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CAPÍTULO 2 O ESPIRITISMO NO BRASIL

2.5 O ESPIRITISMO EM DEBATE

2.5.2 Os fatores desfavoráveis ao Espiritismo

Kardec reconhecia a força da propagação do Espiritismo. Mas percebia que o Espiritismo ao duelar com as concepções vigentes acabava muitas vezes ameaçado pela existência em sua estrutura de lacunas típicas de uma ciência nascente.

Na situação em que estava a pesquisa espírita seria uma ciência para completar-se no futuro, quando os métodos se depurassem e o filtro natural do tempo e da experiência solidificassem suas bases. A Academia não conseguia apoiar em sua totalidade a explicação espírita para os fenômenos que poderia parecer lógica, mas admitia outras interpretações. No caso Mesmer, o magnetismo fora condenado em análise anterior pela Academia de Medicina de Paris. Mas o entusiasmo gerado pela sua prática acabou forçando a revisão da investigação. Nova conclusão: a Academia de Medicina declarou que ―o juízo proferido contra Mesmer, em 1870, tinha sido viciado pelo preconceito dos comissários ―que tinham descurado atender a fatos considerados a seguir autênticos por observadores rigorosos e honestos‖―. (LANTIER, 1980, p. 32). Isso não agradou a todos. A Igreja pressionou a Academia que acabou achando que a comissão exagerara no seu veredito. Nomeou, então, outra comissão que, em cinco anos, tirou definitivamente o magnetismo dos seus trilhos, aconselhando a se considerar o magnetismo como um ―ramo curioso da psicologia e de história natural, mas não como terapêutica médica‖. (LANTIER, 1980, p. 32).

Para a análise dos fenômenos mediúnicos, então, surgiram diversas teorias, algumas plausíveis outras completamente estranhas. Como foi o caso do músculo estalante de Jobert de Lamballe. No início de 1861, é publicado O Livro dos Médiuns. Foi uma maneira de fixar procedimentos para a exploração do fenômeno, baseado nas experiências com diversos tipos de sensitivos e manifestações.

O Espiritismo experimental é cercado de muito mais dificuldades do que geralmente se pensa, e os escolhos aí encontrados são numerosos. É isso que ocasiona tantas decepções aos que dele se ocupam, sem a experiência e os conhecimentos necessários. Nosso objetivo foi de prevenir contra esses escolhos, que nem sempre

deixam de apresentar inconvenientes para quem se aventure sem prudência por esse terreno novo. Não podíamos negligenciar um ponto tão capital, e o tratamos com o cuidado que sua importância reclama. (KARDEC, 2006, p. 23).

No campo da teoria religiosa, talvez as maiores divergências tenham vindo da posição antireencarnacionista dos anglo-saxões e a doutrina dos evangelhos de Roustaing. A reencarnação é um princípio basilar da Doutrina Espírita, uma vez que é por ela que os espíritas explicam, por exemplo, a justiça divina. É pela reencarnação que o espírito evolui e é no intervalo das reencarnações que os espíritos atuam sobre o mundo dos vivos. Por reencarnação, segundo os espíritas que seguem a proposta kardecista, se entende a possibilidade que uma pessoa tem de retornar à vida material, habitando um novo corpo. Essa volta só pode se dar em corpos de seres humanos. É também chamada de palingenesia. Difere da metempsicose, por esta admitir, também o retorna à vida em corpos de animais. Mas essa formulação kardecista não é totalmente aceita por outras vertentes espíritas, por exemplo, a anglo-saxã. ―A reencarnação, isto é, a pluralidade das existências na terra ou em outros planetas, é a pedra fundamental do edifício francês, que se opõe neste ponto ao Espiritismo anglo-saxão‖. (AUBRÉE e LAPLANTINE, 2009, p. 88).

A corrente anglo-saxã defende a reencarnação como uma ocorrência excepcional, ou mesmo impossível. Para eles existe a sobrevivência da alma, no entanto, uma vida na terra já é suficiente para dar ao espírito experiência material suficiente para continuar a progredir no mundo espiritual. Os espíritas ingleses ―não chegaram a uma conclusão no que se refere à reencarnação. Alguns a aceitam, outros não. A atitude geral é que, como a doutrina não pode ser provada, o melhor seria excluí-la da política ativa do Espiritismo.‖ (DOYLE, 1960, p. 396).

