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Questões controversas envolvendo grupos étnicos e lexicógrafos/editors

Capítulo 3 — Palavras tabuizadas nos dicionários e as marcas de uso

3.1 Questões controversas envolvendo grupos étnicos e lexicógrafos/editors

Robert Burchfield, editor-chefe dos dicionários Oxford entre os anos de 1971 a 1984, relata que, na década de 20, no Reino Unido, o periódico Jewish Chronicle serviu de praça para protestos que diziam respeito à acepção “usurário inescrupuloso e regateador” associada ao verbete “judeu” no Pocket Oxford Dictionary. Os editores passaram, então, a indicar, no verbete do dicionário, por meio de uma rubrica, que se tratava de um uso depreciativo e o Jewish

“In general-purpose dictionaries, many definitions reflect the society’s general attitudes on all sorts of

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ideological, political, or moral issues. This is true not only for taboo words and of ethnonyms, but also of the words used in the description of political systems, and of many other that are difficult to classify.”

“relacionado a, que denota, ou característico da França, o francês, ou a língua”.

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“ridículo ou ilógico”.

Chronicle publicou, em 24 de outubro de 1924, um artigo no qual expressava gratidão pelo acolhimento da solicitação, expresso em forma de indicação de uso, por meio de uma marca de uso. Segundo o autor, H. W. Fowler, o editor do dicionário escreveu para R. W. Chapman, editor-chefe na Oxford University Press, dizendo:

Aquele que faz dicionários deve registrar o que as pessoas dizem, não o que ele acredita ser aquilo que elas devem educadamente dizer: como você desenharia a linha entre esse insulto a uma nação e outros como ‘Dutch courage‘, ‘French leave’, ‘Punic faith’, ‘the Huns’, ‘a nation of shopkeepers’, e centenas de 83

outros? A verdadeira pergunta não é se uma expressão é grosseira, mas se ela é atual. (BURCHFIELD, 1980, p. 16) 84

Paralelamente, ainda segundo Burchfield (op. cit.), houve, à época, no contexto da Lexicografia americana, um movimento que exigia o uso de inicial maiúscula para a unidade lexical “Negro” e o consequente abandono de “nigger”, a primeira de conotação menos ofensiva que a segunda, em inglês. Pressionados para que registrassem tal mudança em seus dicionários, os lexicógrafos, nos Estados Unidos, argumentaram que ficariam felizes em registrá-la dessa forma se os escritores passassem a usá-la desse modo em seus textos.

Uma contenda envolvendo o Concise Oxford Dictionary teve implicações mais severas, no que Burchfield (op. cit., p. 18) define como “um erro de julgamento do lexicógrafo” ao definir “Pakistan”, na edição de 1951, como “a separate Moslem State in India, Moslem autonomy; (from 1947) the independent Moslem Dominion in India”. Embora a Oxford University 85

Press tenha reconhecido que a definição era “inepta” e “localmente irritante”, afirmou não haver motivação política para a definição, apenas geográfica/didática, uma vez que aquele território encontrava-se no que sempre se conheceu como Índia nos livros de geografia e nos mapas. Tal explicação não foi suficiente para conter a fúria que se propagara entre os paquistaneses. A polícia de Carachi confiscou das prateleiras 215 cópias do Concise Oxford

Por “dutch courage”, entende-se um tipo de coragem ou valentia atribuída à ingestão de bebida alcoólica. A

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origem da expressão teria a ver com a valentia que o soldados ingleses observavam em soldados holandeses (dutch, em inglês) quando esses ingeriam gim; “french leave” equivale a “sair à francesa”, em português, e refere-se a partir silenciosamente de um lugar, sem anunciar aos demais; “punic faith” pode ser traduzida como “fé púnica” e diz respeito à forma como os romanos se referiam aos cartaginenses e a repetida atitude desses em não cumprir tratados que haviam assinado; “the Huns” refere-se aos hunos, povo nômade asiático que invadiu a Europa, nos primeiros séculos da EC. Em sentido pejorativo, refere-se aos alemães; “a nation of shopkeepers” é uma expressão que foi primeiramente usada por Adam Smith, na obra A Riqueza das Nações (1776) e, posteriormente, tornada famosa por Napoleão ao referir-se aos ingleses como “uma nação de comerciantes”, entendida como pejorativa.

“The dictionary-maker has to record what people say, not what he thinks they can politely say: how will you

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draw the line between this insult to a nation and such others as ‘Dutch courage’, ‘French leave’, ‘Punic faith’, ‘the Huns’, ‘a nation of shopkeepers’, and hundreds more? The real question is not whether a phrase is rude, but whether it is current.”

