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Os instrumentos legais e a atividade museológica na preservação do patrimônio

No documento Anais da Semana dos Museus da UFPel: 2019 (páginas 45-49)

Pode-se afi rmar que a cidade de Pelotas construiu um acervo de bens imóveis, composto pelos patrimônios arquitetônico e urbano, além de diversos bens móveis, que documentam os períodos socioeconômicos mais produtivos da cidade, muitos deles reconhecidos e salvaguardados desde a esfera municipal até a federal. Alguns exemplos do tombamento federal são o Teatro Sete de Abril, de 1834; a Caixa d’agua, de 1875, situada na Praça Piratinino de Almeida; e as Casas 2, 6 e 8, no entorno da Praça Coronel Pedro Osório, construídas por volta de 1880. Recentemente as Praças José Bonifácio, Coronel Pedro Osório, Piratinino de Almeida, Cipriano Barcelos e o Parque Dom Antônio Zattera, conjuntamente com a Charqueada São João e a Cháca- ra da Baronesa foram reconhecidas como Patrimônio Cultural Brasileiro.

Percebe-se um amplo reconhecimento, desenvolvimento de políticas de preser- vação e divulgação dos bens patrimoniais luso-brasileiros e ecléticos, oriundos do pe- ríodo charqueador. Os museus cumprem uma função essencial neste sentido, desen- volvendo projetos que garantem a preservação, a comunicação e a pesquisa a cerca do conhecimento sobre esses bens. Dentre os museus voltados para a referida temá- tica tem-se o Museu Parque da Baronesa, a Charqueada Santa Rita, e o Casarão 8.

Não resta dúvida sobre a importância desse período para a formação e a con- solidação do espaço urbano da cidade, além da construção de um patrimônio cultu- ral diversifi cado. Porém, a desconsideração sobre o período da industrialização, que ocorreu desde a segunda metade do século XIX até meados do século XX, limita a compreensão da dimensão do patrimônio cultural de Pelotas. De acordo com o arque- ólogo José Luiz de Morais, do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo:

O Brasil não desenvolveu uma cultura de preservação industrial. [...] Para a maioria da população, construção de valor histórico ainda é aquela de estilo arquitetônico antigo ou que teve algum dia um uso cultural ou social relevante. Como as fábricas e o mundo do trabalho jamais desfrutaram aqui dessa aura de no- breza, a preservação dos espaços fabris sempre foi vista como algo secundário [...] (MAWAKDIYE, 2003).

Analisando a evolução dos conceitos de patrimônio cultural e das práticas de sal- vaguarda desses patrimônios, podemos afi rmar que o reconhecimento do patrimônio industrial é muito recente, surgindo após a segunda guerra mundial. Nesse momento dá-se conta das perdas signifi cativas devido à destruição de diversas fábricas, ao mesmo tempo em que se iniciam transformações tecnológicas, vindo a substituir os antigos sistemas produtivos. Uma carta patrimonial, voltada para a salvaguarda deste tipo específi co de patrimônio surge somente em 2003, após conferência do TICCIH – The International Committee for Conservation of the Industrial Heritage em Nizhny Tagill, na Rússia. Infelizmente, devido à recente conscientização sobre os valores contidos nesse tipo de patrimônio, muitas perdas ocorreram, sejam por arruinamentos naturais, descaso ou por demolições intencionais. Para Rodrigues (2010), o IPHAN foi pioneiro em tombar, em 1963, as Ruínas do Engenho de São Jorge Erasmos, lugar de fabricação do principal produto de exportação da Colônia, o açúcar, e em 1964, a Real Fábrica de Ferro de Ipanema, datada de 1810, mesmo sem haver uma política ou diretrizes sistemáticas para o tombamento de bens industriais.

Em Pelotas, diversos prédios que abrigaram antigas fábricas, localizados no bair- ro Porto, foram contemplados pelas ações de preservação através das leis municipais nº 4.568/2000 que institui as Zonas de Preservação do Patrimônio Cultural (ZPPCs) e o inventário dos bens representativos da arquitetura pelotense, pelos decretos nº 4.490/2003 e 4.703/2004. Os imóveis foram enquadrados no nível de preservação II – Nível 2, defi nido pelo Art. 69 do III Plano Diretor de Pelotas como:

II - Nível 2: Inclui os imóveis componentes do Patrimônio Cul- tural que ensejam a preservação de suas características

arquitetônicas, artísticas e decorativas externas, ou seja, a pre- servação integral de sua(s) fachada(s) pública(s) e volumetria, as quais possibilitam a leitura tipológica do prédio. Poderão so- frer intervenções internas, desde que mantidas e respeitadas suas características externas. Sua preservação é de extrema importância para o resgate da memória da cidade (III Plano Di- retor de Pelotas).