Outra versão, explica que talvez a não aceitação da reencarnação por este segmento venha da tradição americana, onde se concebia impossível a um branco reencarnar como um negro ou um pele-vermelha. Isso era encarado como uma regressão, uma decaída. Como no Espiritismo kardecista a alma pode reencarnar em qualquer situação social, raça, cor ou estado físico, é, segundo essa corrente, inevitável que o espírito reencarne nas mais diversas condições humanas, inclusive em sexos diferente, ora como homem, ora como mulher. (AUBRÉE e LAPLANTINE, 2009, p. 87). A questão reencarnacionista foi objeto de estudos de Kardec que rejeitou a posição inglesa e americana, segundo a qual, Kardec alega, não pode explicar as variedades da condição humana. A divergência, ainda que mostre uma não total unanimidade dos espíritos comunicantes, é explicada por Kardec: os espíritos emitem a sua opinião como os encarnados emitem as suas. Há, por exemplo, no mundo dos espíritos,

católicos que não abdicaram de sua fé, nem de seus dogmas e, portanto, se chamados a depor sobre a reencarnação, poderiam negá-la peremptoriamente.

Foi a partir da teoria de Jean-Baptiste Roustaing (1805 – 1879) sobre a natureza de Cristo que novas divergências surgiram dentro do Espiritismo. Roustaing era francês, advogado e, autor de livros sobre o Direito. Após ler as obras de Kardec procurou participar de grupos onde a mediunidade era exercitada. Nesse contato, conheceu o casal Collignon, cuja esposa, Émilie começou a psicografar o que ela denominava Os Quatro Evangelhos: a revelação da revelação. As obras seriam ditadas pelos próprios espíritos dos evangelistas, apoiados por outros apóstolos e pelo espírito de Moisés. As obras foram organizadas por Roustaing, daí a ele serem atribuídas.

Kardec manteve correspondência com Roustaing e publicou as cartas na Revista Espírita. Um dos pontos de dissidência é que Roustaing sustenta a natureza fluídica de Jesus, isto é, para ele Jesus não tinha tomado um corpo de carne, mas se revestido de um corpo não material, enquanto que para muitos espíritas o Cristo veio ao mundo dentro dos processos gerais da natureza – concepção, gestação, nascimento. Isso lembra as disputas arianas do cristianismo nascente. Essa teoria não refutada de pronto por Kardec, que preferia obter mais depoimentos dos espíritos acabou gerando um impasse. Se Jesus não se revestiu da natureza física humana, não teria passado pelos sofrimentos e martírios dos homens e, portanto, o seu calvário não teria valor. ―Sem a prejulgar, diremos que já foram feitas sérias objeções a essa teoria, e que, em nossa opinião, os fatos podem perfeitamente ser explicados sem sair das condições da humanidade corporal.‖ (KARDECC, 2005, p. 259).

As obras de Roustaing tiveram mais repercussão entre os espíritas do Brasil do que na França. A Sociedade de Estudos Espíritas de Paris entendia que não se devia dar ênfase ao estudo de dogmas católicos, como a materialidade do corpo de Jesus ou a virgindade de Maria, exaustivamente analisados por Roustaing. (BRANDÃO, 2002, p. 67).

Conclusão

Desde a chegada do Espiritismo no Brasil, no final do século XIX, que essa Doutrina passou a experimentar mudanças importantes. Os portos principais de chegada, Salvador e Rio de Janeiro já estavam aclimatados a uma religiosidade intensamente carregada pelos padrões religiosos indígenas e africanos. Nos séculos anteriores, os desbravadores portugueses quase abandonados pelas cortes de Lisboa, embrenhavam no interior brasileiro, à cata de riquezas, e cada vez mais distante de sua religião original, o Catolicismo. Até mesmo a linguagem dos portugueses que ficaram aqui nos primeiros séculos era uma mistura bastante carregada dos termos da língua indígena, com quem tinham muito mais contato e com quem construíam uma intimidade muito mais efetiva. A falta de contato com a civilização fazia o reinol se socorrer da alimentação e dos remédios que a sabedoria e a religião indígenas ofereciam.

Com os negros os portugueses, já abrasileirados repartiam a lavoura, o amanho do gado, e até os lençóis, gerando essa raça mulata que se tornou numerosa a ponto de assustar as autoridades portuguesas. As escravas, lançadas às panelas, serviam aos seus senhores, não apenas os alimentos tradicionais das culturas africanas, as bênçãos, as rezas, as mandingas com que regavam todas as mesas e todas as casas. Mesmo nas senzalas, o negro, a batucar suas toadas foi acostumando os senhores brancos às terminologias dos seus cantos religiosos e das suas crenças primitivas. A convivência com o negro e com o índio criou uma cultura especial acostumada a ver espíritos em todas as coisas e a sentir suas manifestações em todos os lugares. Se os negros foram obrigados a abjurar de seus deuses, pela intolerância de um catolicismo a serviço da coroa, o seu sincretismo conseguiu gerar uma categoria especial de Igreja, onde os orixás escorregavam pelas soleiras das portas acompanhando as aias negras e seus filhos nas missas e festas religiosas.

