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Presenças suspeitas e ausências sentidas

Capítulo 3 — Palavras tabuizadas nos dicionários e as marcas de uso

3.2 Presenças suspeitas e ausências sentidas

Num dicionário, contemplar certos usos e não incluir outros que se enquadram num mesmo fenômeno linguístico pode levantar questionamentos. Tavares (2014) aponta que é “[…] um território perigoso o que o lexicógrafo começa a pisar, porque ou coloca todo mundo ou faz a sua amostragem de maneira a não desconfortar os excluídos.”. Soma-se a isso o incômodo que também pode ser sentido pelos que foram incluídos, ao darem-se conta que outros foram excluídos. Além disso, Landau (1985, p. 269) afirma que, “ao reconhecer um conjunto particular de valores e não outros, os dicionários dão a esses valores estabilidade e autoridade” (1985, p. 269). 94

Bagno (2006) observou que há uma lacuna nos dicionários brasileiros (especificamente, Aurélio e Houaiss), um espaço que mascara ou omite fatos históricos, por ausências e presenças de acepções e até mesmo de entradas inteiras que compõem importante parte do patrimônio cultural brasileiro e lusitano e que ganharam particular significação, ao tornarem- se, por processos como a antonomásia e a metaforização, parte da língua geral. Essa mesma autora faz ainda uma comparação com dicionários monolíngues e bilíngues de outras línguas como o inglês, francês, espanhol e italiano. Há assim uma correspondência metodológica com nosso trabalho, na medida em que verificamos os usos dos etnofaulismos em corpora e comparamos suas definições, em dicionários brasileiros, com aquelas de dicionários de outras culturas.

Quanto às ausências e presenças de sentidos ou mesmo do próprio item lexical que se refere a um fato histórico-cultural marcante da nação, a autora aponta que o dicionário monolíngue desempenha um importante papel didático, “graças […] a [sua] autoridade cultural e científica naturalmente reconhecida”, sendo assim, “a presença constitui um

“[…] in choosing to recognize one set of values over other possible sets of values, give the values they select

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importante testemunho para fins de perpetuação, na memória social” da própria civilização, de determinadas entradas e acepções figuradas, especialmente se atestadas também nos registros linguísticos cultos”. Por outro lado, “a ausência dos dicionários de algumas entradas ou acepções poderia implicar em outras ausências”. O leitor, ao se ver sem o amparo de uma elucidação quanto a um determinado significado metafórico “é, portanto, induzido a considerar outros dicionários monolíngues, seja do português, seja de outras línguas ocidentais” (BAGNO, 2006, p. 52) 95

A ausência de um sentido pejorativo associado ao item lexical “português” nos mais importantes dicionários de língua portuguesa no Brasil causa estranhamento ao leitor/ consulente, visto que as “piadas de português” são parte essencial dos ditos espirituosos do vernáculo brasileiro. Como aponta Rowland, essas piadas corroboram para a composição do “[…] estereótipo depreciativo e folclorizado do português ignorante e burro, mas armado em esperto, que ainda hoje, quase meio século após o fim da imigração portuguesa em massa, circula no Brasil.” (ROWLAND, 2001, p. 157–158). Uma questão de natureza econômica que permeia esse tipo de obra de referência justificaria a ausência de um sentido frequente, em dicionários de língua; a presença de tal acepção, em contrapartida, poderia causar conflitos entre a editora do dicionário e o público português, visado também como público-alvo de tais obras. Evidentemente, o sentido depreciativo de “português” não passaria despercebido aos responsáveis pelas obras lexicográficas e a não inclusão pode ser, assim, uma opção consciente que exime editora e lexicógrafo de atritos com um público em potencial — que, como temos visto neste trabalho, conflitos e polêmicas são passíveis de acontecer — uma vez que um dicionário do português pode ser comercializado tanto no Brasil, quanto em Portugal. Prova disso é a grande quantidade de lusitanismos presentes na edição 2001 do dicionário Houaiss. Esse sentido depreciativo de “português” pode ser encontrado, como já mencionado, no DUP, na acepção de número 17, com os devidos exemplos retirados do corpus, conforme segue:

português (Deprec) no Brasil, pessoa tida como simplória ou pouco inteligente: — Parabéns a você…/ — Não é aniversário não, ó português; é aposentadoria (CHU); em compensação conheço a última do português (MPF)” (BORBA, 2002, s.v. português).

