que poderia extinguir a dúvida, e pender o texto para o maravilhoso. É interessante verificar que, constantemente, no fantástico, as personagens são incapazes de resistir às investidas do extranatural. É como se, nesse modo literário, não existisse um herói que trave uma guerra contra as forças contrárias, visto que elas são de outra dimensão e, portanto, parecem sempre estar acima dos poderes do homem real. Percebe-se aí certa passividade das personagens diante do insólito. Para Furtado: [...], o herói fantástico caracteriza-se por uma capacidade de reação geralmente fraca, quando não pela completa passividade perante as forças insondáveis que se agigantam contra ele. É muito mais um joguete do desconhecido, avassalado por entidades inimagináveis, do que o sujeito do seu próprio destino capaz de as vencer. (1980, p. 86-.

(25) 25. 87).. Esse caráter inapto das personagens combaterem as forças contrárias é também, segundo Furtado, um diferencial do fantástico em relação ao seu vizinho maravilhoso. Isso porque, neste último, ocorre o embate contra as forças contrárias e quase sempre as personagens saem vitoriosas no final. Percebe-se, então, que as personagens fantásticas não costumam combater as forças contrárias. Geralmente, sua função centraliza-se em difundir a perplexidade do sobrenatural. Furtado também aborda a importância do narrador-personagem para o fantástico, visto que é por intermédio dele que ocorre não apenas a transmissão dos fatos narrados, mas também o efeito de testemunha do insólito. Assim, gera-se um efeito de veracidade ao fato via narrador e não por um narrador que apenas observa as ações do enredo. Aliás, não apenas as personagens e o narrador, mas todos os elementos da narrativa operam para criar o efeito de hesitação causado pelo insólito. Um desses elementos é o espaço, que, embora seja essencial para apresentar a realidade ao leitor, não deve ser descrito com primazia porque se faz necessária a economia narrativa para fundamentar a ambiguidade. Muitas descrições e detalhes poderiam destituir a dúvida do leitor e, consequentemente, o fantástico. O espaço, segundo Furtado, é um elemento de potencial duplo para a modalidade fantástica, uma vez que ele serve como cenário de ambiguidade e recurso para reforçar a verossimilhança. Nesse sentido, o espaço é um ambiente que representa a realidade pela aproximação entre o cotidiano do leitor e o espaço descrito. Ao mesmo tempo, pode ser alucinante quando se desfigura o real, isto é, quando em um cenário verossímil ocorre algo inverossímil. O espaço utilizado nos textos fantásticos é, frequentemente, fechado, como uma casa ou um ambiente delimitado. É nesse cenário que ocorrem, regularmente, fatos sobrenaturais nas narrativas. Muitas vezes, tal efeito surge quando o narradorpersonagem se encontra sozinho. Nas narrativas fantásticas modernas, esta ferramenta ainda está muito presente entre os escritores dessa modalidade textual. Além da representação de um lugar fechado, que gera certo enclausuramento da personagem e que, em certa medida, provoca medo – sentimento primordial ao fantástico –, há também preferência a espaços negativos, aos ambientes.

(26) 26. subterrâneos, como cavernas, túmulos, criptas, etc., segundo Furtado. Tal escolha ocorre para auxiliar o efeito de ambiguidade da narrativa, uma vez que um ambiente mal iluminado pode causar dúvida a respeito do fato sobrenatural. Outro fator interessante acerca do espaço é que ele é constituído a partir de uma localização indeterminada. A imprecisão desse cenário, como suprarreferido, enfatiza o sentido de dualidade do texto, isso porque ele é estruturado de maneira ambígua: ora aproxima-se daquilo que é comum ao receptor e, portanto, equilibrado, ora sugere incertezas, refletindo um ambiente desequilibrado. Em suma, embora o próprio Furtado não tenha a pretensão de definir a literatura fantástica, alguns pontos tratados na sua obra são indispensáveis para a constituição desse modo literário, os quais destacamos a seguir: . deve haver um contexto verossímil em relação ao espaço e às personagens,. mas. que. evidencie. a. possibilidade. de. ambiguidade; . embora o extranatural ocorra nesse contexto verossímil, é necessário equilíbrio para que ele seja aceitável, isto é, que haja uma lógica interna para o fato. Não deve ser nem muito hiperbólico, nem tão simples, mas que cumpra a sua função de criar ambiguidade;. . deve-se evitar a explicação completa do fato sobrenatural, embora racionalizações parciais por intermédio de personagens favoreçam o fantástico;. . Constituir um narratário intradiegético, o qual terá duas obrigações: conduzir a narrativa ao leitor e ser testemunha do fato extranatural;. . instaurar personagens que equilibrem a ordem das coisas, as quais têm por função certa racionalização do insólito. Além disso, constituir personagens que desiquilibrem a ordem natural. Desta forma, estrutura-se a dúvida, a ambiguidade para o texto;. . elaborar funções para cada personagem de acordo com o modo fantástico;.

