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3.1 Gênero e sexualidade: o debate Teórico

3.1.1 Os discursos feministas de gênero

Como vamos analisar o discurso de gênero e sexualidade, é imprescindível uma revisão histórica desses discursos, tanto para o entendimento de como é formado, como para realizarmos aproximações analíticas dos diversos discursos existentes – e de sua constituição – sobre essa temática ao nosso objeto de pesquisa.

A palavra gênero carrega em sua semântica significados que estão intrinsicamente ligados ao movimento feminista e à sua história. Para entender o que tal palavra quer propor – sim, essa é (talvez como todas) mais uma palavra-política que, só de ser menciona, posiciona aquele que a profere – precisamos resgatar quando o movimento feminista dá seus primeiros passos no ocidente.

Admite-se hoje, por aquelas que se dizem feministas e voltam seu olhar ao passado, que o “sufragismo” foi a “primeira onda” do movimento e pretendia estender o direito de voto às mulheres. Tal movimento era ainda ligado aos interesses duma classe média branca que incluía, às vezes, reivindicações relativas à organização familiar, oportunidades de estudo etc.

Na referida “segunda onda” do movimento feminista, começam a surgir teorias propriamente ditas sobre a mulher: além das preocupações sociais e políticas, passa-se a teorizar e a construir uma “verdade” feminina. As militantes feministas passam a integrar a academia e a produzir um estudo da mulher com a intenção de visibilizar as mulheres que outrora foram apagadas e não reconhecidas como sujeitos da história, da sociedade, da ciência - sujeitos da verdade. Dessa forma, esses estudos queriam construir verdades femininas, distinguindo uma história, uma literatura, uma psicologia da mulher. Para isso investigavam, realizando denúncias apaixonadas, aspectos cotidianos da vida de mulheres, os

trabalhos atribuídos a elas, suas referências em literatura etc. Foram estudos decididamente não neutros que, com muito calor, estudavam os sentimentos, a sexualidade, o cotidiano: tinham um caráter extremamente político e questionador (talvez característica até hoje permanente dos estudos feministas), dando solavancos em conceitos – como a objetividade e a neutralidade – tão convencionalmente atribuídos à ciência e à academia.

São consideradas diferentes ferramentas analíticas para a realização dos diversos trabalhos feministas dessa época: desde aqueles que buscam as teorizações de Marx,àqueles que se baseiam nos pressupostos da psicanálise. Outras tentam buscar uma teoria própria – feminina - e há ainda outras que tentam explicar as diferenças entre homens e mulheres pelas suas características biológicas. Essas últimas, revestidas duma linguagem científica, criam argumentos que justificam as desigualdades sociais através das ditas distinções biológicas e sexuais que os homens e as mulheres possuem entre si.

Assim cria-se uma nova palavra – como são interessantes as palavras! – para imbuir, ao debate das desigualdades entre homens e mulheres, o seu caráter primordialmente social.Gênero em contraposição a Sexo. Weeks (2000, p. 38) nos mostra que

(...) embora o corpo biológico seja o local da sexualidade, estabelecendo os limites daquilo que é sexualmente possível, a sexualidade é mais do que simplesmente o corpo. De fato, juntamente com Carole Vance (1984), estou sugerindo que o órgão mais importante nos humanos é aquele que está entre as orelhas. A sexualidade tem tanto a ver com nossas crenças, ideologias e imaginações quanto com nosso corpo físico.

Valoriza-se o que é dito sobre as diferenças e não as diferenças em si – se é que elas existem: observa-se o que foi socialmente construído sobre os sexos, localizando-os histórico-socialmente. Recoloca-se o debate da diferença no campo social, fazendo com que aqueles que falem sobre, localizem-se num momento histórico, numa determinada sociedade, num determinado grupo étnico, religioso, racial, de classe etc. Tira-se, assim, o caráter essencialista sobre os gêneros e os coloca numa categoria de processo, de construção, de pluralidade.

Sabe-se que é nos estudos pós-estruturalistas, pós-modernos e pós-coloniais que o feminismo vai encontrar grandes aliados teóricos, científicos e políticos para articular o gênero como uma categoria analítica. Sob esses referentes vão ser

colocadas outras questões: que o gênero faz parte do sujeito; constitui as instituições e práticas sociais ao mesmo tempo que elas constituem os gêneros e “fabricam” os sujeitos. Para Louro (2012),

Busca-se compreender que a justiça, a igreja, as práticas educativas ou de governo, a política etc. são atravessadas pelos gêneros: essas instâncias, práticas ou espaços sociais são “generificados” – produzem-se, ou “engendram-se”, a partir das relações de gênero (mas não apenas a partir dessas relações, e sim, também, das relações de classe, étnicas etc.)

Assim vão sendo constituídas as identidades de gênero, sempre plurais, múltiplas continuamente se construindo e transformando-se.

Outro conceito-chave a se considerar sobre os movimentos feministas da atualidade é a superação das dicotomias e oposições binárias: dum lado a mulher oprimida por um poder patriarcal, doutro o homem, perverso detentor do poder. Scott (1995) em seu célebre artigo “Gênero: uma categoria útil para análise histórica” vai nos mostrar que é preciso rejeitar as dicotomias e os binarismos, sugerindo uma historicização e uma desconstrução autêntica dos termos da diferença sexual, propondo, através duma teorização das práticas duma tentativa de reverter ou deslocar funcionamentos, que o gênero seja tratado como uma categoria de análise.

Scott, em seu artigo, vai, ainda, propor uma definição de gênero em duas partes interligadas, baseadas em duas proposições: gênero como um elemento constitutivo de relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos e como uma forma primeira de significar as relações de poder.

É importante trazer também as reflexões de Rago (2012) sobre a epistemologia feminista e qual o debate sobre essa temática no campo dos estudos feministas. Diz a autora que para além de ter produzido uma forte crítica ao modo dominante de produção do conhecimento científico propôs um modo alterativo de produção de conhecimento. Observa que

[…]se consideramos que as mulheres trazem uma experiência histórica e cultural diferenciada da masculina, ao menos até o presente, uma experiência que várias já classificaram como das margens, da construção miúda, da gestão do detalhe, que se expressa na busca de uma nova linguagem, ou na produção de um

contradiscurso, é inegável que uma profunda mutação vem-se

processando também na produção do conhecimento científico.[…] (RAGO, 2012, p. 23).

O que está posto pela autora é que nesse caminho sãoconstruídas várias epistemologias feministas que fazem parte de uma ampla rede discursiva, no campo do conhecimento, identificada como crítica cultural, teórica e epistemológica, das quais fazem parte Psicanalise, Teoria Crítica Marxista, Hermenêutica, Desconstrutivismo e Pós-Modernismo. Nessas perspectivas, o foco dominante, em suas singularidades, é uma crítica a racionalidades que não dão conta de pensar a diferença. Acrescenta que esse é um caminho potencialmente emancipador (RAGO, 2013, p. 24).

É dessa rede discursiva que se produzem estudos da mulher sob um enfoque que considera a mulher como uma identidade “construída social e culturalmente no jogo das relações sociais e sexuais, pelas práticas disciplinadoras e pelos discursos/saberes instituintes” (RAGO, 2012, p. 29).Segundo Rago (2012), foi nessa rede discursiva e de forma mais concreta na visão de identidade que a categoria gênero encontrou um terreno favorável para ser abrigada. Essa categoria não só desnaturaliza as identidades sexuais como postula a dimensão relacional do movimento constitutivo das diferenças sexuais. Nessa direção as questões da sexualidade devem ser tratadas como um efeito de discursos.