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Capítulo 3 – O cotidiano fantástico de homens lupinos

II. “A terceira vez que a viúva chorou”

“A terceira vez que a viúva chorou” é o terceiro conto da coletânea de Figueiredo. Nele há a apresentação de duas personagens que estão hospitalizadas, Antônio e Cabral. Cabral havia chegado para operar uma hérnia, Antônio em virtude de um mal-estar, mas de “diagnóstico ainda impreciso”, estava há mais tempo no

hospital (FIGUEIREDO, 2009, p. 62-63).

Cabral logo percebeu que seu colega Antônio era um sujeito diferente, pois ele vibrava pelo fato de os médicos não conseguirem encontrar um diagnóstico preciso. Estranhou também o fato de que ele havia abandonado a família para viver sozinho:

Deixou para eles [referindo-se à família] uma espécie de armazém, uma casa para morar e partiu sozinho para tentar a vida. Depois sentiu-se solitário, conforme explicava aos companheiros de enfermaria, num tom de voz que forçava um pouco o desânimo.15

(FIGUEIREDO, 2009, p. 63).

Além daquilo que ouviu falar do colega de enfermaria, Cabral também “pressentia um temperamento indócil, incapaz de ficar parado” (FIGUEIREDO, 2009, p. 63). Percebe-se essa inquietação da personagem durante toda a narrativa, até mesmo quando ele encontra uma companheira, não deixava de se aproximar de outras mulheres ali mesmo no hospital. Havia uma que era, para Antônio, especial. Isso porque ela “se achava mais distante, numa esfera mais elevada, suspensa numa espécie de abstração” (FIGUEIREDO, 2009, p. 63).

Era uma viúva que vinha cuidar de um enteado paralítico. Talvez, em razão da aparente impossibilidade de haver algo entre eles, fosse a motivação de Antônio. Na ânsia de conhecer novas mulheres, Antônio escreveu um anúncio em um jornal que serviria não apenas para tentar conhecer novas garotas, como também para se livrar de outras como quando desconfiava da mulher que havia conhecido, a qual só o visitava para pedir dinheiro (FIGUEIREDO, 2009, p. 64-65).

Esse comportamento de Antônio gerou certa curiosidade em Cabral, uma vez que este preferiu ficar no hospital a voltar para casa quando lhe informaram que sua cirurgia iria demorar um pouco: “[…] Cabral respondeu que estava muito bem no hospital. Estava acostumado a dizer certas coisas só para agradar aos outros, mas dessa vez ficou satisfeito de poder falar a verdade.” (FIGUEIREDO, 2009, p. 65.)

É interessante notar que Cabral começou a se comparar a Antônio, acreditando estar aquém dele, pois não tinha o mesmo atrevimento do colega de enfermaria. Na

voz do narrador: “Cabral não se lembrava da última vez que se sentira tão pequeno, tão insignificante ao lado de outra pessoa, como se achava agora em comparação com o atrevimento de Antônio.” (FIGUEIREDO, 2009, p. 65.) Talvez estando naquele lugar, convivendo com situações de sofrimento, houvesse uma mudança na maneira como Cabral encarava a vida.

Antônio tinha um amigo fora do hospital ao qual solicitou que investigasse a mulher com quem se relacionava. Inclusive pediu ao amigo que investisse na tentativa de sair com ela a fim de provar sua fidelidade. O resultado para Antônio foi péssimo pois, além de perceber que tinha uma “namorada” infiel, havia também um “amigo” da mesma categoria.

É importante perceber que a maneira encontrada por Antônio para encontrar uma companheira, assim como para responder à ação inexplicável de seu amigo, sempre perpassava pela escrita. Ela era o contato de Antônio com o mundo. Ele escreveu o texto e o mostrou a Cabral.

