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Sistematização e categorias de marcas de uso

Capítulo 3 — Palavras tabuizadas nos dicionários e as marcas de uso

3.4 Sistematização e categorias de marcas de uso

Hausmann (1977) apresenta uma lista em que categoriza os tipos de marcas de uso com as quais podemos nos deparar num dicionário:

diacrônicas (por exemplo, antiquado, envelhecido, neologismo); diatópicas (aplicadas a acepções restritas a certas regiões ou países); diaintegrativas (usadas para assinalar estrangeirismos); diamediais (diferenciam entre as linguagens oral e escrita); diastráticas (por exemplo, chulo, familiar, coloquial, elevado); diafásicas (diferenciam entre as linguagens formal e informal); diatextuais (assinalam que o lexema — ou acepção — é restrito a determinado gênero textual; por exemplo, poético, literário, jornalístico); diatécnicas (informam que a acepção pertence a uma linguagem técnica, a um tecnoleto); diafreqüentes (em geral: raro, muito raro); diaevaluativas (mostram que o falante, ao usar o lexema, revela certa atitude; por exemplo, pejorativo, eufemismo); dianormativas (indicam que o uso de certa acepção — ou

“[…] doit se donner une méthode de travail la plus rigoureuse et la plus objective possible, pour atténuer la

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lexema — é errado pelas normas da língua padrão) (HAUSMANN, 1977 apud WELKER, 2004, p. 131)

O que se espera, no caso dos etnofaulismos, é que eles estejam etiquetados por uma marca/rubrica como “depreciativo” ou “pejorativo”, indicando que tais sentidos injuriosos depreciam aquele a quem se designa como tal. Assim, segundo a classificação de Hausmann, tais etiquetas classificar-se-iam como dia-avaliativas. Quanto a esse termo, lê-se no Dictionary 98

of Lexicography:

Uma característica do uso que se associa uma palavra ou expressão a uma atitude ou avaliação em particular. Tal informação pode ser marcada em dicionários por MARCAS DE USO numa escala de emotividade que vai do “apreciativo”, passando pelo neutro (zona não marcada), até o “pejorativo” e “ofensivo” (HARTMANN; JAMES, 2002, s.v. diaevalutive information) 99

Jackson (2002, p. 113), no entanto, classifica tais etiquetas como “de efeito”, pois, de fato, aquele que a utiliza pretende causar um determinado efeito no seu interlocutor. Mais especificamente, trata-se de um efeito que se relaciona à atitude do enunciador. Estão nesse grupo, as etiquetas “depreciativo”, “pejorativo”, “ofensivo”, “apreciativo”, “humorístico”, “jocoso”. Outros tipos de etiquetas de efeito correspondem a “eufemístico”, “literário” e “poético”.

Para Seco (2003, p. 26), as marcas de uso fazem parte da normalização do que ele denomina como “primeiro enunciado”. Ao tratá-las, o autor aponta que o dicionário da Real Academia Española faz diferenciação entre etiquetas como “antigo” e “desuso”, em que as primeiras serviriam para indicar a entrada ou a acepção que pertencem a um vocabulário da Idade Média, e as segundas para entradas ou acepções que se usaram na Idade Moderna, mas que hoje não se empregam (ibid.). Outra afirmação importante feita por ele é quanto a marcas do tipo “figurado”, “por extensão” e “irônico”; essas seriam empregadas apenas em acepções secundárias (ibid.), visto que as primárias seriam aquelas de sentido denotativo.

A tradução proposta por Welker (2004) para “diaevaluative” foi “diaevaluativo”. Entendemos, no entanto, que

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“evaluative”, no inglês, ou mesmo “evaluación”, no espanhol, corresponderiam a “avaliação” no português. Propomos, portanto, o termo “dia-avaliativo” para referirmo-nos às marcas de uso que dizem respeito a uma atitude em que o falante demonstra uma atitude ou avaliação ao usar uma dada unidade lexical.

“A usage feature which associates a word or phrase with a particular attitude or evaluation. Such information

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can be marked in dictionaries by USAGE LABELS on a scale of emotiveness from “appreciative” through neutral (unmarked zone) to ‘derogatory’ and ‘offensive’.”

Sistematizar esse elemento da microestrutura, de forma teórica, faz-se necessário, tão logo conclui-se que as marcas de uso, na prática, não são consistentes, seja ao longo de uma mesma obra, seja quando comparamos diferentes dicionários.

