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CAPÍTULO 3 O UNIVERSO RELIGIOSO BRASILEIRO: UM TERRENO FÉRTIL

3.3 A RELIGIOSIDADE INDÍGENA

A grande variedade de tribos, uma boa parte das quais nem conhecidas, dificulta traçar um perfil das crenças indígenas no Brasil. Os contatos com o homem branco, mesmo frequentes em alguns lugares, não permitiram perceber a fundo suas crenças e tradições. Parte porque os índios se mostraram desconfiados das intensões dos brancos sonegando informações capitais, parte pela dificuldade de traduzir do linguajar dos índios o verdadeiro significado de uma expressão simbólica que se manifesta não apenas nas palavras, mas nos rituais e costumes, nos mitos e tradições.

A apreciação que se segue baseia-se no trabalho de Alfred Metraux (1902 – 1963), um antropólogo suíço, cujas principais titulações foram obtidas em escolas francesas, inclusive a Sorbonne (Doutorado). Foi discípulo de Marcel Mauss, a quem dedica sua obra. Em A Religião dos Tupinambás, Metraux faz um estudo minucioso das práticas religiosas dos maiores grupos indígenas brasileiros. Os tupinambás eram, como se sabe, uma das mais importantes greis, ou tribos primitivas do Brasil (Sécs. XVI e XVII). [...]. ―Dizia Varnhagen que, se alguém perguntasse a um índio a que ―raça‖ pertencia, fosse esse índio do Maranhão ou do Pará, da Bahia ou do Rio de Janeiro, a resposta era invariável: índio tupinambá‖. (METRAUX, 1979, p. XVIII).

A inserção das crenças indígenas neste trabalho, além de evidenciar a importância das religiões indígenas na matriz religiosa brasileira, busca evidenciar também a influência de algumas crenças e práticas que ajudaram a formar uma identidade de matriz religiosa com os princípios e práticas espíritas. A pajelança, como a expressão da manifestação de espíritos e aplicação do magnetismo pessoal do pajé tem estreita ligação com o conceito e prática da mediunidade no Espiritismo. As rezas e receitas indígenas estão presentes na cultura brasileira, o que torna mais fácil a aceitação dos médiuns e seus processos de cura dentro das práticas espíritas. A noção de um mundo espiritual, ainda que carregado de mitos e alegorias, explora a dimensão espiritual que o Espiritismo aprofunda na descrição da vida após a morte.

O xamanismo pode ser considerado como uma estrutura religiosa calcada na disposição em aproximar o mundo dos espíritos do mundo dos vivos, onde existe a presença de um intermediário, num processo de êxtase e de desprendimento físico algo parecido com o que o Espiritismo pratica. Da crença indígena a busca por padrões mais sofisticados de mediunidade e contato com os mortos vai encontrar no Espiritismo um porto seguro, mais adaptado aos padrões de vida da população mais educada. As crenças indígenas ajudaram a ambientar a cultura brasileira aos processos de manifestação espiritual de forma a não serem sentidas como estranhas as práticas do Espiritismo que, pelo contrário, vem confirmar como possíveis e corriqueiras essas interações. O estudo de algumas dessas crenças facilita entender o papel das religiões indígenas na formação de um ambiente propício ao estabelecimento do Espiritismo no Brasil.

Os índios acreditavam em uma entidade que está ligada ao início das coisas, sem ter criado todas as coisas. É o criador do Homem. Embora tenha criado o ser humano, acabou destruindo as primeiras gerações, tendo em vista sua culpa (que ninguém sabe qual é). Após isso, repovoou o mundo, mas mudando sua estrutura física através de incêndios e inundações. No mesmo nível de Monan, havia Maire (transformador), que organizou as coisas da natureza

a seu bel prazer. Estas duas entidades eram na maioria das vezes concebidas em uma só – Maire-monan – “sob o aspecto de um exímio feiticeiro, vivendo num retiro, em jejum e rodeado de adeptos‖. (METRAUX, 1979, p. 2).