(27) 27. . utilizar não apenas um narrador-personagem, mas também um narrador que transmita autoridade perante o leitor, para dar veracidade aos fatos narrados;. . criar. um. espaço. indefinível,. o. qual. servirá. para. dar. verossimilhança à narrativa, aproximando o leitor da realidade, bem como que possibilite a ruptura com o real, subvertendo-o.. Além dos estudos de Furtado acerca do fantástico, que, salvo as devidas proporções, considera o fantástico como um gênero literário, há ainda os estudos de Irène Bessière. Na obra Le récit fantastique: la poétique de l’incertain (1974), em um estudo sucinto, se comparado ao de Todorov, mas importante no que diz respeito a obras fantásticas do século XX, Bessière discute a dificuldade metodológica e conceitual em relação aos estudos do fantástico. Para a autora, o fantástico é constituído por três pontos fundamentais. O primeiro deles é que tal modo literário é instituído a partir da realidade, uma vez que é a datar desta, ou da ruptura dela, que surge o fato fantástico. Segundo Bessière, nesse sentido, a narrativa fantástica é a relação direta entre o verossímil e o inverossímil, mediante a representação do real e da suposta irrealidade. De acordo com Bessière:. É também importante considerar que a narração fantástica não se define somente através do inverossímil, por si só impalpável e indefinível, mas através da justaposição e das contradições dos diversos inverossímeis; em outras palavras, das hesitações e das fraturas das convenções sociais postas em análise. Ela instala o irracional na mesma medida em que submete a ordem e a desordem – que o homem intui no natural e no sobrenatural – ao escrutínio de uma racionalidade formal. Por isso, inevitavelmente, ela se nutre dos realia, do cotidiano, dos quais sublinha as contradições, e leva a descrição até o absurdo [...]. O fantástico, na narração, nasce do diálogo do sujeito com suas próprias crenças e as incongruências que elas apresentam. (BESSIÈRE apud CESERANI, 2006, p. 63-64).. Outro apontamento da autora diz respeito à problemática de Todorov acerca do fantástico ser um gênero ou uma categoria literária. Consoante a estudiosa, o fantástico é constituído por uma lógica narrativa, que é parte da imaginação de seu.

(28) 28. autor, o que contrapõe a tese de gênero narrativo proposta por Todorov. No que diz respeito ao conceito de narrativa lógica, para a autora, há uma formalização do discurso fantástico pela tensão entre o natural e o sobrenatural, a qual gera o sentimento de estranheza. Nesse sentido, para Bessière, o fantástico: Supõe uma lógica narrativa que é tanto formal quanto temática e que, surpreendente ou arbitrária para o leitor, reflete, sob o jogo aparente da invenção pura, as metamorfoses culturais da razão e do imaginário coletivo. A síntese não nasce aqui do inventário vasto e diverso dos textos, mas da organização, por contraste e por tensão, dos elementos e das implicações heterogêneas que fazem o atrativo do relato fantástico e sua unidade. O fantástico não é senão um dos métodos da imaginação. (2009, p. 186).. Em consonância com a autora, “o fantástico mostra, de forma transparente, essa recusa de uma ordem que é sempre uma mutilação do mundo e do eu” (BESSIÈRE, 2009, p.13). O fantástico não é apenas uma nova ordem na lógica narrativa, mas a desconstrução da ordem estabelecida, uma vez que, para Irène Bessière, sempre haverá em algum momento da narrativa fantástica uma ruptura com a realidade, isto é, uma ruptura com a ordem. E, por fim, o último ponto discutido pela estudiosa é que o fantástico seria a derivação do conto maravilhoso, visto que neste há elementos sobrenaturais, os quais, contudo, não são questionados, pois nesse modelo literário eles seriam inerentes. O fantástico apresenta-se, então, como o maravilhoso às avessas, no qual o extranatural é questionado. Percebe-se, pois, a complexidade de conceituação de fantástico. Dessa forma, não se pode acreditar que a narrativa fantástica seja simplesmente a ideia contrária de realidade como nos alerta Bessière. De acordo com a autora: O fantástico não deriva da hesitação entre estas duas ordens, mas de suas contradições e da sua recusa mútua e implícita [...] O fantástico não pode ser considerado como o necessário e simples revés do racionalismo das Luzes [...] O fantástico não deriva de uma simples divisão da psique entre razão e imaginação, liberação de uma e contenção de outra, mas da polivalência dos signos intelectuais e culturais. [...] O fantástico põe em relevo a distância constante do sujeito do real e por isso ele está sempre ligado às teorias sobre o conhecimento e às crenças de uma época. (BESSIÈRE apud CESERANI, 2006, p. 65.)..

