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CAPÍTULO II Instrumentos do Estatuto da Cidade com potencialidade para

2.1 Os instrumentos urbanísticos em prol da preservação patrimonial

A elaboração da legislação urbanística no Brasil parte do contexto do final da década de 1970. Como aponta Amorim (2012, p. 32):

Vale notar que a preocupação do poder público face aos problemas advindos da falta ou do mau planejamento das cidades inicia-se, em fins da década de 1970, por meio de constantes pressões da sociedade civil organizada, incluindo profissionais da área de arquitetura e urbanismo, engenheiros e geógrafos, além de outros movimentos. Arquitetou-se, a partir de então, o Movimento Nacional pela Reforma Urbana (MNRU), responsável pela direção e organização dos processos de estudo, sistematização de propostas e pressões ao Estado.

O impulso dado pela participação da sociedade nas reivindicações advém, em grande parte, da insatisfação frente aos inúmeros problemas sociais, culturais e econômicos a partir do crescimento acelerado e desordenado do processo de urbanização nas décadas de 1960 e 1970; contexto esse não exclusivo do Brasil, mas de abrangência mundial, principalmente em países à época considerados em desenvolvimento. Porém, no que tange especificamente à situação brasileira, tal processo, de intensa urbanização, como constata Fernandes (2006, p. 7):

[...] provocou mudanças drásticas na sociedade brasileira – mudanças socioeconômicas profundas, mudanças territoriais, culturais e ambientais -, se desenvolveu sem uma base jurídica adequada. Ao longo do século XX, havia um descompasso enorme entre a ordem jurídica em vigor e os processos socioeconômicos e territoriais [...]. Ou seja, todo o processo de crescimento das cidades brasileiras se deu sob o paradigma jurídico do civilismo clássico, que não correspondia às necessidades de enfrentamento desse fenômeno multidimensional, complexo e com tantas implicações profundas que levou à transformação de um país de base agrária exportadora em um país de base urbano-industrial.

A Constituição Federal de 1988 é a materialização do início de pensamento do planejamento urbano mais consistente, diante de toda a problemática advinda do contexto mencionado anteriormente4. Nesse sentido, estipula o plano diretor como

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Para melhor compreensão de tal contexto e de como o processo de urbanização vem sendo alterado a partir da década de 1990, recomenda-se o trabalho da professora Dra Ermínia Maricato, intitulado “Informalidade urbana no Brasil: a lógica da cidade fraturada”, posfacio do livro A cidade de São Paulo: relações internacionais e gestão pública, organizado por Luiz Eduardo Wanderley e Raquel Raichelis, de 2009.

instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana; e, ao mesmo tempo, limita a obrigatoriedade da elaboração desse instrumento a municípios que possuam uma população superior a 20.000 (vinte mil) habitantes – visto que busca solucionar contextos urbanos de grande complexidade, nos quais os impactos da expansão desordenada são intensos e recaem direta e significativamente nas questões socioambientais. É, ainda, a constatação de que os interesses coletivos se sobrepõem aos interesses individuais, quando de maneira justa. Tal fato recai, então, sobre a propriedade urbana e sua função social.

Os artigos 183 e 184 da Constituição são regulamentados no Congresso Nacional após mais de dez anos de discussões e negociações, a partir da aprovação do Estatuto da Cidade, em 2001. Maricato (2010, p.5) ressalta que este último, na forma da Lei no 10.257,

[...] trata de reunir, por meio de um enfoque holístico, em um mesmo texto, diversos aspectos relativos ao governo democrático da cidade, à justiça urbana e ao equilíbrio ambiental. Ela traz à tona a questão urbana e a insere na agenda política nacional num país, até pouco tempo, marcado pela cultura rural.

A construção do conteúdo do Estatuto se baseia em conceitos pilares da Constituição, que visam à democracia e a justiça social. Interessa-nos os seguintes:

a) Função social da propriedade:

A Constituição de 1988 institui no art. 5º, inciso XXIII que a propriedade atenderá a sua função social. Ainda, segundo Miranda (2012, p.272), “[...] estatui como princípio norteador da ordem econômica (que tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social) função social da propriedade (art.170, III)”. Importante ressaltar que o cumprimento da função social da propriedade quando na preservação patrimonial está previsto, também, no Código Civil, em seu art. 1228, parágrafo 1º, o qual prescreve que:

O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas.