À Maire-monan eram atribuídos poderes ilimitados, com domínio sobre a ciência completa dos fenômenos naturais e dos mistérios dos rituais religiosos. Como herói- civilizador, Maire-monan havia organizado a vida social e religiosa dos índios e lhes ensinado o que era bom e o que seria ruim de comer. Era uma entidade sensível, às vezes rancorosa e vingativa, que podia transformar homens em animais, para castiga-los. Vale lembrar que a importância atribuída a Tupã como entidade máxima dos índios é questionável. O que normalmente se encontrou foi a ligação de Toupan com os fenômenos da chuva, mais especificamente com raios, relâmpagos e trovões. ―Tupan está longe, pois, de ser uma noção implicando a ideia de sagrado. É uma espécie de gênio ou demônio, que não era objeto de nenhum culto e ao qual não se dirigia nenhuma prece. A respeito desse último ponto concordam todas as nossas fontes.‖ (METRAUX, 1979, p. 42).

A mitologia tupinambá é farta e fértil. Às vezes confusa. Isso porque para o ocidental com a mentalidade cartesiana, tudo tem que se encaixar perfeitamente, e uma coisa sempre deve estar ligada a outra, numa lógica de causa e efeito. Para os índios, algumas lendas são estanques. Entidades surgem do nada e desaparecem sem deixar explicações de origem e desaparecimento. E não há traumas por isso. Temos, aliás, exemplos semelhantes na religião cristã: Adão, primeiro ser humano teve apenas dois filhos homens, que geraram todo o resto da humanidade.

A criação do universo era entendida pelos índios como consequência de dois eventos principais: uma destruição total que Monan provocou ao incendiar toda a terra, para punir os homens ingratos. Dessa destruição só sobrou Irin-magé, mantido por Monan no céu. Irin- magé suplicou a Monan que restituísse a Terra ao seu estado primitivo. Então Monan fez chover e um grande dilúvio cobriu a terra. Ao se escoarem as águas, os sulcos formaram os rios e o mar, que ficou salgado por causa das cinzas do grande incêndio. Monan deu uma mulher para Irin-magé e juntos deram descendência à humanidade. A destruição da terra pelo fogo e, depois pela água é uma tradição comum a numerosas tribos túpicas. As modalidades e causas desses cataclismos são contadas, algumas vezes, diferentemente, de acordo com as respectivas regiões.

O mito do fogo é mais ou menos recorrente nas diversas tribos. O fogo teria sido roubado pelo sapo, de certas aves (abutres, em algumas tribos) que o protegiam. O sapo, então, o teria dado aos homens. A semelhança entre as diversas tradições está no fato de que o

fogo era propriedade de aves (e, portanto, dos céus) e foi roubado pelos homens com ajuda de entidades ou estratagemas (tocaias, armadilhas, etc.). O fogo entre os índios é elemento de transformação (renovação e destruição) e proteção. Ilumina os espaços à noite e protege contra ameaças de animais; prepara alimentos e armas; espanta os espíritos; e, participa de diversos rituais religiosos.

Os astros do céu, particularmente o sol e a lua têm significados importantes na cosmogonia indígena. Os índios têm nomes diferentes para as estrelas ou grupos delas que são identificados por eles facilmente. Os índios têm uma explicação interessante para os eclipses: contam que no céu existe um enorme jaguar ou cachorro que tenta de vez em quando devorar a lua e o sol. ―Os chiriguanos transmitiam aos chanés o mito de seus antepassados, os guaranis, explicando, do mesmo modo os eclipses como tentativas feitas pelo jaguar de duas cabeças no sentido de devorar a lua.‖ (METRAUX, 1979, p. 35).

Os seres sobrenaturais pelos quais os índios se sentiam cercados eram de duas espécies: entidades do mal e entidades comuns. Às entidades do mal que têm muitas denominações era atribuída a responsabilidade pela maioria das ocorrências indesejáveis: atraso nas chuvas, doenças, perturbações, derrota nas guerras, etc. O nome mais recorrente é o de Yurupari. Ele vive rondando as aldeias abandonadas e os lugares onde estão sepultados os corpos dos seus parentes. A presença dos espíritos era mais percebida à noite. Faziam ruídos, assustavam animais. Podiam ser afastados com o fogo, com o qual eram protegidas as portas das cabanas e os pátios das aldeias.