“um Estado Muçulmano separado na Índia, autonomia mulçumana; (desde 1947) o Domínio Muçulmano

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Dictionary e apreendeu a única cópia do datilógrafo no escritório da Oxford University Press na mesma cidade. As cópias de escolas, órgãos públicos e universidades também teriam sido retiradas.

Enquanto editor-chefe do Oxford English Dictionary, Burchfield, em certa ocasião, recebeu em seu escritório o representante da American Conference of Businessmen que afirmou que “Homens de boa-vontade deveriam se unir afim de fazer todo o possível para não dar qualquer sinal de aceitação em relação a usos desfavoráveis da palavra ‘judeu’, se é que tais usos existem” (op. cit. p. 18–19). A indignação é rebatida pelo editor-chefe dos 86

dicionários Oxford, da maneira como ele nos relata:

“Se eles existem? Mas nós sabíamos, do nosso arquivo de citações, que aplicações desfavoráveis da palavra ‘judeu’ existiam e existem, tanto na fala quanto na escrita, embora sejam deploráveis. Tudo o que eu pude fazer foi repetir os familiares argumentos lexicográficos: é tarefa do lexicógrafo registrar o uso corrente, conforme mostrado por exemplos coletados, não expressar aprovação ou desaprovação moral de uso; dicionários não podem ser reguladores no que diz respeito a atitudes sociais, políticas ou religiosas; não há qualquer problema de ódio da parte do lexicógrafo contra judeus, árabes ou qualquer outro povo.” (BURCHFIELD, 1980, p. 19) 87

O autor ainda afirma que “o problema com a palavra ‘judeu’ continuou se manifestando de maneira cada vez mais dramática”. (op. cit., p. 18). Com efeito, há 10 anos, a Lexicografia brasileira registrava, em seus anais, episódio semelhante envolvendo, dessa vez, a comunidade judaica e uma descrição infamadora. À época, um grupo de cidadãos em Campinas encaminhou, por meio de sua advogada, representação ao Ministério Público Federal pedindo que fosse apurado “crime de lesa-humanidade” por parte dos dicionários Aurélio e Houaiss e a obra Enciclopédia Prática Jackson, devido à acepção pejorativa 88

atribuída à unidade lexical “judeu” que, segundo a representação, atribuía aos judeus os traços de pessoa usurária, avarenta e de má-índole (este último adjetivo encontrado apenas na enciclopédia Jackson). Lê-se ainda, na petição, que pode ser encontrada on-line:

“Men of good will […] should not unite to do everything possible not to give any appearance of acceptance to

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unfavorable applications of the world Jew if they exist”.

“If they exist? But we knew from our quotation files that unfavorable applications of the word Jew did and do

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exist, both in speech and in print, deplorable though they are. All I could do was to repeat the familiar lexicographical arguments. It is the duty of lexicographers to record actual usage, as shown by collected examples, not to express moral approval or disapproval of usage; dictionaries cannot be regulative in matters of social, political, and religious attitudes; there is no question of any animus on the part of the lexicographers against the Jews, or the Arabs, or anyone else.”

Editada na década de 50 pela W. M. Jackson Inc, a obra continha 12 volumes, conforme consta na

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As referidas obras são então responsáveis por difundir e exercer influência no sentido de induzir os leitores a considerar todos os membros da comunidade judaica, de forma generalizada, como maus, usurários e avarentos. A qualificação em questão, que constitui uma ofensa direta, configura, sem dúvida alguma, um crime de discriminação por parte de seus autores, uma vez que tende a perpetuar um círculo vicioso que, durante séculos, tem se repetido e só atraído conflitos. Tal círculo vicioso vinha se estabelecendo na medida em que aquela adjetivação pejorativa, de tanto ser repetida e divulgada, acabava causando uma influência tanto em quem a emitia como nas pessoas que eram alvo da mesma, ou seja, nos judeus, os quais, pela força, poder e energia da palavra, acabavam se conformando com a ofensa e, ainda, assimilando o atributo. 89

A problematização judicial da questão parece não ter ido longe nesse caso, assim como em outras ocorrências semelhantes relatadas por Burchfield (1980), envolvendo o mesmo grupo étnico e outros, com respeito aos dicionários editados pela Oxford. A história, contudo, parece comprovar que não se trata da questão de se existirá outro caso envolvendo judeus e dicionários, mas quando ele acontecerá.