É, portanto, um conceito que esclarece a sobreposição dos direitos coletivos sobre os direitos privados. É a concretização do bem comum. Nesse enfoque ressalta-se que o patrimônio edificado é um bem público, ou, bem comum.

b) Interesse social:

Sinônimo de interesse coletivo, remete a direitos difusos. O reconhecimento da função social da propriedade é a maneira política de também reconhecer a importância da coletividade, em face da individualidade. Presume-se, assim, que o interesse coletivo deve ser aquele que propicia qualidade e dignidade de vida a uma comunidade, ou, pelo menos, a maioria das individualidades.

c) Gestão democrática:

É a oficialização do que se denomina democracia – governo do povo. Não mais apenas pela eleição de representatividades públicas, mas a possibilidade de atuação que parte da própria sociedade. Abertura de espaço político formal para intervenções reivindicadas pela população, controle da atuação dos representantes eleitos, fiscalização na aplicabilidade das ações prenunciadas, atuação no destino da arrecadação municipal, atuação na formulação de planos e proposição de leis, dentre outras formas de participação ativa na gestão pública.

d) Autonomia municipal:

Com o objetivo de conduzir a forma mais eficaz e justa de desenvolvimento urbano dos municípios brasileiros, a descentralização desse tipo de competência remete a um contexto histórico no qual o abuso da ditadura militar – entre o período de 1964 a 1985 – centralizava a política urbana, bem como todas as outras, como, por exemplo, a política cultural. Soma-se a isso a construção do patrimônio a ser preservado e os modos pelos quais seriam realizados tais procedimentos. A partir da Constituição de 1988 e do Estatuto da Cidade, aos municípios é dado um conjunto de diretrizes gerais, que por sua vez, devem ser adequadas às realidades locais, a partir de leituras e estudos técnicos, que devem ser desenvolvidos pela própria gestão municipal. Maricato (2010, p. 6) faz a seguinte observação:

É no município, por meio do Plano Diretor ou legislação complementar, que serão definidos os conceitos de propriedade não utilizada ou subutilizada e que serão gravadas, em base cartográfica, as propriedades a serem submetidas a sanções de instrumentos previstos no Estatuto da Cidade. É no município ainda que serão definidas as parcerias público-privadas, as operações urbanas, a aplicação de um grande número de instrumentos jurídicos e fiscais entre outras iniciativas. A autonomia municipal no tratamento do tema é, portanto, muito grande na legislação brasileira. Dependendo da correlação de forças no município a lei poderá ter aplicação efetiva ou não.

No caso da preservação do patrimônio edificado a autonomia municipal permite a liberdade de construção de uma identidade local. Os bens de interesse de preservação não são, necessariamente, exemplares nacionais. Em tese, devem ser identificados a partir da gestão democrática da cidade, com seus valores singulares e específicos.

Porém, diversos municípios não conseguem administrar sua autonomia. Ou seja, não conseguem eleger e implementar os instrumentos adequados ao seu contexto urbano local. Isso ocorre, muitas vezes, por falta de corpo técnico adequado e, principalmente, pelas forças políticas pautadas em dar prioridades a soluções que contemplam uma pequena parcela da população, contribuindo para a manutenção, quiçá, aumento da segregação socioespacial. Talvez esse seja um dos maiores paradoxos da legislação urbanística brasileira. Nesse sentido vale observar o esforço pelo IPHAN e órgãos estaduais, em prover encontros, debates, incentivos e demais ações voltadas ao acompanhamento, consultoria e implementação da política de preservação em municípios que possuem sítios históricos e ainda não sabem conduzir essa questão.

Para a preservação cultural, em específico, o Estatuto da Cidade inclui em suas diretrizes gerais, no art. 2º, o inciso XII que institui como uma delas a “proteção, preservação e recuperação do meio ambiente natural e construído, do patrimônio cultural, histórico, artístico, paisagístico e arqueológico”. Miranda (2012) expõe que esse fato implica em duas repercussões. A primeira diz respeito à obrigatoriedade, um dever indeclinável, por todos os Estados e Municípios, de considerarem na feitura de suas legislações a proteção, preservação e recuperação do patrimônio cultural brasileiro. Explicita, ainda, que são normas específicas e particulares. A segunda diz respeito à importância desta diretriz como “[...] marco referencial para a prática válida de atos administrativos [...]” (Miranda, 2012, p. 271). Por essa lógica, não há como aceitar alegação de discricionariedade, ou seja, práticas administrativas que atinjam o patrimônio de modo a expor a situações de ameaças ou lesões.

Portanto, o pleno desenvolvimento urbano, com planejamento e ordenamento, necessita, também, de estratégias preservacionistas. Para alcançar tal objetivo, faz- se necessário implementar instrumentos urbanísticos do Estatuto na política urbana local municipal. Dentre todos, há os diretamente vinculados à proteção – no caso do

tombamento – e à compensação financeira de propriedades privadas limitadas pela proteção – transferência do direito de construir. Os demais são contribuintes indiretos, mas não menos importantes. Alguns com potencialidades mais aguçadas. Outros apenas com uma complementaridade indireta, mas que, ainda assim, aperfeiçoam a aplicabilidade da estratégia.