• Nenhum resultado encontrado

Os efeitos da institucionalização na interiorização dos valores e, consequentemente, na

I. Diagnóstico social

3. A importância da aprendizagem de valores

3.3. Os efeitos da institucionalização na interiorização dos valores e, consequentemente, na

Diversos teóricos estudaram o desenvolvimento cognitivo humano. Destes, destacamos Piaget (1983), que defende a existência de períodos críticos nesse processo de desenvolvimento, sendo que particularmente na infância determinados acontecimentos importantes terão um impacto significativamente superior ao impacto que teriam caso ocorressem em períodos anteriores ou posteriores.

O autor identifica um conjunto de quatro estádios que funcionam segundo etapas pré- determinadas e inter-relacionadas (ver tabela 4).

Neste sentido, cada estádio tem características próprias e implica necessidades específicas que devem ser geridas com êxito de modo a tornarem possível o acesso ao nível seguinte do desenvolvimento. Para além disso, a evolução dos estádios depende, quer das experiências da vida, quer do desenvolvimento do sistema nervoso central. Ora, nesse sentido, a exposição a ambientes disfuncionais contribui para o atraso ou falha do desenvolvimento dos estádios.

27

ESTÁDIO IDADE CARACTERÍSTICAS

Sensório- motor

0 – 2 anos Está dividido em três substádios: os reflexos, isto é, as primeiras emoções e tendências instintivas; os hábitos motores, ou seja, os primeiros sentimentos e perceções e; a inteligência sensório-motora, as primeiras regulações afetivas e fixações exteriores da afetividade. Este estágio é caracterizado como pré-verbal, constituído pela organização reflexiva e pela inteligência prática, em que a criança se baseia em esquemas motores para resolver os seus problemas, desenvolvendo, portanto, o processo denominado de “simbolização”.

Pensamento pré-

operatório

2 – 6 anos Diz respeito aos sentimentos interindividuais espontâneos, à inteligência intuitiva e às relações sociais de submissão ao adulto. Nesta etapa ocorre a explosão linguística e a utilização de símbolos, onde os esquemas de ação são interiorizados (esquemas representativos ou simbólicos). Regista-se, ainda, a ausência de esquemas conceituais.

Operações concretas

7 a 11-12 anos

Refere-se ao surgimento dos processos de pensamento lógico. Embora ainda sejam limitados, permitem já ordenar e agrupar coisas em classes, com base em características comuns. Há já a o a capacidade de conservação e reversibilidade através da observação real. O pensamento operatório é denominado concreto, pois a criança ainda não consegue pensar abstratamente, tendo como base proposições e enunciados Operações formais a partir dos 11-12 anos em diante

que se refere às operações intelectuais abstratas, à formação da personalidade e à inserção intelectual e afetiva na sociedade. Nesta etapa, a criança torna-se capaz de raciocinar logicamente mesmo que o conteúdo do seu raciocínio seja falso, surgindo, deste modo, a determinação da realidade tendo como base o caráter hipotético- dedutivo, onde a criança obtém a capacidade de pensar abstratamente e compreender o conceito de probabilidade.

Tabela 4. Estádios de desenvolvimento segundo Piaget

Fonte: Piaget, 1983.

Como oportunamente referimos, uma parte considerável das crianças institucionalizadas provem de famílias vulneráveis, nas quais, com frequência, se regista a ausência das figurais parentais (fruto de práticas disfuncionais como o consumos de substâncias psicoativas, a criminalidade, a prostituição, entre outras), a pobreza (fruto das reduzidas competências escolares e profissionais e, consequentemente, de inserções precárias no mercado e trabalho ou situações de desemprego de muito longa duração), a inserção em contextos residenciais de “má reputação” com evidentes reflexos na construção de uma imagem positiva de si, a ausência de competências parentais básicas, etc. Estas condições de vida refletem-se no habitus que, segundo Bourdieu, “ (…) produz as práticas, individuais e

coletivas, portanto, da história, conforme aos esquemas engendrados pela história; ele garante a presença ativa das experiências passadas que, depositadas em cada organismo sob a forma de esquemas de percepção, de pensamento e de ação, tendem, de forma mais segura que todas as regras formais e que todas as normas explícitas, a garantir a conformidade das práticas e a sua constância ao longo do tempo”. (2009, p. 9).

28 O habitus é um produto da aprendizagem uma vez que surge das interações sociais do meio e molda as atitudes e os pensamentos, assim como também não é consciente, no entanto segue as regras de convivência em determinado campo social, ou seja, é a matriz cultural internalizada. Segundo Marques & Queiroz (2014), o habitus resulta da interiorização, a partir da interação com outros do meio social no qual em que o indivíduo foi socializado, de um conjunto de elementos como rituais, posições corporais, vocábulos usados, entre outros, que dirigem os sentimentos, as condutas, as ações e os pensamentos. Assim sendo, o habitus é um produto de uma determinada trajetória social preservada ao longo de várias gerações.