O que se nota, entretanto, é que grupos étnicos podem estar, ora num lado da querela, ora do outro. Foi o que aconteceu, no final da década de 70, momento em que palestinos deram-se conta da definição que se seguia à entrada “palestinian” no Concise Oxford Dictionary, publicado em julho de 1976: “(native or inhabitant) of Palestine; (person) seeking to displace Israelis from Palestine”. A definição gerou grande revolta nos países de língua árabe 90

manifestada em acalorados editoriais em jornais do Oriente Médio, e uma ameaça de que o fato seria levado ao conhecimento da Liga Árabe com pedido de inserção da Oxford University Press na lista árabe de boicotes. Burchfield (op. cit., p. 20) reconhece que a definição era inadequada, mas alega que o espaço disponível para a definição era de duas linhas, não sendo possível dar maiores explicações ou fugir de uma definição formulaica, o que os levou a: “n. Native or inhabitant of Palestine. adj. Of, pertaining to, or connected to Palestine”. A modificação satisfez a comunidade árabe mas desagradou os judeus. Cartas 91

chegavam à Oxford University Press alegando, por exemplo, que lexicógrafos teriam “se desviado de seus usuais padrões de objetividade acadêmica ao ceder a pressões de grupos pró- árabes”. Burchfield suspeita que ao menos uma organização encarregou-se de alistar pessoas para que escrevessem cartas para a Oxford University Press que, em muitas delas, traziam a

Texto disponível em: <http://www2.uol.com.br/jornaldecampos/479/editora.htm> e <http://

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www.samamultimidia.com.br/port/noticias/judeu_p.html>. Acesso em: 30 mar. 2015. “(nativo ou habitante) da Palestina; (pessoa) que procura deslocar israelenses da Palestina”

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“subst. Nativo ou habitante da Palestina. adj. De, pertencente a, ou relacionado à Palestina.”

mesma sentença ipsis litteris: “Ao descrever um palestino como um nativo ou habitante da Palestina, vocês, implicitamente, negam a existência do Estado de Israel” (op. cit., p. 21). 92

Seco (2003) ressalta o problema de se registrar tais usos, mas aponta que a presença deles nos dicionários justifica-se pelo papel que o lexicógrafo assume, enquanto aquele que registra tais usos.

Figuram também entre os leitores de dicionários determinados coletivos, ou melhor, pessoas que se apresentam como seus representantes, que protestam pelo acolhimento no dicionário de entradas ou de sentidos que consideram ofensivos para eles. O problema dessas honradas pessoas consiste em ignorar que o autor do dicionário não inventa esses usos, já que pertencem à língua real, e que seu dever profissional é registrá-los […]. (SECO, 2003, p. 102) 93

McCluskey (1989, p. 111), ao comentar o caso de “nigger”, relatado por Burchfield, afirma que, para o editor-chefe dos dicionários Oxford, os “editores de obras lexicográficas não deveriam tentar apaziguar grupos ofendidos concordando em omitir palavras ofensivas inteiramente, mas eles têm a tarefa de informar os leitores que certos termos são provocadores”.

Landau (1984, p. 295), numa seção de sua obra chamada “Cartas ao editor”, relata que editores recebem, com frequência, mensagens de indignação relacionadas à inclusão ou à exclusão de palavras tabuizadas e expressões insultuosas nos dicionários. Os argumentos das acusações, em geral, concentram-se no suposto enviesamento, racial ou religioso, por parte do lexicógrafo. Para o autor, cabe aos editores apenas defender-se sob a égide da descrição de usos que já circulam socialmente.

A tentativa de se minimizar a repercussão negativa gerada por esse tipo de descrição de uso, segundo Béjoint (2000), foi, justamente, a inclusão de marcas que indicam ao consulente do dicionário tratar-se de usos com conotação social infamadora, como, por exemplo, a inclusão da letra “R”, com o significado de “uso racial ofensivo” para cerca de 25 palavras, na sétima edição do The Concise Oxford Dictionary of Current English (BÉJOINT, 2000, p. 130–131).

“In describing a Palestinian as native or inhabitant of Palestine, you impliedly deny the existence of the State

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of Israel.”

“También figuran entre los lectores del diccionario determinados colectivos, o más bien personas que se erigen

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en representantes suyos, que protestan por la acogida en el diccionario de voces o de sentidos que consideran ofensivos para ellos. El problema de estas honradas personas consiste en ignorar que el autor del diccionario no inventa esos usos, ya que pertenecen a la lengua real, y que su deber profesional es registrarlos […].”

No entanto, Mackintosh (2006, p. 55), sobre essa questão, explica o temor que alguns editores possuem ao incluir palavras tabuizadas nos dicionários, ainda que as marcas de uso estejam sendo cada vez mais usadas, de maneira socialmente consciente.

Essas marcas são, de fato, um elemento-chave, nesta pesquisa, visto que qualquer dicionário moderno faz uso delas, sobretudo no que tange sentidos difamatórios. Importantes e significativas são também as ausências e as presenças de acepções injuriosas nos dicionários, como veremos na próxima seção.