A convivência dos índios com os espíritos era toda permeada de procedimentos que visavam captar a sua benevolência ou sua neutralidade. Objetos e danças, defumações e rezas tinham o objetivo de evitar que os espíritos lhes fizessem mal, ou que os apoiassem na guerra, no plantio, na caça, etc. Esse fetichismo foi aproveitado pelos padres católicos na aproximação com os indígenas. Usavam a cruz como expediente para espantar maus espíritos. Costume, aliás, presente ainda hoje, nas sessões de exorcismos e na manutenção da proteção de casas, fábricas, estabelecimentos comerciais e embarcações. Católicos usam as cruzes, também, atadas ou penduradas ao corpo, ou costuradas e bordadas nas vestimentas.

Desde que a notícia da eficácia desse símbolo se expandiu entre os habitantes da ilha do Maranhão, os indígenas apressaram-se a enviar delegações aos capuchinhos franceses com o objetivo de suplicar-lhes mandar erigir, em suas aldeias, cruzes, para o fim de pô-los ao abrigo dos ataques de ―Jeropari‖. (Yurupari). (METRAUX, 1979, p. 58).

Uma série de ritos era empregada para a comunicação com os espíritos. Essa comunicação era geralmente de uma mão só, isto é, dos índios para os espíritos. Os índios viam os espíritos sob formas diversas, mas geralmente sob a forma de animais. Por isso identificavam certas espécies, principalmente aves, com a presença de espíritos. Os cantos das aves ou os ruídos que faziam eram associados a uma manifestação espiritual. Em suas práticas desenvolveram formas de satisfazer as necessidades dos espíritos, o que era feito com oferendas de pequenos objetos, plumas, bebidas, etc. Mas havia também a necessidade de alguém que intermediasse ou interpretasse a influencia dos espíritos. Alguém tivesse um poder diferente, mas eficaz para controlar a vontade dos espíritos.

Entre os tupinambás, não era por meio de práticas iniciatórias ou de treinamento que alguém se tornava feiticeiro, mas por inspiração. Em cada tribo havia um número mais ou menos considerável de indivíduos dotados de poder mágico, e capazes de servir-se dessa faculdade. (METRAUX, 1979, p. 65).

A investidura do feiticeiro não era outorgada e permanente. Dependia do sucesso que determinado indivíduo tinha em suas previsões, curas, etc. Os processos, rituais e passes de magia eram do conhecimento de todos, pois que todos observavam essas práticas serem aplicadas pelo feiticeiro. No entanto, conhecer as práticas não quer dizer produzi-las com eficiência. Alguns pajés possuíam ou mostravam possuir uma capacidade melhor de comunicação com os espíritos. Quando percebia isso, seu comportamento mudava. Ficava mais quieto, procurava isolamento, vestia-se diferente. Assumem esse comportamento como para indicar que se entretém mais com os espíritos. Quando eram reconhecidos como possuidores de poderes especiais até pelos outros feiticeiros, recebiam honrarias e presentes, e eram chamados de Pagé-ouässou, ou Caraïbe (santidade ou homem sagrado). É nítida a posição do feiticeiro entre os índios, nos moldes de como os diferencia Bourdieu de um sacerdote, figura que não existe na prática indígena:

Enquanto o profeta afirma sua presença ao exercício legítimo do poder religioso e estregando-se às atividades pelas quais o corpo sacerdotal afirma a especificidade de sua prática e irredutibilidade de sua competência [...] o feiticeiro responde de modo ininterrupto às demandas parciais e imediatas, lançando mão do discurso como se fosse uma técnica de cura (do corpo) entre outras e não como um instrumento de poder simbólico, vale dizer, de prédica ou de ―cura das almas‖. (BOURDIEU, 2005, p. 60) .

O feiticeiro mantinha também seu status através de uma presença amedrontadora. Se fosse bem sucedido, o terror que infundia lhe valia retornos interessantes. Eram recebidos

com cânticos, danças, comidas e tudo o que pudesse lhes satisfazer a vontade. Às vezes eram imputados aos feiticeiros os flagelos sofridos pela tribo, em função de suas ladainhas. Portanto, fazia-se de tudo para se estar bem com o feiticeiro. Um feiticeiro bem sucedido era um ―índio rico‖. Podia pedir qualquer coisa, até mesmo mulheres. Quem recebia o pedido, procurava atendê-lo.