(29) 29. David Roas, por sua vez, também trata de uma definição de fantástico que se distancia da proposta por Todorov, em especial, em relação às produções pósmodernas, por meio da obra Tras los límites de lo real (2011). O autor deixa claro que considera o fantástico como uma categoria estética multidisciplinar, na qual quatro conceitos são primordiais: a realidade, o impossível, o medo e a linguagem. Roas aborda, historicamente, a importância do século XVIII para o fantástico, uma época significativa para essa literatura, já que é “marcada pela ideia de um universo estável ordenado por leis fixas e imutáveis; nesse sentido, o fantástico definese pela transgressão a essas regras” (CAMARANI, 2014, p. 167). Para Roas, o fantástico não é tido como um gênero literário, mas, sim, como uma modalidade textual, a qual é maleável graças às transformações do próprio homem e de sua História. Além disso, Roas também se debruça sobre o conceito de neofantástico na obra Teorías de lo fantástico (2001), coletânea de textos críticos de diferentes autores, organizada por ele. O autor problematiza o conceito de fantástico a partir de várias vertentes teóricas como de Todorov, Bessière, Bellemin Noël, etc. Quanto ao neofantástico, chega à conclusão de que ele é uma forma de descobrir uma nova realidade, que, possivelmente, estaria escusa sobre uma realidade cotidiana. Essa descoberta, às vezes, até mesmo abrupta de uma nova realidade vigente, causaria nas personagens, quiçá no leitor, o medo. Em consonância com Roas, este é o sentimento fundamental no fantástico5, a ponto de o autor dividi-lo em duas situações: o medo físico e o medo metafísico. O primeiro deles refere-se à ameaça física como uma agressão ou até mesmo a morte. O segundo, por sua vez, aborda o transtorno que transcende o medo físico, é instaurado pela personagem e pode ser transmitido ao leitor, já que se apresenta como uma ruptura do verossímil. Ainda, a respeito de uma concepção mais contemporânea do fantástico, outra autora importante é Rosalba Campra. Os textos fantásticos, segundo ela, são compostos de indefinições. E, talvez, por esse motivo, essas narrativas são consideradas as mais difíceis de entendimento para os leitores. A dificuldade pode. 5. H P LOVECRAFT, em O Horror Sobrenatural em Literatura, tradução de Celso M. Paciornik, também aponta o medo como indispensável ao fantástico. E, sendo assim, essencial a esse modo narrativo..

