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1.1 Economia solidária: breve conjuntura histórica

1.1.2 Os frutos das ideias socialistas: a projeção da EcoSol a partir da

incongruência delegar para o Estado o papel de gerir os meios de produção, embora não se deva minimizar a importância do poder público para regular e fomentar cadeias produtivas mais justas e modos produtivos não-exploratórios.

1.1.2 Os frutos das ideias socialistas: a projeção da EcoSol a partir da formação de redes sociais

A partir da premissa de que a análise econômica das relações produtivas não é suficiente para explicar fenômenos sociais complexos, ganhou projeção o Movimento Antiutilitarista nas Ciências Sociais, cuja sigla é MAUSS, em homenagem a sua

4 Políticas redistributivas têm por escopo a realocação de bens, direitos ou serviços entre grupos sociais,

por diversos meios, tais como transferências, isenções etc., por intermédio de recursos oriundos de outros grupos específicos (LOWI, 1972).

principal referência teórica, o antropólogo Marcel Mauss. Este teórico deixou como legado central para a sociologia a ideia de que “o valor das coisas não pode ser superior ao valor das relações” (MARTINS, 2005, p. 45). Tal movimento foi iniciado na década de 1980, durante um colóquio no Centro Thomas-More, em Arbresle, na França, fruto da expansão moderna do capitalismo e suas imposições normativas às relações intersubjetivas. Neste encontro, Alain Caillé questionou a recorrência de um discurso utilitarista dominante em torno do “interesse” - consciente e racional para uns, subconsciente para outros - que imperava nas disciplinas das ciências sociais, de modo a reduzir invariavelmente as interações humanas a uma lógica econômica e quantitativa. Ele reconhece que o interesse é um dos motivos para a ação social, mas critica que ele deva ser uma referência constante para explicar todos os fenômenos sociais (BATALHA, 2015), porque os fenômenos sociais não se explicam a partir da mesma perspectiva que é aplicada aos mercados.

Segundo Caillé (2011),

o principal problema que se abate sobre nossas sociedades não é apenas a privatização generalizada, a submissão de todas as esferas de atividade a uma norma mercadológica e financeira hegemônica, mas, no turbilhão desta omnimercantilização e omnifinanceirização, a subordinação de todos os nossos atos a uma lógica da avaliação quantificada.

O Movimento Antiutilitarista nas Ciências Sociais assumiu, assim, o objetivo de difundir ideias contrárias ao pressuposto de que “o Homo economicus é um modelo explicativo de toda ação humana”. O intuito era estimular e valorizar análises combinadas de perspectivas sociológicas, históricas, antropológicas, filosóficas e econômicas, para a interpretação conjuntural das ações sociais. Buscou-se, assim, instigar um pensamento "antiutilitarista", a partir da hipótese de que o ser humano não foi sempre um animal econômico. O Homo economicus seria, portanto, um produto da modernidade capitalista, que estabeleceu a monetarização como um padrão dominante de avaliação dos mais variados acontecimentos. Este movimento, inclusive, vem adquirindo projeção na América Latina, sobremaneira ao servir como fundamento teórico para estudos sobre a prática de formas alternativas de economia (Caillé, 2011).

Ao assimilar esta perspectiva, a França incorporou a ideia de que era importante o desenvolvimento de uma economia baseada também em parâmetros sociais e humanos. A economia solidária agrupa-se em torno da rede Inter-Réseaux de

l’Économie Solidaire (IRES), movimento que conquistou, entre os anos de 2000 e 2002,

uma secretaria de Estado ligada ao Ministério do Trabalho, no governo de Lionel Jospin. Na Itália, a discussão sobre a economia solidária aparece “[...] muito ligada aos setores médios da sociedade e aos movimentos ecologistas” (NUNES, 2009, p. 97). Neste país, destacam-se as Cooperativas de Mutua Auto Gestione (MAG), que surgem nos anos 1980 promovendo a realização de feiras de EcoSol, com o apoio das prefeituras locais, além dos movimentos sociais e da sociedade civil organizada. Em Milão, sabe-se que é mantida uma feira permanente (La Cosa Giusta), assim como acontece em Roma e Trentino. Na Alemanha, diferentemente do que acontece em outros países europeus, trabalha-se com um conceito de economia social que engloba, além da economia popular, a economia comunitária e iniciativas ligadas ao terceiro setor.