“[…] grazie anche all’autorevolezza culturale e scientifica naturalmente riconosciuta [a un dizionario

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monolingue…] la presenza costituisce un’importante testimonianza ai fini della perpetuazione, nella “memoria social” della propria civiltà, di specifiche ‘voci’ e accezioni figurate, specie se attestate pure nei registri linguistici colti. [Ora,] l’assenza dai lemmari di alcune ‘voci’ o accezioni di ‘voci’ potrebbe implicare altre assenze ancora. [… Il lettore] è pertanto indotto a prendere in considerazione anche altri dizionari monolingui, sia di lingua portoghese sia di altre lingue occidentali”

Por outro lado, a presença dos sentidos pejorativos atribuídos à entrada “cigano” e “baiano” leva-nos a questionar a origem de tais acepções. É possível encontrar na literatura referências semelhantes àquelas usadas para a acepção pejorativa de “cigano”, como lemos na obra Memórias de um sargentos de milícias:

Com os emigrados de Portugal veio também para o Brasil a praga dos ciganos. Gente ociosa e de poucos escrúpulos, ganharam eles aqui reputação bem merecida dos mais refinados velhacos: ninguém que tivesse juízo se metia com eles em negócio, porque tinha certeza de levar carolo. A poesia de seus costumes e de suas crenças, de que muito se fala, deixaram-na da outra banda do oceano; para cá só trouxeram maus hábitos, esperteza e velhacaria, e se não, o nosso Leonardo pode dizer alguma coisa a respeito. Viviam em quase completa ociosidade; não tinham noite sem festa. Moravam ordinariamente um pouco arredados das ruas populares, e viviam em plena liberdade. As mulheres trajavam com certo luxo relativo aos seus haveres: usavam muito de rendas e fitas; davam preferência a tudo quanto era encarnado, e nenhuma delas dispensava pelo menos um cordão de ouro ao pescoço; os homens não tinham outra distinção mais do que alguns traços fisionômicos particulares que os faziam conhecidos. (ALMEIDA, [s.d.], p. 35)

Conforme nos aponta Fraser (1995 apud FAZITO, 2006), a associação de imagens negativas aos ciganos dá-se por meio de grandes nomes da literatura:

[…] de acordo com outros [escritores], convenções mais depreciativas se espalharam no século XIX, apresentando os ciganos como selvagens e marginais que se entregavam ao sobrenatural, ao misterioso e ao crime: eles podiam ser usados em livros para crianças ou adultos, como uma estratégia de construção do roteiro, explicando roubos, estranhos acontecimentos ou eventos ocultos ou (seguindo uma história precedente de Cervantes em La Gitanilla e depois Moll Flanders de Defoe) o relato do desaparecimento de crianças roubadas de seus pais. (FRASER, 1995 apud FAZITO, 2006)

Afirmação que é sustentada por Geipel:

Na Espanha e em Portugal, como em todos os países onde eles se estabeleceram, os ciganos sempre foram considerados com uma mistura de temor respeitoso, desconfiança, hostilidade e fascinação. Miguel de Cervantes, em sua novela La gitanilla (1613), de forma alguma foi o primeiro em uma extensa linha de escritores que vilificaram e romantizaram o cigano, enquanto Discurso de la expulsión de los gitanos (1618), de Sancho de Moncada, foi apenas uma das muitas diatribes contra eles. (GEIPEL, 1997, p. 139)

Enquanto Bagno (2006), questionou a ausência de “Waterloo”, no sentido de “derrota”, “fracasso” nos principais dicionários brasileiros, questionamo-nos também qual

seria a motivação para a unidade lexical “cigano”, em dicionários brasileiros, ser definida segundo uma visão que retrata esse povo como “velhaco”, “burlador” e “apegado ao dinheiro”, em seu sentido pejorativo, e em dicionários italianos, por sua vez, com a mesma conotação, como “alguém de aspecto desleixado”.

Apresentadas as bases teóricas quanto à problemática das ausências e presenças nos dicionários, encaminhamo-nos para uma reflexão sobre as marcas de uso e sua importância para a descrição dos etnofaulismos presentes nos dicionários monolíngues brasileiros.