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2.2 Legitimidade, credibilidade e velocidade da informação: mapeando desafios

2.2.1 Os esforços do Jornalismo rumo à legitimação

Soares (2009, p. 221) emprega o termo legitimidade “para indicar questões de

representatividade, mérito e identificação, as quais só ganham sentido pleno e força no contexto das democracias de massa, ao longo do século XX”. Pensar a legitimidade do Jornalismo nos dias atuais é, portanto, refletir sobre sua capacidade de ainda representar valores e funções que, historicamente, têm sido atribuídos a essa atividade na sociedade. Investigar o discurso da autolegitimação jornalística é observar de que modo essa instituição se esforça para demonstrar

ao público sua relevância. Afinal, “não basta produzir informação para que ela seja aceita num mercado caracterizado por uma crescente concorrência” (MARQUES; MIOLA; SIEBRA,

2014, p. 147).

Autores como Traquina (2004) mostram que a necessidade do Jornalismo de afirmar sua legitimidade como agente social essencial para a cidadania e o bem-estar coletivo não é algo novo. Nesse sentido, todo um discurso e uma ideologia próprios têm sido construídos desde seus primórdios, sobretudo a partir do século XIX, com a transformação do Jornalismo em atividade comercial e informativa, ancorada na notícia baseada em fatos, e não mais na opinião e na propaganda política.

Mesmo antes disso, no contexto da revolução burguesa do século XVIII, ainda fortemente marcado pelo tom opinativo, o Jornalismo se propôs a funcionar como fórum de discussão pública utilizado para questionar e constranger o poder. Logo, assumiu a posição de

“artífice da publicidade crítica, que suplantou a política do segredo, característica da monarquia

absolutista, e possibilitou a racionalização pública, geradora da sociedade moderna” (ROCHA, 2010, p. 124)

Traquina (2004, p. 34), no entanto, nos lembra que é a partir 1) da expansão da imprensa, 2) da industrialização e dos avanços tecnológicos, 3) da evolução da profissão jornalística remunerada, 4) da evolução do sistema político no reconhecimento da liberdade rumo à democracia, dentre outros fatores despontados no século XIX, que se disseminaram os valores que ainda hoje são identificados com o Jornalismo, tais como: a verdade, a independência, a liberdade, a objetividade, a noção de serviço ao público14. A notícia vendida como imparcial, objetiva e independente, desvinculada de interesses político-econômicos, e não mais a opinião atrelada a grupos políticos, passava a ser o novo capital do Jornalismo.

Desenvolvia-se ali, então, um novo discurso legitimador da atividade midiática, não mais identificada como porta-voz parcial de grupos políticos específicos, mas, em tese, comprometida com os valores democráticos, guardiã do interesse público. O autor explica o que seria o primeiro discurso de autolegitimação do novo Jornalismo a partir da segunda metade do século XIX:

A relação entre democracia e Jornalismo é fundamentalmente uma relação simbiótica em que a liberdade se encontra como estrela brilhante de toda uma constelação teórica que fornece ao novo Jornalismo emergente uma legitimidade para a atividade/negócio em expansão e uma identidade para seus profissionais. Assim, o campo jornalístico

moderno (Bourdieu), o ‘econômico’ e o ‘intelectual’ (onde as notícias são vistas como

informação, e não mais como propaganda partidária), constitui-se nas sociedades democráticas numa função onde o Jornalismo partilha como herança toda uma história contra a censura em prol da liberdade (TRAQUINA, 2004, p. 42).

É a partir de valores como liberdade, independência política e defesa dos preceitos democráticos, portanto, que o Jornalismo passa a buscar legitimidade perante o público, a partir de sua caracterização como negócio. Marques, Miola e Siebra (2014) acrescentam que outro ponto crucial no processo de legitimação passa pelo perfil do profissional responsável pela elaboração de informações, do qual também começou a ser exigida uma série de características e valores no sentido de imprimir maior legitimidade à atividade. A criação de cursos universitários na área de Jornalismo e a obrigatoriedade do diploma, que resiste em alguns países, podem ser evidência disso. Ademais:

14 Traquina (2004, p. 89) é ainda mais preciso. Segundo o autor, é com o estabelecimento do lead e da pirâmide

invertida, no começo do século XX, que se identifica a crescente afirmação da autoridade profissional do jornalista,

tomado pela obrigação de “mediar e simplificar, cristalizar e identificar os elementos políticos no acontecimento noticioso”.