Borba (2003) menciona a importância e pouca homogeneidade desse tipo de informação que compõe a microestrutura de um verbete:

Num dicionário de usos uma informação importante relaciona-se com a variação tanto espacial, […] como social, no mesmo espaço mas considerada quanto aos diferentes registros utilizados pelas pessoas nas diferentes situações da vida social. Os dicionários costumam dar este tipo de informação por um conjunto de rótulos, tarefa complicada e feita de forma irregular em nossos dicionários (BORBA, 2003, p. 315)

A problemática do ponto de vista do consulente da obra, quando se trata de unidades lexicais tabuizadas, como os chulismos, é tratada por Zavaglia (2012):

De fato, até que ponto o lexicógrafo pode decidir rotular com uma marca ou outra certa unidade lexical, a partir do momento que ela pode migrar de um campo para o outro de uma hora para outra? É desejável que os dicionários monolíngues de língua geral tragam essas marcas de uso, mas é necessário também que o consulente tenha em mente a dificuldade enfrentada pelo lexicógrafo ao registrá-las em seus verbetes. […] Para estrangeiros que estejam aprendendo o português, a meu ver, é essencial informar-lhes que ao empregar a unidade lexical caralho, mesmo em intensificadores do tipo pra caralho, em diálogos informais, eles estarão empregando uma unidade lexical considerada chula e um tabuísmo em nossa língua. (ZAVAGLIA, 2012, p. 258)

Dado o caráter controverso dos etnofaulismos, o exame de suas marcas de uso mostra- se bastante relevante como elemento de auxílio à análise que fazemos, uma vez que são as marcas de uso que indicam como o lexicógrafo avalia tal acepção. Essa avaliação aliada à atestação dos usos e a coocorrência de duas ou mais marcas é que nos permitem investigar a problemática que tais etiquetas representam para a Lexicografia — nesse caso, a brasileira. Com respeito às marcas de uso para os sentidos pejorativos, o que se espera é encontrar, portanto, uma etiqueta dia-avaliativa, como “pejorativo” (utilizada pelo dicionário Houaiss), ou “depreciativo” (no caso do dicionário Aurélio). Com efeito, “pejorativo” é a etiqueta encontrada, no dicionário Houaiss para o sentido “pessoa usurária, avarenta” s.v. “judeu”. Em acepções com essas marcas, é importante que se observe também se há elementos na própria definição (e não apenas a marca de uso, em geral, abreviada) que façam menção à carga ultrajante do sentido. Assim, a análise pode ser favorecida também por uma

nota de uso ou um fato etimológico, que podem contribuir para o entendimento do sentido que aqui nos interessa: o depreciativo.

No contexto da Lexicografia espanhola, Fajardo (1996–1997) aponta os muitos problemas que envolvem o uso das marcas de uso nos dicionários. Desde a ausência de uma definição clara dos valores atribuídos a cada uma das etiquetas usadas nos dicionários (em alguns casos, utiliza-se uma abreviatura que, muitas vezes, não se encontra presente na lista de abreviaturas) até a sobreposição de dois ou mais valores, numa mesma obra, sem que haja uma explicitação da diferença entre eles, como é o caso de “coloquial” e popular” ou “desuso”, “obsoleto”, “arcaico” e “antiquado”. O autor ainda trata (p. 35–36) da importância da sistematização das marcas de uso de maneira a não criar ambiguidades ou repetições desnecessárias. Assim, no Houaiss (2009), ao etiquetar “bugre” como “brasilianismo” antes de todas as acepções, leva-se o usuário a entender que todas as acepções que se seguem correspondem a essa circunscrição regional:

bugre s.2g. (1877) B 1 ETNOL indígena pertencente ao grupo dos bugres 2 p.ext. qualquer índio, esp. o violento 3 fig. pej. indivíduo rude, primário, incivilizado 4 fig. indivíduo desconfiado, arredio […]

Todavia, “paraíba”, no mesmo dicionário, tem cada acepção marcada como sendo um uso típico da variante lusófona brasileira:

2paraíba s.f. (1922 cf. cf3) 1 B S. trecho de rio impróprio para a navegação 2

(1950) B infrm. pej. mulher de aspecto e comportamento masculinos 2.1 B infrm. pej. m.q. LÉSBICA 3 p.ext. B infrm. mulher forte, lutadora […]

Ademais, observe-se que a etiqueta “informal” também se repete nas três últimas acepções reproduzidas.