Em 2006, foi realizado o Congresso Alemão de Economia Solidária (NUNES, 2009), como expressão dessas várias iniciativas. Os formuladores alemães da EcoSol, assumiram a designação geral de economia social. Na Espanha, em 2006, cria-se uma rede que comporta um grande número de entidades organizadas em várias pequenas redes, mas que abrangem várias regiões do país, formando uma “rede de redes”.

Essa rede espanhola, na tentativa de ser eficiente e ter popularidade na sociedade, firmou convênios e parcerias com instituições de ensino superior, sendo que, na Universidade do País Basco (UPV), situada na cidade de Bilbao, é realizado anualmente o Seminário “Transformando a Sociedade a partir da Economia Solidária”. Em Portugal, criou-se a Rede de Economia Solidária e Sustentável. A rede portuguesa fornece apoio aos que comungam dos princípios da economia solidária, até as redes de cooperativismo tradicional, além de milhares de militantes ecologistas que se unem em torno da causa da EcoSol.

As experiências encontradas no continente europeu sugerem, mesmo diante de divergências políticas e de variações conceituais e terminológicas em relação ao tema, que o trabalho em rede na Europa está evoluindo e afirmando-se como uma maneira de evitar o isolamento dos empreendimentos econômicos solidários (EEEs), bem como a concorrência entre eles. A integração dos empreendedores vem sendo entendida como uma alternativa viável de organização social, o que progressivamente contribui para fortalecer o ideal de construção de uma economia baseada em vínculos de solidariedade, embora se reconheçam os desproporcionais e vultosos investimentos públicos e privados em empreendimentos que assumem a lógica capitalista, concorrencial.

Manuel Castells (2000), ao se dedicar ao estudo das redes sociais disseminadas a partir do colapso do estatismo soviético e da reestruturação do capitalismo, percebe que a revolução tecnológica trás em seu bojo um novo paradigma para as relações sociais. As tecnologias da informação e da comunicação transformariam a economia e as relações em nível global, instituindo o que ele denomina de “sociedade da informação” – na qual a geração, processamento e transmissão das informações são fontes fundamentais de produtividade e poder. Segundo ele, “pela primeira vez na história, a mente humana é uma força direta de produção, não apenas um elemento decisivo no sistema produtivo” (CASTELLS, 2000, p.51).

O desenvolvimento de novas tecnologias, segundo Castells (2000, p. 69), aliada à tentativa da sociedade de reaparelhar-se com o uso do poder da tecnologia aumentou a complexidade das interações sociais e fez surgir uma sociedade em rede. Esta organização humana disposta em arranjos sociais particulariza-se por sua plasticidade, decorrente de sua dimensão virtual, que transcende à noção de tempo e espaço.

Instituiu-se, assim, uma nova configuração da divisão social das relações sociais, inclusive uma nova configuração para as relações laborais, pois é cada vez mais temerário agir isoladamente, ainda que as interações não sejam físicas. Os indivíduos, nessa situação, tendem a se reunir em grupos que são, ao mesmo tempo, coexistentes, sobrepostos e interconectados, compondo redes dinâmicas de variadas complexidades, formando o que Marshall Macluhna denominou de uma “aldeia à escala global”.

Nesse sentido, com base no pressuposto de que “as redes possibilitam pensar a reciprocidade numa perspectiva sociológica de mais longo alcance” (RADOMSKY, 2006, p. 85), difundiu-se, tal como ocorrera na Europa, a ideia de construção de um desenvolvimento econômico baseado em alianças. Tal recurso seria uma estratégia de fortalecimento para enfrentar as crises econômicas, que também passaram a assumir proporções globais. Fusões, incorporações e demais formas de agrupamentos passaram a ser táticas comuns mesmo entre aquelas empresas que assumem uma lógica capitalista, via formação de megablocos transnacionais.

