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Os estudos arqueológicos e etnográficos 89

Capítulo II – Flávio Gonçalves a vida e a obra 61

5. O historiador da Arte e a sua terra natal 88

5.1. Os estudos arqueológicos e etnográficos 89

A difusão dos estudos da Arqueologia e da Etnografia, no final do século XIX, que tinham produzido as últimas escavações nas estações arqueológicas da região, ainda faziam sentir o seu eco, no final da primeira metade do século XX, na Póvoa de Varzim.

Tanto as polémicas que então se tinham gerado e saído na imprensa local, como as memórias que tinham ficado de Rocha Peixoto, poveiro também, o jovem investigador conheceu-as e desejou aprofundá-las.

Na realidade Flávio Gonçalves leu e consultou essas velhas notícias porque delas faz relatos nos seus primeiros escritos. Visitava e explorava os locais assinalados pelos achados arqueológicos da Póvoa de Varzim, estabelecia com as populações diálogo, investigando as suas memórias, os usos e os costumes.

274 GONÇALVES, Flávio – «Recordações a propósito dos setenta e cinco anos de “O Comércio da Póvoa de

Varzim”». Póvoa de Varzim. Boletim Cultural “Póvoa de Varzim”. Póvoa de Varzim., ano 17, n.º 1 (1978) p. 25.

5.1.1. As antiguidades pré-históricas e romanas

Com o título O Homem pré-histórico no concelho da Póvoa de Varzim275 Flávio Gonçalves inaugura, em 1947, a publicação do resultado dos seus estudos e das suas investigações arqueológicas.

Prosseguindo as suas pesquisas na área das Antiguidades pré-históricas e romanas

do Museu Municipal da Póvoa de Varzim276, elabora um inventário do acervo arqueológico

existente no Museu Municipal o qual enriquece com as suas iniciáticas anotações. Desta lista refere a descoberta de duas peças de granito, ambas com epitáfio de difícil leitura, encontradas numa localidade limítrofe.

No Lugar da Vinha na freguesia de Beiriz na Póvoa de Varzim, em julho de 1912277 a imprensa local dava a conhecer a descoberta de duas pedras romanas de granito com inscrições. O achado, do início do século XX, tinha causado grande polémica e acesos artigos nos periódicos de então. O material foi entregue ao padre Joaquim Martins Torres278 e acabou por incorporar-se no espólio do Museu onde se conservou praticamente ignoto. O arqueólogo R. de Serpa Pinto279 enviou para a imprensa, em 1931, a sua interpretação sobre a leitura que os monumentos pétreos já musealizados e esquecidos registavam.

As notícias iniciadas por Flávio Gonçalves, ainda jovem estudante em 1947, falavam dessa última leitura dos velhos jornais, tendo investigado profundamente o local da descoberta e contactado com alguns habitantes. O historiador acrescenta que lhe foram

275 GONÇALVES, Flávio – «O Homem pré-histórico no concelho da Póvoa de Varzim». O Comércio da Póvoa de Varzim. Póvoa de Varzim, ano 44, n.º 14 (12 abril 1947), p. 4; ano 44, n.º 15 (19 abril 1947), p. 4. 276 Flávio Gonçalves termina este artigo fazendo uma lista dos vestígios dedicados a divindades pagãs em

Portugal e sugere «Acrescente-se à lista o monumento do Museu Etnográfico da Póvoa de Varzim, nunca mencionado até agora, inédito portanto, que testemunha a existência do culto a um deus latino, numa região séculos depois habitada por um povo sempre por ele protegido – a raça lusíada, “a quem Neptuno e Marte obedeceram», chamando a esta entrada Os Lusíadas de Luís de Camões, I, 3. GONÇALVES, Flávio – «Antiguidades pré-históricas e romanas do Museu Municipal da Póvoa de Varzim». O Comércio da Póvoa

de Varzim. Póvoa de Varzim, ano 44 n.º 36 (13 setembro 1947), p. 6; Idem, ano 44, n.º 38 (27 setembro

1947), p. 4; Ano 44, n.º 39 (4 outubro 1947), p. 4. [No boletim há erro grosseiro estes dados foram vistos na própria publicação].

277 A notícia saiu no periódico local A Propaganda assinado por Cândido Landolt em 13 de outubro de 1912.

LANDOLT, Cândido – «Achado arqueológico». A Propaganda. Para a História da Póvoa. Póvoa de Varzim: Ano 10, n.º 39 (13 outubro 1912), p. 1.