O Espiritismo chegou numa Bahia e num Rio de Janeiro infestado de divindades que agitavam os terreiros no mediunismo primitivo. Serviu de calço para a elevação das práticas africanas, pra o refinamento que os brancos desejavam de uma religião onde os espíritos fossem em sua maior parte ―espíritos de luz‖. Uma pitada de ciência e de filosofia foi o suficiente para se ajustar ao tempero moreno de uma mediunidade controlada. Enfim uma religião em que se podia acreditar nos espíritos sem se acanhar de frequentar os terreiros demonizados pela Igreja Católica. E foi nas curas e na homeopatia florescente que muitos médiuns conquistaram a simpatia do povo. A caridade material e espiritual fez o resto.

A posição do Espiritismo no campo religioso, no entanto, era incerta e ameaçada. O catolicismo brasileiro, de pronto reforçou as suas trincheiras, avisado pelas ocorrências na Europa. E como a Doutrina Espírita conquistava fatias privilegiadas da sociedade, a Igreja desencadeou suas campanhas de esclarecimento de suas fileiras. De Norte a Sul, os ataques foram estigmatizando a figura do espírita, de forma que, livros, artigos, reuniões, sessões e palestras espíritas eram proibidos de contato aos fiéis católicos. De braços com a medicina a Igreja lançou a campanha de que o Espiritismo era uma fábrica de loucos. Os casos de obsessão forma associados aos perigos da mediunidade e a prática do Espiritismo seguia proibida por lei.

Internamente, muitos espíritas desejavam retornar ao Espiritismo acadêmico. Aquele que Kardec iniciara na França, havia poucos anos. Os ―científicos‖ se opuseram aos ―místicos‖ e a divisão provocou cismas nas fileiras espíritas. Por muitos anos, as lideranças espíritas bateram cabeças na procura de um sistema que harmonizasse as duas vertentes. Mais de meio século passaria até que um acordo, o Pacto Áureo, pudesse ser assinado, minimizando as diferenças e organizando o movimento. Por ter sido adotado por classes mais favorecidas da população, o Espiritismo escapou de ser marginalizado, como aconteceu com diversas religiões mediúnicas ao longo da história da religião no Brasil. Essa gente educada fazia parte de clubes de ciência, de redação de jornais, do serviço público. Eram militares, comerciantes, professores, maçons. Nesse nível, seria difícil desbancar o movimento espírita de seu posto, ainda frágil, pelo pequeno número de seguidores, frente ao maciço contingente das religiões dominantes.

Pela divulgação de suas ideias, o Espiritismo foi se expandindo. As obras de Kardec forneciam as bases para a crença na reencarnação, na sobrevivência da alma, na comunicação com os mortos e na multiplicidade de mundos habitados por espíritos encarnados e desencarnados, como dizem os espíritas. Era uma proposta bem diferente do que havia por aqui em termos de proposta religiosa. Mas, não era diferente do que o povo estava acostumado a escutar. As benzedeiras, as rezadeiras, os receitistas, desde muito tempo eram conhecidos e serviam as comunidades. Pouco a pouco o Espiritismo brasileiro foi ficando conhecido e a rejeição diminui, apesar das campanhas contrárias. Os Centros Espíritas ganharam o direito de funcionar, sem o disfarce das associações científicas e a prática mediúnica de ―mesa branca‖ fez a sua distinção das práticas dos terreiros. Uma quantidade grande de médiuns começou a lançar livros. Eram poemas, romances, depoimentos e discussões sobre temas espíritas. Um médium se destacou pela sua produção editorial, o Chico Xavier.

Chico, como era conhecido, chegou a ser processado por fraude e por usar o nome de escritores e poetas famosos em seus livros, hoje mais de 450 títulos. Outros médiuns, usando das mais diversas mediunidades, como curas (Zé Arigó) e pinturas (Gasparetto) deram amis visibilidade ao Espiritismo. De qualquer forma, a Doutrina Espírita se firmou no Brasil. E hoje, acompanha o aumento de efetivo de outras religiões, ao mesmo tempo em que deverá enfrentar, como todas elas, os fantasmas da institucionalização, do sacerdócio e, das práticas ritualísticas. O Centro Espírita começa a tomar forma particular. As salinhas simples onde se reuniam meia dúzia de pessoas estão se transformando em templos para milhares de pessoas, com espaços reservados para iniciados e médiuns formados em cursos de muitos anos. Só o futuro dirá que rumo tomará o espiritismo brasileiro, uma vez que, em tão pouco tempo, já se distanciou do modelo científico de Kardec tornando-se uma autentica religião dos espíritos.

CAPÍTULO 3 O UNIVERSO RELIGIOSO BRASILEIRO: UM