Vários fóruns internacionais passaram a discutir a importância para a EcoSol do trabalho em rede, tal como os Fóruns Internacionais – Globalização da Solidariedade, ocorridos desde 2005, organizados pela Rede Intercontinental de Promoção da Economia Social e Solidária (RIPESS). Tanto entre os ditos “países desenvolvidos”, como também entre os denominados de “economia periférica” ou “emergentes” recorreu-se à formação de blocos produtivos. Há, entretanto, configurações

diametralmente opostas nesses agrupamentos: de um lado, grandes empresas transnacionais (capitalistas), que se unem para diminuir custos da produção por meio da terceirização precária e da subcontratação extorsiva de empresas localizadas em países periféricos; de outro, estruturação de redes solidárias de articulações produtivas, calcadas nos princípios da cooperação, equidade, reciprocidade e no respeito ambiental. Com a organização destas redes de solidariedade produtiva, vários países da América Latina têm avançado nas discussões teóricas, políticas e nas práticas de EcoSol.

A formação de redes de economia solidária se centra basicamente em dois pressupostos: o primeiro, de que a marginalização derivada da propagação das ideais capitalistas de acumulação e exclusão atrofia a capacidade de realização (SEN, 2009) inata aos indivíduos; o segundo, de que o agrupamento produtivo baseado em lógicas de cooperação pode gerar um modo de produção que reconfigure a vida social a partir de parâmetros socioambientais mais justos, evitando o fomento a relações concorrenciais e o isolamento econômico decorrente da concentração de renda. A Ecosol, portanto, objetiva viabilizar um desenvolvimento alternativo, baseado na expansão das liberdades reais imanentes à condição humana (SEN, 2009).

Esta perspectiva vem começando a servir de referência para a elaboração de ações, políticas e demais iniciativas, públicas ou privadas, para a promoção e fruição de garantias básicas em favor, pelo menos, da maioria da população mundial, embora os Estados nacionais ainda não encarem a EcoSol como uma estratégia prioritária de desenvolvimento alternativo.

Ao contrário do que se espera, porém, a insuficiência do Estado liberal, o inchaço da estrutura pública do Estado de bem-estar social e a abertura desregrada do Brasil mediante incentivos fiscais ao mercado externo proposta pelo Estado neoliberal, em meio a retrocessos e avanços, não promoveram justiça social de modo sustentado, especialmente em relação ao combate à degradação dos recursos naturais e à desigualdade de gênero. É forçoso reconhecer, porém, que as experiências sociais redistributivas, inclusive em favor das mulheres, ao menos no Brasil, têm prosperado mais em governos que ampliaram os espaços de participação institucional dos movimentos sociais, assimilando as suas respectivas demandas e intervindo mais diretamente na economia e na vida social, conferindo maior legitimidade e espaço de participação a grupos sociais tradicionalmente vulnerabilizados.

Santos (2011, p. 79) chama a atenção para a necessidade de construção de um Estado-articulador que, ao contrário do Estado moderno - que assegurou interesses de

grupos específicos em nome do interesse geral, seja capaz de coordenar, de forma transparente, interesses distintos, locais, regionais, nacionais, globais. Desse modo, seria perceptível “a qualidade do compromisso do Estado com os objetivos de justiça social, ou seja, com os critérios de redistribuição (contra a desigualdade) e de reconhecimento (contra a discriminação)” (SANTOS, 2011, p. 79).

Para tanto, há de se recorrer à alternativas de desenvolvimento que contem com uma disposição pública de expansão das liberdades substantivas que cada indivíduo desfruta na sociedade (SEN, 2000, p. 32); de uma estrutura institucional capaz de auxiliar na estabilização do usufruto de direitos básicos, transformando os indivíduos em cidadãos. Dando os primeiros passos para assimilar estas perspectivas, diante das pressões dos movimentos sindicais, pastorais e sociais, o Estado brasileiro, especialmente entre os anos de 2003 e 2016, instituiu na sua estrutura órgãos voltados para organização de políticas de EcoSol, na intenção de prestigiar a busca por alternativas que gerem empoderamento à população via geração de renda, o que contribuiu significativamente para a criação e organização de grupos e redes de economia solidária no Brasil.