278 Artigo no periódico Estrela Povoense denotando grande polémica sobre o assunto. TORRES, Joaquim

Martins. In Estrela Povoense. Póvoa de Varzim: Ano XXXV, 2.ª série n.º 2: 116 (7 fevereiro 1915), s/p.

279 R. de Serpa Pinto assinou o artigo, datando-o de, «Pôrto, 7 de Julho de 1931». Explica este arqueólogo

que a interpretação é difícil e termina-o: «O facto de as duas lápides votivas terem sido presumivelmente dedicadas por escravos libertos aumenta o interesse da descoberta». “Duas lápides romanas de Beiriz”. In A

narrados outros achados arqueológicos no mesmo ponto, para além das duas pedras votivas, desconhecendo-se o seu paradeiro. Pelo relato feito, Flávio Gonçalves considerou tratarem-se de sarcófagos antropomórficos facto que o levou a concluir que o sítio seria um local considerado sagrado280.

Ele próprio confessa que só com muita persistência, tempo e atenção pode refutar as primeiras leituras e adiantar a sua solução. Supondo ter encontrado o significado das inscrições que os dois monumentos contêm, em artigo no Boletim Cultural de 1958281 descreve todo o esforço que a interpretação lhe suscitou.

Procedeu ao estudo do aspeto morfológico, recolheu as medidas extremas colocando as suas hipóteses para a leitura das inscrições. Descreve o primeiro documento pétreo como «elegante, pouco danificado, o pequeno monumento tem o fuste prismático». Apoiado em Leite de Vasconcelos ou Vergílio Correia e em autores de “Epigrafia Latina”, compara com outros vestígios, faz os desdobramentos mais prováveis, e avança:

«Márcio, liberto de Caio, deu (e) dedicou (esta ara) a Júpiter Tonante, por voto de seu amo».

O estudioso sentiu maior dificuldade em perceber o que o segundo vestígio romano dizia. Tem o formato de prisma de forma quadrilátera sobre uma base retangular assente num pedaço de granito em bruto. Como a inscrição incisa é votiva, com base de sustentação Flávio Gonçalves sugeriu que o monumento terá servido para suportar qualquer imagem ou objeto. Propõe a seguinte leitura dos carateres:

«O liberto Diocleciano Cornélio cumpriu com muita satisfação a sua promessa (feita a …)».

5.1.2. As marcas poveiras na capela de N.ª S.ª da Bonança em Fão

O primeiro artigo de Flávio Gonçalves, Recordações poveiras na capela de N.ª S.ª

da Bonança em Fão282, publicado em 1947, insere-se na categoria de estudos etnográficos.

É um trabalho sobre as siglas, marcas que os pescadores poveiros deixaram registadas na

280 GONÇALVES, Flávio – «Inscrições romanas de Beiriz». Revista de Guimarães. Guimarães, ano 59, n.º 1-

2 (jan-jun 1949) pp. 223-235.

281 GONÇALVES, Flávio – «Duas inscrições romanas do “Museu Municipal”». Boletim Cultural Póvoa de Varzim. Ano 1, n.º 2 (1958) pp. 225-235.

282 GONÇALVES, Flávio – «Recordações poveiras na capela de N.ª S.ª da Bonança, em Fão». O Cávado.

ermida Nossa Senhora da Bonança de Fão, mas constitui fundamentalmente um registo historiográfico do monumento.

O trabalho começa com o provérbio “Se queres aprender a rezar, entra no mar”, para explicar a fé do pescador poveiro. Desenvolve seguidamente toda a contextualização do monumento.

Construída junto ao mar pelos fins do século XVIII chama a atenção para as marcas deixadas pelos vizinhos pescadores no monumento, as «seculares siglas». Convida o leitor a entrar e observar e profusão dos “ex-votos” que os dedicados poveiros ofereciam à devoção, em cera ou em madeira. A «humilde capelinha» é uma ermida de nave simples e «saindo do oratório observamos ao lado esquerdo uma arruinada construção – antigo facho mandado edificar por D. João III, que mais tarde serviu de cadeia», acrescenta e pondo como hipótese a data das ruínas «ainda do século XVI, pois nalgumas encontrei siglas dos canteiros quinhentistas».

Trata-se na realidade um pequeno artigo dando a notícia de uma tradição dos pescadores que da Póvoa de Varzim se deslocam um pouco a norte, a Fão, cumprindo na capela o pagamento das graças obtidas. Nos dias de festa os poveiros iam com os seus farnéis ao local cantando modas que entoavam e o jovem etnólogo lembrava algumas das quadras que as compõem. Mas toda a explicação arquitetónica do lugar, que elabora ao pormenor, sugere o historiador da Arte que virá a ser.