Desde fi ns dos anos 90 do século XX, vem se desenvolvendo em Pelotas a tendência de reutilização dos antigos prédios industriais para fi ns institucionais, princi- palmente pelas duas instituições de ensino federal, Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e o Instituto Federal Sul-rio-grandense (IF-Sul). Ocorre que no processo de projeto e execução para a reutilização dessas antigas fábricas foram desconsidera- das as plantas internas dos prédios, bem como diversas estruturas que compunham a estética industrial.

Um exemplo foi o caso do Frigorífi co Pelotense – Anglo S.A. que atualmente abriga setores acadêmicos e administrativos da UFPel, e que teve sua estrutura inter- na demolida e maquinário descartado.

Figuras 01 e 02 - Enquadramento de conjunto – Frigorífi co Pelotense – Anglo S.A. Relação entre o espaço interior e seu maquinário.

Figuras 03 - Espaço externo – Frigorífi co Pelotense – Anglo S.A. Descarte do maquinário durante reforma do prédio.

Foto: Paulo Momento, 2009.

Dentre as recomendações feitas pela carta patrimonial de Nizhny Tagil para a preservação do patrimônio industrial tem-se:

A conservação do patrimônio industrial depende da preserva- ção da sua integridade funcional, e as intervenções realizadas num sítio industrial devem, tanto quanto possível, visar à manu- tenção desta integridade. O valor e a autenticidade de um sítio industrial podem ser fortemente reduzidos se a maquinaria ou componentes essenciais forem retirados, ou se os elementos secundários que fazem parte do conjunto forem destruídos (TIC- CIH, 2003, grifo nosso).

Observa-se que há uma incompatibilidade entre o nível de preservação II – Nível 2, defi nido pelo Art. 69 do III Plano Diretor de Pelotas, e o instrumento de preservação mundial, carta patrimonial de Nizhny Tagil. Enquanto a carta se preocupa com a inte- gridade funcional e autenticidade do conjunto, os instrumentos locais se preocupam apenas com as características externas, autorizando intervenções internas, mesmo que isso acarrete em perdas signifi cativas para a compreensão deste tipo específi co de patrimônio. A manutenção do conceito original da obra1 vai ao encontro de outra

1  No conceito original da obra estão presentes a integridade funcional (Carta Nizhny Tagil,2003) e a “unidade potencial”, que de acordo com Brandi, signifi ca a singularíssima unidade da qual goza a obra, pela qual sua forma é concebida como indivisível, não podendo ser considerada como composta por partes, e devendo subsistir potencialmente como um todo (BRANDI, 2004, pg.41-51).

A teoria brandiana caracteriza-se como “restauro-crítico” e envolve a análise e o reconhecimento da obra nos seus aspectos físico e formais, de sua transformação ao longo do tempo, acordando a in- tervenção junto às instâncias estéticas e históricas, com o intuito de valorizar e transmitir a obra ao futuro.

recomendação feita pela carta de Nizhny Tagil ao mencionar que “As novas utiliza- ções devem respeitar o material específi co e os esquemas originais de circulação e de produção, sendo tanto quanto possível compatíveis com a sua anterior utilização” (TICCIH, 2003).

De acordo com a carta, os elementos móveis e imóveis pertencentes ao cotidia- no de trabalho da fábrica, como maquinário e outras estruturas específi cas, caracteri- zam o seu acervo documental, e sua preservação garante a legibilidade do processo produtivo e a compreensão do conteúdo da obra. Essa recomendação funciona de forma análoga à proposta desenvolvida pela instituição museológica conhecida como “museu-casa” (CHAGAS, 2002) que proporciona suas atividades através da relação entre seus bens móveis e imóveis, ou seja, os elementos arquitetônicos que defi nem o espaço também dão suporte aos objetos de uso cotidiano pertencentes ao lugar, e juntos se complementam dando coerência à narrativa da obra, integrando assim o acervo documental desse tipo de museu.

No documento Anais da Semana dos Museus da UFPel: 2019 (páginas 45-49)