(30) 30. estar em compreender o que acontece no enredo da narrativa, ou na (im)possibilidade de este fato realmente acontecer. Dessa forma, o leitor fica suspenso no ar. E as coisas parecem se restringir da seguinte maneira: ou se acredita que o fato verdadeiramente aconteceu, embora externo às leis naturais às quais a personagem está acostumada (e, muitas vezes, até mesmo o leitor), ou se envereda para o campo da ilusão da personagem, como se ela estivesse tendo uma visão. Tal efeito, às vezes, ocorre por causa de algum produto/ objeto, de uma doença ou até mesmo em razão do estado onírico que o deixa fora de si. Fato é que a realidade parece ter um poder de verdade pela maneira como se consolida no cotidiano das personagens. Para a autora, “o fantástico pressupõe, empiricamente, o conceito de realidade, que se dá como indiscutível, sem necessidade de demonstração: simplesmente é” (CAMPRA, 2016, p. 27). A questão talvez se torne mais complexa quando se reflete sobre a realidade de como aquilo que se aproxima, de alguma maneira, dos leitores, embora ainda no campo da ficção. Campra discorre sobre a “arquitetura fantástica” levando em conta o real e o fantástico, considerando que um não é o oposto do outro. Segundo ela: O problema estaria, portanto, em encontrar um significado menos ambíguo para termos, referente à realidade que o texto postula, e não a adequação desta com a experiência que o leitor tem, ou acredita ter da própria realidade; isto é, em identificar os critérios utilizados pelos próprio texto para definir o real. Obviamente, não quero dizer com isto que o texto não se relacione com o mundo do leitor (o leitor se reconhece ou não, aceita ou não as modelizações sugeridas no e pelo texto), mas que uma definição de categorias apoiada na nossa concepção pessoal do que existe ou não, do que é pensável ou não, reduz as possibilidades de leitura deste tipo de ficções. (2016, p. 3031).. A autora chega à conclusão de que o texto fantástico não pode ser reduzido ao fato de haver ou não a possibilidade do insólito. No entanto, pode ser verificado por duas ordens inconciliáveis que se chocam. O conto fantástico se estabelece a partir de três conceitos, de acordo com Campra. O primeiro deles é por meio de algo concreto em relação ao não concreto; o segundo, entre o animado em relação ao inanimado; e, por fim, na relação do humano e não humano (2016, p. 48). Outro aspecto abordado pela autora diz respeito à construção da trama da.

(31) 31. narrativa fantástica como um enigma. Segundo ela, o conto fantástico:. Constitui uma trama como um enigma. De maneira análoga aos outros tipos de conto que têm um enigma como fator desencadeante da ação (romance policial, de cavalaria etc.), seu desenlace é de caráter regressivo: só ao chegar ao final, o leitor está em condições de recompor os vazios na trama [...]. O que distingue vistosamente o desenlace regressivo da narrativa fantástica do de outros tipos de narrativas com enigma, é seu carácter frequentemente incompleto ou incerto: se na narrativa policial, por exemplo, a investigação restitui o segmento que faltava para completar a história, a narrativa fantástica, ao final, pode ficar inconclusa, ou revelando-se como um pseudofinal, reestabelecer a incerteza, ou fazer coexistir finais contraditórios. (2016, p. 123-124).. O enigma é um estranhamento, que talvez será desvendado apenas no desfecho da narrativa, pois só nesse momento o leitor poderá encontrar respostas para os não ditos do texto. Essa ausência, porém, é fundamental para a constituição do fantástico, visto que, segundo a autora, “o estranhamento fantástico é o resultado de uma fresta na realidade, um vazio inesperado que se manifesta na falta de coesão do conto no plano da causalidade” (2016, p. 138). Campra, assim como Todorov, destaca a mudança de sintaxe na literatura fantástica que se dá no campo sintático da construção da narrativa. Essa parece ser uma tendência na elaboração da narrativa desse modelo textual no período contemporâneo, uma vez que é pela organização sintática dos termos do texto que os efeitos são disseminados ao leitor. De acordo com Campra, a manifestação do fantástico “pode se rastrear fundamentalmente no nível sintático: a aparição do fantasma foi substituída pela irresolúvel falta de nexos entre os elementos da pura realidade” (2016, p. 141). Nesse viés, a literatura fantástica, como afirma autora:. Cria outras formas de dúvida; uma dúvida que a organização do próprio conto contagia ou impõe ao leitor. Quiçá, clandestinamente, o incognoscível não seja um efeito da narração, de um “eu” limitado por seus sentidos e seu saber, mas algo que está na própria essência do narrado. Talvez não haja, para nenhum tipo de voz, a possibilidade de completar a história. Sobretudo, de desentranhar seu porquê. (2016, p. 142).. Para tal mudança organizacional do discurso narrativo, conforme Campra, a.