Garriga (1994–1995), ao observar as marcas “despectivo” e “peyorativo” nos dicionários da Real Academia Española, apontou que, assim como se verifica com as marcas de uso em geral, as que acompanham um sentido pejorativo também não são utilizadas de maneira consistente. Em muitos casos, não são nem mesmo marcas de uso, mas uma informação que indica a pejoratividade no interior da própria definição, ou ainda no espaço destinado à explicação etimológica.

Norri (2000) vê-se diante de problema semelhante com respeito a alguns dicionários de língua inglesa que utilizam rótulos como “derogatory”, “offensive” e “disparaging”, sem que haja

uma clara distinção entre eles, como feito pelo Random House Dictionary (1987), que explicita em seu front-matter: “‘Depreciativo’ para palavras que são usadas para menosprezar alguém; e ‘Ofensivo’ para palavras que podem ser ressentidas pelo receptor, mesmo quando elas não são usadas deliberadamente para menosprezá-los.”100 (BÉJOINT, 2000, p. 131).

Delbridge (1987 apud BENSON, 2001, p. 47), de fato, corrobora esse cenário de pouca sistematização ao afirmar que os consulentes de dicionários deparam-se com dois problemas: a falta de qualquer certeza sobre os critérios que levaram a aposição de certas marcas, num dado dicionário; e a ausência de um consenso terminológico, entre diferentes dicionários.

No caso da etiqueta “figurado”, Garriga Escribano (2003, p. 119) a classifica como uma marca de transição semântica e expõe que esse tipo de etiqueta representa, como poder- se-á verificar na análise que fizemos neste trabalho, um problema no que se refere ao tipo de informação que abrange. Um sentido figurado justifica-se, diacronicamente, quando a partir de um sentido original (denotativo) surgem outros, por um processo metafórico. Esse mesmo autor aponta que, nos dicionários da língua espanhola, a etiqueta “figurado” tem tido um alto uso, mas ressalta que, dado o seu caráter etimológico e diante da ausência de um dicionário histórico do espanhol, é difícil precisar quando uma acepção tem origem a partir de outra, se se desconhece qual das duas surgiu primeiro. Dessa forma, o autor ainda argumenta que, num dicionário de usos, essa etiqueta não se justifica, já que ele parte do critério de frequência para ordenar as acepções dentro de um verbete.

Da mesma opinião é Porto Dapena que afirma que esse tipo de informação “não se justifica num dicionário de uso, já que sua utilização implicaria numa visão evolutiva”101 da unidade lexical em questão (PORTO DAPENA, 2002, p. 255). Acrescenta ainda Garriga Escribano (ibid.) que muitos dicionários modernos do espanhol têm prescindido dessa marca. Com efeito, para os escopos de nossa pesquisa, a etiqueta “figurado” pouco elucida quanto ao fato de se tratar de sentidos injuriosos, mas revela apenas tratar-se de um sentido que deriva do primeiro apresentado no verbete. A dificuldade de se precisar o critério utilizado nos dicionários ao se aplicar a etiqueta “figurado” fica evidenciada por Casares quando ele afirma “que [a abreviatura fig.] tanto se esbanja nos dicionários de maneira pouco cuidadosa.”102

(1992 apud GARRIGA ESCRIBANO, 2003, p. 119)

“Disparaging for the words that are used in order to belittle someone, and Offensive for the words that can be

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resented by the receiver, even if they are not used deliberately to belittle them.”

“[…] no se justifica en un diccionario de uso, ya que su utilización implicaría una visión evolutiva […]”

101

“[la abreviatura fig.] que se prodiga nos diccionarios un poco a la buena de Dios.”

Embora as marcas de uso estejam se tornando um elemento cada vez mais importante, como afirma Béjoint, sobretudo pelo fato de, em dicionários eletrônicos, poderem ser usadas como chaves de busca, segundo esse autor, as marcas acabam passando despercebidas e que não é fácil reduzir a algumas etiquetas, “as variações infinitesimais nas intenções de um emissor e os efeitos no receptor”103 (BÉJOINT, 2010, p. 208). Para os propósitos deste trabalho, essa constatação é particularmente interessante, haja vista que as marcas de uso dia- avaliativas etiquetam usos que são carregados de intencionalidade (a saber, a de ofender), mas essa ainda é a melhor opção para a descrição dos etnofaulismos, sobretudo quando aliada a outros elementos da microestutura como os exemplos, os comentários semânticos e as notas de uso.

As unidades lexicais ofensivas que dizem respeito a nomes de povos e grupos sociais, marcadas ou não, são detalhadas no próximo capítulo.

“[…] the infinitesimal variations in the intention of the sender and the effect on the receiver are not easily

103