Embora com características duráveis, o habitus não é, na perspetiva de Bourdieu (2009), imutável. Ou seja, há uma margem de adaptação possível, visível, desde logo, no facto de que as disposições interiorizadas na infância se podem ir modificando ao longo da vida, não tendo, por isso, um carácter obrigatório. O habitus “ (…) nunca é uma réplica de

uma única estrutura social, resulta da influência dos diversos ambientes sucessivamente encontrados na vida de uma pessoa, não é necessariamente coerente e unificado mas revela graus variados de interação e tensão, não está necessariamente de acordo com o mundo social em que evolui, não é um mecanismo autossuficiente, operando isoladamente dos mundos sociais” (Marques & Queiroz, 2014, p. 32)

Posto isto, é importante refletir sobre as condições de produção do habitus em contexto de institucionalização. “Como transformar o habitus de jovens que, sendo

originários de meios socialmente desfavorecidos, partilham disposições, hábitos e motivações pouco favoráveis à aquisição de aprendizagens relevantes para uma transição qualificante para a vida adulta?” (Marques e Queiroz, 2014, p. 9).

Se o habitus é um conjunto de disposições que marcam a pertença do indivíduo a um determinado meio social, as crianças e jovens institucionalizados perdem essa marca. Isto porque ao serem retirados à família e acolhidos numa instituição, os seus hábitos, valores, rotinas, normas, etc., são totalmente modificados. Aliás, um dos objetivos da institucionalização é, precisamente, reestruturar o habitus dessas crianças e jovens de modo a que estes encarem uma nova realidade distinta daquela em que foram socializados, surgindo, portanto, o processo de ressocialização. Esta, por sua vez, assemelha-se à socialização primária uma vez que se deve processar num quadro de forte identificação afetiva (Berger & Luckmann, 1999). O mundo onde existe ressocialização deve voltar a ser o mundo, o único

existente para que não exista possibilidade de escolha. No entanto, contrariamente ao que

acontece na socialização primária, o processo de ressocialização não se dá num indivíduo “vazio”, sem conhecimentos e, por isso, é necessário destruir tudo o que foi aprendido e

29 vivido previamente. Neste sentido, segundo os autores, para que o processo de ressocialização se realize é necessário haver quatro condições: 1ª) a existência de uma afetiva estrutura de

plausibilidade, isto é, os novos “outros significativos” serão os novos guias para a nova realidade, servindo de mediadores para com o novo mundo do individuo, sendo que nesse novo mundo o indivíduoencontra o seu foco cognitivo e afetivo na estrutura de plausibilidade em questão; 2ª) “a estrutura de plausibilidade deve tornar-se o único mundo do indivíduo,

tomando o lugar de todos os outros mundo, em especial o mundo em que o indivíduo «habitava» antes da sua alternância” (Berger & Luckmann, 1999, p. 165) - mas para que isso

aconteça é preciso que haja um corte físico com a realidade em que o indivíduo se via antes, ou seja, é preciso que haja uma separação com os outros mundos pois não é possível existir uma coerência entre o mundo desviante e o mundo que está a ser ressocializado; 3ª) a

ressocialização implica a reorganização completa do aparelho de conversação, cujo

principal objetivo é transformar a realidade subjetiva do indivíduo, mudando a sua conversação e que essa seja apenas com os novos significativos; 4ª) a existência de um

aparelho legitimador para a sequência completa da transformação, o que pressupõe um abandono de todas as outras realidades alternativas pois a antiga realidade, assim como os antigos “outros significativos”, devem ser reinterpretados no contexto do aparelho legitimador da nova realidade, ou seja, deve existir uma nova interpretação da biografia passada.

Porém, para que isto tudo aconteça é necessário que o indivíduotenha tido condições para desenvolver a vontade da mudança,pois a ressocialização é mudar de vida e consiste na transformação da realidade subjetiva: “A ressocialização é um corte do nó górdio do problema da coerência, com a renúncia à busca da coerência e reconstrução da realidade nova.” (Berger & Luckmann, 1999, pág. 168).

Portanto, é importante trabalhar a (re)socialização, particularmente no que concernea incorporação das regras e das normas como constituintes do habitus orientador das práticas. A aprendizagem de valores é, sem dúvida, um de muitos elementos importantes no processo de desenvolvimento de crianças e jovens, sendo que este processo adquire especial importância nas crianças e jovens institucionalizados uma vez que estas, geralmente, provêm de contextos familiares onde a socialização primária se revelou menos favorável neste domínio.

30