Os valores e princípios do trabalho concernente à produção noticiosa (isenção, honestidade, verdade, atualização, objetividade e outros) também se estruturaram a fim de distinguir o produto oferecido e de funcionar enquanto fonte de prestígio aos que ocupam posições na área. A independência do campo do Jornalismo visa, no final das contas, enfatizar o compromisso de seus integrantes com o interesse público, garantindo um espaço de exclusividade para determinadas abordagens sobre temas de relevância social (MARQUES; MIOLA; SIEBRA, 2014, p. 148-149).

No Brasil, um fato específico é apontado por Albuquerque (2008) como tendo sido um marco do processo de transformação e profissionalização do Jornalismo, no sentido de lhe

conferir (ou reforçar) legitimidade perante o público e o mercado: a “mítica” reforma editorial

do Diário Carioca, na década de 1950, ampliada posteriormente para outros jornais do País.

Em tom crítico, o autor relata e questiona o que chama de “mito fundador” do Jornalismo

brasileiro, a partir da introdução de técnicas como a pirâmide invertida, o lead, a narrativa em terceira pessoa distanciada, dentre outras práticas que objetivavam pôr fim a um Jornalismo

julgado pelos “reformadores” como pouco profissional, amador, panfletário, adepto do “nariz de cera”15. Nesse sentido, Albuquerque acaba por lançar uma crítica ao modelo idealizado de bom Jornalismo, a uma espécie de mito do Jornalismo “puro”, identificado com a objetividade e a imparcialidade.

Descrito esse cenário, pelo menos uma questão imediata se interpõe: a que serve o discurso de autolegitimação? Gomes (2009) explica que, ao falar sobre si e, discursivamente, arvorar-se de determinados valores e funções, o Jornalismo busca, antes de tudo, construir e reforçar sua ideologia e sua identidade como campo social, oferecendo explicações sobre suas razões de ser, os porquês de suas decisões.

Porém, para além disso, o autor sustenta que tal discurso pode ser uma forma de autodefesa, para convencer não só o público leitor/consumidor, mas também as demais instituições sociais, de seu papel “fundamental” para o sistema democrático e para o exercício pleno da cidadania. Assim, o discurso jornalístico:

Comporta [...] uma função direcionada à sociedade em geral, cujo escopo é produzir nela as mesmas convicções internas do campo social que o origina. Nesse caso, não para criar identidade de grupo, mas para produzir legitimidade, ou seja, para produzir convicção social acerca da importância e da necessidade da corporação para o bem- estar da própria sociedade. [...] E só assim deixa de ser apenas um discurso voltado

15Jargão jornalístico que define a prática de “atrasar” a informação principal da notícia, iniciando o texto com

para produzir identidade do campo para se tornar, além disso, discurso de autolegitimação social” (GOMES, 2009, p. 68).

Feitas essas considerações, cabe refletirmos sobre a evolução do discurso de autolegitimação do Jornalismo, hoje situado em um contexto socioeconômico e tecnológico bastante diferente daquele pós-revolução burguesa do século XIX. Gomes (2009) afirma que o Jornalismo atual é acometido por uma espécie de inércia discursiva, como se tivesse congelado no tempo no que diz respeito ao discurso de autolegitimação. Bandeiras como a do elogio à opinião pública, da afirmação do Jornalismo como único mediador confiável entre a esfera civil e o Estado, da função de adversário da esfera governamental, por exemplo, permaneceriam intactamente levantadas, apesar das mudanças no cenário midiático.

Em um contexto de descentralização da produção de notícias e opiniões, em que é crescente a facilitação do acesso às fontes, em que o poder político busca aproximar-se dos cidadãos através da Internet, tentando dispensar e anular a presença de intermediários – conforme discutido no tópico anterior –, o Jornalismo estaria diante do desafio de, mais uma vez, se reafirmar enquanto porta-voz legítimo de informações do interesse público, buscando construir, desse modo, um discurso que justifique sua razão de ser e sua competência para informar com qualidade (CHARAUDEAU, 2007). Nesse sentido, o fator credibilidade surge como possível filão desse discurso.