Cabral não aprovou e sugeriu algumas mudanças. No fim, quem escreveu a carta foi o próprio Cabral, na tentativa de auxiliar Antônio. Cabral “sugeriu mudanças, ênfases, sequências de exageros que não deixassem tempo para respirar, palavras que fizessem tremer as pedras e acordassem os mortos” (FIGUEIREDO, 2009, p. 68). A escrita era de diferente utilidade para os personagens. Para Antônio, servia de ligação com o mundo exterior e, para Cabral, era como uma válvula de escape da realidade do hospital.

Nesse ínterim, o médico de Cabral avisou-o de que receberia alta no outro dia. Percebeu-se certa tristeza nessa situação, já que ficaria distante de seu colega Antônio.

Junto com a satisfação normal nesses casos, a notícia trouxe uma espécie de melancolia. Cabral conhecia a sensação: a decepção das histórias deixadas em suspenso, interrompidas no auge. Um prazer incompleto, mas que assim, de certo modo, podia durar mais do que uma satisfação levada até o fim. (FIGUEIREDO, 2009, p. 70).

Esse sentimento não durou muito tempo porque, depois de quatro meses, Cabral retornou ao hospital e ficou contente quando, ao chegar à enfermaria, reencontrou seu amigo Antônio: “experimentou uma surpresa, uma alegria confusa.” (FIGUEIREDO, 2009, p. 71).

Aldina, que cuidava de um ente querido da família no hospital fazia algum tempo, entrou na enfermaria e foi em direção a Antônio (FIGUEIREDO, 2009, p. 72). Cabral ficou feliz, pois fora ele mesmo quem ajudara Antônio a escrever a carta à viúva.

Apesar da surpresa, Cabral notou que Antônio não era o mesmo, já que não olhou para as pernas da enfermeira quando ela passou, é como se ele tivesse “certa desconfiança da vida” (FIGUEIREDO, 2009, p. 72). Cabral tentou reanimar o colega, pois acreditava que a história poderia ter um final feliz, o que Antônio não acreditava mais, já que o enteado havia morrido.

Então, ao saber que Antônio teria alta e que ficaria difícil para retornar ao hospital toda semana para acompanhamento do tratamento, propôs-lhe que ficasse na casa da viúva com o argumento de que ela era uma mulher de bom coração e que morava sozinha.

Cabral planejou tudo para Antônio:

- Você deixa bem claro que sabe que está pedindo muito, mas que não faria isso se ela não fosse uma mulher extremamente caridosa, uma pessoa rara, a quem todos admiram. Que ela não precisa ficar acanhada em recusar, pois você sabe que está pedindo uma coisa bastante fora do comum. E entende muito bem que há sempre um certo incômodo em ter outra pessoa na casa da gente. (FIGUEIREDO, 2009, p. 74).

Algum tempo depois, Cabral recebeu alta e, já em casa, recebeu o telefonema do amigo informando-lhe o que havia ocorrido:

̶ Olhe, deu tudo certo viu? Conforme você disse. Mas eu já não estou aqui por caridade, não. Estamos vivendo juntos. Cabral fez questão de dar os parabéns, ciente de que uma parte da conquista cabia a ele mesmo, mas também ciente de que as consequências cabiam apenas a Antônio. (FIGUEIREDO, 2009, p. 76).

Ao voltar para o hospital para tratar de um problema do coração, Cabral foi instalado em outra enfermaria. Nesta, não estava Antônio. Não havia ninguém a não ser uma santa e ao lado dela uma luz vermelha que ficava acessa a noite toda.

Foi nessa situação que talvez o maior problema se revelou a Cabral. Não era algo de natureza fisiológica, mas algo mais profundo, um sentimento perturbador: o

Através da janela aberta, Cabral via como os dias deslizavam no céu, as nuvens escorregavam em faixas de luz. E Cabral, sem mágoas, sentia que ele mesmo, seu passado, sua vida inteira enfim, iam adquirindo aquela mesma substância: o ar, a claridade, uma corrente no vazio. (FIGUEIREDO, 2009, p. 77).