Conta Yves d‘Evreux, que ―um deles, diz-se, possuía trinta [mulheres], cifra jamais atingida pelo mais rico morubixaba‖. (METRAUX, 1979, p. 67). Conta ainda, que os feiticeiros tinham espíritos às suas ordens. Um feiticeiro no Maranhão pretendia ter sob seu serviço um espírito que além de lhe fazer companhia, o ajudava na roça, bastando indicar a ele a extensão do roçado. Não era difícil a comunicação com espíritos familiares. A proximidade do parentesco e não raro a da habitação ―facilitava‖ esse contato. Outras categorias de espíritos eram de trato mais difícil exigindo mais atenção e mais ritos. E aí, entrava de tudo: desde uma cabana nova e jamais habitada, até bebidas especiais, como o cauim, naturalmente, preparadas por uma donzela de dez ou doze anos.

Também para a cura operavam os feiticeiros e sempre pela ação dos espíritos. Quando não conseguiam curar justificavam-se pela oposição dos espíritos. Uma das técnicas, a do sopro, é ainda hoje praticada por muitos médiuns e benzedeiras. ―Assim como seus confrades tupinambás, os feiticeiros apapocuvas e chipaias sopram energicamente o ‗paciente‘ como forma de impregnar o doente de força mágica‖. (METRAUX, 1979, p. 71). Alguns pajés costumavam ouvir as mulheres em confissão. E se alguma se recusasse, ameaçava-a de perseguição por espíritos. Dos maus procedimentos confessados, o pajé as perdoava e dava a elas uma espécie de absolvição.

Conta Manuel da Nóbrega que esse tipo de confissão não era só para os feiticeiros. Antes da vinda de um pajé em visita a alguma aldeia, as mulheres, aos pares, percorriam a aldeia e confessavam umas às outras as faltas que tinham cometido aos seus maridos, pedindo perdão delas. Pajés também usavam a água como ferramenta de purificação coletiva: enchiam grandes potes com água enquanto diziam frases apropriadas e sopravam dentro desses potes fumaça de fumo (petun). Os índios então se untavam com pó e dançavam e durante a dança o pajé aspergia sobre eles parte do conteúdo dos potes. Ao final, todos se lavavam com a água dos potes, inclusive crianças da família.

Os feiticeiros costumavam ―ouvir‖ os espíritos em buracos das árvores ou feitos nas choças. Deitavam-se no chão, com a cabeça enfiada no buraco da choça e então se comunicavam com os espíritos. Era esse para eles um lugar de culto. Pajés também faziam

promessas. Prometiam chuva, alimentos, saúde e fertilidade. Podiam até o que não podiam cumprir: Conta José de Anchieta que:

Cada um desses feiticeiros, a que chamam santidade, buscam uma invenção com que lhes pareça que ganhará mais, porque todo esse é o seu intento, e assim, um vem dizendo que o mantimento há de crescer por si, sem fazerem plantados, e juntamente com as caças do mato se lhes hão de vir a meter em casa. Outros dizem que a velhas se hão de tornar moças e para isso fazem lavatórios de algumas ervas; outros dizem que os que não os receberem se hão de tornar em pássaros e outras invenções semelhantes. (METRAUX, 1979, p. 76).

O trato com o sobrenatural entre os indígenas parecia ser flagrantemente defensivo. Não se percebe nos relatos pesquisados atos amistosos entre índios e seus mortos que pudesse indicar uma amizade ou relacionamento mais carinhoso ou afetivo. Tratava-se de tentar controlar uma presença marcante, mas incômoda. Feiticeiros, no entanto, podiam passar maus pedaços se por acaso suas predições falhassem sem explicação ou se seus remédios falhassem nos resultados. A influência dos espíritos ou sua proximidade era vista como um problema a ser resolvido e seus intermediários, os feiticeiros, igualmente de trato difícil, credores de constantes paparicos e oferendas.

A expectativa, no entanto, era a de que uma vez apaziguada a espiritualidade tudo poderia dar certo. Isso nos remete a pensar que o caminho das soluções dos problemas individuais ou coletivos sempre passa pelo sobrenatural a ser manipulado e satisfeito. Quando as providencias normais não dão certo, os olhares se voltam para as soluções sobrenaturais, particulares, como no caso dos feiticeiros, ou institucionais, como no caso das seitas e religiões.

