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Os etnofaulismos, a cultura popular e a tradução

Capítulo 2 — Os etnofaulismos nos dicionários e na fala

2.3 Os etnofaulismos, a cultura popular e a tradução

Os etnofaulismos são frequentes na cultura popular — assim como são comuns nas práticas sociais cotidianas — o que evidencia uma banalização desse fenômeno, ao mesmo tempo em que reitera a necessidade de converter conflitos de ordem étnica em manifestação cultural, de modo que os membros da comunidade que recebem tal produção artística se reconheçam ou reconheçam atitudes de outros membros de sua comunidade sócio-cultural- linguística. Um exemplo disso são as muitas piadas de português que se contam, no Brasil, ou aquelas que se iniciam com algo como: “estavam num avião, um judeu, um libanês e um turco”. Pode-se ainda mencionar, a já referida canção de Luis Gonzaga, Paraíba.

Encontramos, assim, esses retratos conflituosos, nos adágios, na música, nas pinturas, na televisão e no cinema. Na língua inglesa, é possível encontrar repertórios inteiros de injúrias étnicas, como a List of ethnic slurs, da Wikipedia, e um site dedicado exclusivamente a 66

esses itens lexicais, o Racial Slurs Database, em cuja descrição informa tratar-se de um site 67

criado para ser “engraçado e/ou informativo”. 68

Ademais, julgamos importante aludir ainda a um fato específico que ilustra bem essa questão: no 14º episódio da 6ª temporada da série norte-americana South Park, “The Death 69

Camp of Tolerance”, os personagens são levados ao chamado “Museu da Intolerância”, em que os visitantes veem atrações que tratam de injúrias étnicas. Uma dessas atrações compreende bonecos de cera que representam estereótipos ligados a determinados grupos étnicos. Um dos personagens se aproxima do que parece ser um boneco de cera, devidamente colocado sob um holofote de luz, que aparenta estar adormentado (Figura 3) e deduz que se trata do estereótipo do “mexicano sonolento” (“sleepy mexican”). Em seguida, revela-se se tratar, na verdade, não de um boneco de cera, mas de um funcionário do museu (supostamente, um mexicano) que havia se adormentado em serviço. O canal VH1, no Brasil, trocou “mexicano”

Disponível em: <http://en.wikipedia.org/wiki/List_of_ethnic_slurs>. Acesso em 30 mar. 2015.

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Disponível em: <http://www.rsdb.org>. Acesso em 30 mar. 2015.

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“It's supposed to be funny and/or informational.”

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A série é mundialmente conhecida por retratar situações e pessoas de maneira preconceituosa e pela

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linguagem chula utilizada. Os alvos dos estereótipos são, em geral, judeus, canadenses e gays, mas também são retratados deficientes físicos e mentais de maneira pejorativa. No Brasil, é transmitida pelo canal pago VH1.

para “baiano”, na dublagem feita para a transmissão do episódio. Essa domesticação revela 70

que a identificação de um estereótipo atribuído a um grupo pode não corresponder quando esse mesmo estereótipo atribuído a esse mesmo grupo é inserido em outra cultura. Para um telespectador norte-americano, é fácil identificar tal relação, visto que a migração mexicana no país é intensa. No entanto, essa alusão poderia causar estranhamento num brasileiro, ao passo que a adaptação para “baiano” poderia proporcionar-lhe, de maneira mais efetiva, a ideia de um indivíduo preguiçoso.

Para além dessas considerações, poderíamos ainda tratar da questão da tradução dos etnofaulismos, pois, como se pode depreender do exemplo acima, são questões que se revelam interessantes, na medida em que apontam, diretamente, para diferenças culturais que refletem em escolhas lexicais.

Filmer (2011) trata dessa questão a partir da observação do filme Gran Torino (2008) e das legendas e dublagens que foram utilizadas na Itália. O filme retrata uma comunidade coreana que vive nos Estados Unidos da América, num bairro degradado, com alta incidência de criminalidade. Dentre outras conclusões, a autora observou uma predileção na dublagem italiana por alusões relacionadas à homossexualidade, as quais, originalmente, não existiam, como se pode observar quando uma personagem se refere a outra como “fucking rice niggers”. “Rice niggers”, segundo o Urban Dictionary, é uma expressão pejorativa que diz respeito aos 71

No âmbito dos Estudos da Tradução, a domesticação diz respeito a um processo segundo o qual o texto

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traduzido distancia-se de tal forma da língua de partida que acaba ganhando valores que são próprios da cultura para a qual se está traduzindo. No caso em questão, não traduziu-se “mexican” por “mexicano”, mas procurou-se um elemento próprio da cultura brasileira que corresponda ao estereótipo que se está evidenciando na cultura de partida.

Disponível em: <http://www.urbandictionary.com/define.php?term=rice%20nigger>. Acesso em: 14 jul.

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2014.

"53 Figura 3: Cena do seriado South Park que apresenta os personagens próximo ao que acreditavam ser um boneco de cera

chineses ou outros povos asiáticos. A tradução apresentada para o público italiano é “froci

mangiariso del cazzo” (ou “veados comedores de arroz do caralho”). Considerando que “nigger” é uma injúria étnica que se relaciona aos negros, a tradução mostra uma alternância de campo semântico que se dá, provavelmente, por razões da intensidade que ambas as injúrias comportam entre as culturas que as cunham, causando maior identificação do espectador quando se domestica a expressão. Parte-se assim de um item lexical que corresponde a um etnofaulismo numa língua para outro item lexical, também etnofaulismo, na outra, prescindindo-se de seu equivalente mais óbvio, em favor de uma maior identificação cultural na língua de chegada, por meio de um etnofaulismo que lhe seja mais característico.