(32) 32. literatura fantástica passa por um momento de experimentação de um procedimento, tão somente, semântico na constituição de narrativas fantásticas, sobretudo no século XIX. Um novo fantástico, que é o discursivo originalmente desenvolvido a partir do século XX, que se centra apenas na consciência da impossibilidade de determinados fatos, o que gera, portanto, a ambiguidade no leitor. Segundo Campra (2016, p. 191), o discurso fantástico, sobretudo o contemporâneo, é formado pelo autoquestionamento a partir do momento em que é “o texto que pensa por si próprio, que se contempla em sua condição de objeto criado pela escritura, que se propõe ao leitor como projeção da própria atividade”. Nesse sentido, a teórica afirma que uma narração em primeira pessoa deixa uma margem mais ampla para a interpretação do indefinível e, por conseguinte, para sua definição. É uma narração passível de erro, engano, uma vez que parte de alguém que suspostamente viu alguma coisa, mas que não tem como comprovar que realmente viveu ou sobreviveu a um fato extranatural. Para Campra (2016, p. 100), “a primeira pessoa é sempre suspeita, porque nada, fora ela mesma, garante o narrado”. Por fim, a respeito dessa discussão conceitual do fantástico, há ainda os estudos de Remo Ceserani em O Fantástico (1996). O autor se posiciona contrário à concepção de gênero proposta por Todorov. O autor questiona a “novidade” deste campo literário e se ele realmente inicia no século XVIII ou se já estava presente nas primeiras representações literárias. Outra problemática levantada pelo autor é se é correto ou não considerar o fantástico como um modo específico e autônomo de literatura, o qual, necessariamente, precisaria de um conjunto de procedimentos formais de produção, articulações do imaginário histórico, utilizados por vários gêneros artísticos ou literários, isto é, o fantástico teria características próprias para a sua produção? Ou, ainda, é realmente uma nova modalidade do imaginário, criada no fim do século XVIII com a função de representar experiências do homem moderno? Para Ceserani, se, criticamente, os estudos de Todorov sobre o fantástico são aceitos, deve-se, então, entender como afirmações positivas tais questionamentos, embora Todorov não utilize o termo “modo”, mas, sim, “gênero”. Contudo, Ceserani não compartilha desta ideia, e toma aquele como um modo literário. Para ele: O fantástico operou, como todo e verdadeiro modo literário, uma forte reconversão do imaginário, ensinou aos escritores caminhos novos para capturar significados e explorar experiências, forneceu novas estratégias representativas. Justamente porque trata de um modo, e.

(33) 33. não simplesmente de um gênero literário, ele se caracteriza por um leque bastante amplo de procedimentos utilizados e por um bom número de temas tratados em outros modos e gêneros da literatura. [...]. (2006, p. 103).. O autor reflete, ainda, sobre a origem do fantástico a partir das grandes revoluções que ocorreram, em especial, na Europa. Assim, considera a literatura fantástica como um estudo histórico, já que nesse período, dos séculos XVIII e XIX, ela fora disseminada. Para Ceserani: O que se verifica, portanto, na passagem dos séculos XVIII e XIX, é uma mudança radical nos modelos culturais até então difundidos na mentalidade e sensibilidade coletivas. É uma mudança que possui raízes profundas na vida social, na nova necessidade de controlar os impulsos, na nova concepção do trabalho, da família, do amor, da amizade, da morte. As explicações religiosas e sagradas do mundo entram em choque com um crescente ceticismo; não desaparecem, mas se tornam problemáticas e, para serem aceitas, requerem um suplemento de fé ou qualquer outra justificativa especial. [...]. Não é tanto questão de misturar as nossas crenças relativas a qualquer explicação científica do mundo natural [...] é talvez questão de usar as crenças tradicionais no sobrenatural para explorar a vida instintiva, material ou sublimada do homem. (2006, p. 98-99).. Apreende-se que Ceserani não desconsidera a importância histórica dos eventos dos séculos XVIII e XIX para o fantástico, mas se posiciona contrário à ideia de que houve origem causal do fantástico nessa época, pois não há, na sua concepção, uma relação de causa e consequência para surgimento do fantástico nesse período. De acordo com Ceserani:. [...]. A hipótese é que exista uma relação não causal entre a formação e a difusão da concepção do amor romântico e o nascimento de alguns dos maiores gêneros literários da primeira metade do século XIX: a narração histórica, a naturalista-regionalista e a fantástica. [...] (2006, p. 100).. À vista disso, Ceserani considera, como grande parte da fortuna crítica do fantástico, duas tendências divergentes que são frequentes no estudo do fantástico. Uma delas pretende reduzi-lo a um gênero literário, historicamente limitado a alguns.

Referências

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