Em um dos seus passeios noturnos pelo hospital, Cabral vivenciou algo extraordinário por uma porta de vaivém, ele estava diante de seu amigo Antônio e da viúva, na voz do narrador: “[...] Lá estava: a viúva sentada junto ao leito, com ares de zelo extremo. E, deitado, o Antônio. Havia tubos de plásticos, frascos suspensos. Antônio não parecia bem. Nem um pouco.” (FIGUEIREDO, 2009, p. 78).

Quem não parecia bem naquele momento era o próprio Cabral. Logo depois de ver seu amigo com a viúva, ele teve outra visão quando estava indo para seu leito:

“[...]. Viu um pijama flutuar na sombra do corredor. Listras verticais tremularam, parecia uma bandeira que o vento enrola no mastro. Reconheceu Joaquim, que arrastava seus chinelos de couro sobre as lajes de mármore avermelhado [...].” (FIGUEIREDO, 2009, p. 78).

É interessante perceber que o espaço dessa narrativa (hospital) e o período em que ocorre o fato (noturno) reforçam o insólito no texto. Para Furtado, o ambiente noturno parece ser fundamental para entendermos a ocorrência do fantástico, haja vista que o narrador não apresenta uma certeza da visão que tivera Cabral, e isso pode ter a ver com os remédios que estava tomando ou, considerando que estava no período noturno, podia-se levar em conta que a personagem estava com sono ou sonhando. Não se pode negar, também, a possibilidade de estar sofrendo com as consequências da catarata que fora diagnosticada há algum tempo.

É importante notar que, pelo contexto em que a personagem se encontrava no hospital, não saberíamos definir com precisão tal situação e, dessa forma, que o fantástico no conto se apresenta. A partir de um sentimento de vazio, que retoma memórias e visões para, talvez, preencher esse vazio da personagem, de modo que parecia haver uma relação híbrida entre realidade e ficção nesse momento do conto.

Cabral fez a cirurgia do coração e recebeu alta. Foi embora e sentia-se como aquele que havia abandonado um amigo no hospital. Todavia, meses depois, voltou, para tratar da catarata. Quando chegou à enfermaria, percebeu que o amigo não estava mais lá. Segundo Joaquim – outro paciente do hospital – , Antônio havia morrido há um mês e a viúva havia chorado mais por ele do que pelo enteado. Cabral

percebeu que, por onde a viúva passava, os homens morriam. Chegou a brincar com o amigo: “cuidado, Joaquim. Pode chegar a sua vez.” (FIGUEIREDO, 2009, p. 81).

Joaquim respondeu que a vez dele não chegaria, mas apresentou a Cabral um detalhe interessante, a saber:

̶ Imagina que aquele amigo português do Antônio, aquele que saiu com a mulher infiel dele, sabe? Lembra? De vez em quando vem aqui pegar umas cartas. Para tentar a sorte. (FIGUEIREDO, 2009, p. 81).

Fato é que os personagens nesse conto agem com certo individualismo, sem pensar nas consequências de suas ações para aqueles que estão ao seu redor. Apresenta-se certo tom de egoísmo no narrado, uma vez que tal sentimento é muito recorrente na sociedade contemporânea, de modo que não se considera o outro, apenas valoriza-se o bem-estar próprio. Prova disso, é o fato de que o “amigo” de Joaquim – aquele que investigava sua “namorada” – relaciona-se com ela sem considerar a sua amizade com Joaquim.

O próprio Cabral ao escrever cartas não se pôs no lugar do amigo, e foi até mesmo irresponsável em alguns de seus textos. Certamente, isso demonstra que não estava preocupado de verdade com a situação de Antônio, apenas gostaria de dar continuidade às histórias que ele se metia para ver até onde Antônio chegaria. De maneira irresponsável, prontificava-se sempre a “ajudar” Antônio, mas, como apenas escrevia os textos e não os assinava, não se sentia culpado pelos atos e pelas consequências.

Termina o conto instigando Joaquim a realizar os mesmos erros de Antônio apenas para ter um entretenimento na enfermaria do hospital.

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