As práticas funerárias entre os índios são curiosas e extremadas. Quando o índio tinha uma doença que era considerada incurável, a atenção para como ele era... nenhuma! Achavam que como a morte era inevitável, não adiantava mais alimentá-lo ou cuidar dele. No entanto, quando a morte se aproximava e se reconhecia a agonia, tudo mudava. Começava o lamento, o desespero, as mortificações, os autoflagelos e os elogios. Lamentos e elogios eram prerrogativas das mulheres:

Morreu, berravam algumas arrastando a voz, quem era tão valente e tantos prisioneiros nos deu de comer! Era, replicavam outras, no mesmo tom, um bom caçador e excelente pescador! Que bravo matador de portugueses e maracajás, exclamavam as restantes! Como nos vingava! (METRAUX, 1979, p. 106).

Morto o índio, enterravam-no com suas armas e seus utensílios e tudo o que era dele. Eram-lhe devolvidos tudo o que havia dado. Se alguém ficasse com alguma coisa que tivesse

pertencido ao morto temia-se que sua alma, após se separar do corpo viria molestá-lo. Em compensação os objetos que o morto havia recebido dos outros também eram devolvidos. Alimentos e bebidas eram colocados na tumba até que o corpo ficasse todo corrompido. Acreditava-se que entidades espirituais quando não encontrassem comida sobre o morto, o desenterrariam para devorá-lo. Todos eram aconselhados pelo pajé a se lavar após a morte de um membro da tribo, para evitar epidemias. Mulheres se tingiam ou cortavam os cabelos. Homens pintavam-se e deixavam o cabelo crescer. Era o luto! A sobrevivência da alma era então uma crença pacífica. As almas dos antepassados tinham o seu destino, não deixavam de existir. Um chefe tupi, uma vez indagado se acreditava que as almas sobreviviam após a destruição do corpo, respondeu:

Não sabes que, após a morte, nossas almas vão para regiões longínquas, agradáveis e cheias de delícias, onde estão todas reunidas? Não sabes que os nossos caraíbas, conforme nos dizem, as visitam e lhes falam frequentes vezes? E as almas aparecem muito aos nossos filhos? Vejo que não nos acreditas, como se quisesses favorecer aos nossos inimigos. [...] Mas, se queres ser nosso aliado, não duvides do que digo. (METRAUX, 1979, p. 110).

Quando o indivíduo estava vivo, sua alma era chamada de An; a alma dos mortos era chamada de Angouëre, ou Marangigoana. Na beira da sepultura, os parentes e amigos se despediam do morto e faziam recomendações, para que não passasse pelas terras do inimigo, que mantivesse sua fogueira acesa, e estivesse sempre com suas armas ao lado. Uma típica despedida de quem iria fazer uma viagem. Todo tupinambá levava para o túmulo o seu chocalho, para avisar os seus antepassados que havia chegado, quando do encontro com eles, após a jornada rumo ao seu recanto. É comum em muitos povos o costume de dotar seus mortos com artefatos e recursos para que suas almas possam continuar seu destino.

A concepção de paraíso para os índios é também de um lugar onde condições de conforto e ausência de sofrimento representam o céu. No entanto, esse lugar de felicidade não os priva da necessidade de trabalhar, motivo pelo qual deixam junto ao túmulo as ferramentas agrícolas que o morto utilizava em vida para se sustentar. Mas havia restrições: ―a alma dos efeminados e das pessoas insignificantes, que não porfiaram em defender o seu país‖. (METRAUX, 1979, p. 112). Para as almas das mulheres era difícil atingir esse lugar. Só a ―mulheres virtuosas‖ isto é, aquelas esposas dos bravos guerreiros que haviam morto e devorado muitos inimigos.

A cosmogonia das religiões indígenas é, portanto, tecida de mitos e práticas em que o sobrenatural está sempre presente. E esse sobrenatural tem nomes, tem lugares, tem costumes.

A noção de espíritos, vida após a morte, influência das almas dos antepassados já era comum entre os índios do Brasil, desde os primeiros registros de contato com o homem branco. Ao conviver com esses mitos e práticas descendentes de brancos e índios carregaram para o universo de suas convicções conceitos que iriam compor um padrão comum na religiosidade brasileira.