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3 CONSTRUCTO TEÓRICO: ISD, REPRESENTAÇÃO E METÁFORA

3.4 Os mecanismos enunciativos

Segundo Bronckart (1999, 2006), os mecanismos enunciativos contribuem para o estabelecimento da coerência pragmática (ou interativa) do texto: esclarecem os posicionamentos enunciativos (quais são as instâncias, as vozes que aí se expressam) e traduzem, através das modalizações, as diversas avaliações (julgamentos, opiniões, sentimentos) formuladas a respeito de algum aspecto do conteúdo temático. Chamados também de mecanismos configuracionais – em oposição aos sequenciais, visam a orientar a interpretação do texto por seus destinatários (BRONCKART, 1999). Esses mecanismos explicitam tanto as avaliações, quanto suas próprias fontes (vozes). Eles incluem, portanto, a análise de dois aspectos: a marcação das modalizações e a distribuição das vozes e, embora distintos, convergem para os mesmos resultados, ou seja, a responsabilização do que se enuncia. A apreensão de tais mecanismos, tanto na leitura como na produção de textos, torna-se imprescindível, visto que é:

[...] uma oportunidade de se tomar conhecimento das diversas formas de posicionamento e de engajamento enunciativos construídos em grupo, de se situar em relação a essas formas, reformulando-as, o que faz com que esse processo contribua, sem duvida alguma, para o desenvolvimento da identidade das pessoas. (BRONCKART, 2006, p. 156).

Nos termos de Bronckart (1999, p. 325), “posicionamento enunciativo” significa

“diversos mecanismos sutis”. Anteriormente, esses mecanismos eram analisados somente em

relação aos discursos narrativos; hoje, já percebemos uma ampliação dessa análise para outros tipos de discursos. Assim, em um primeiro momento, é o autor (agente produtor do texto) que assume a responsabilidade enunciativa, tendo em vista aquilo que foi enunciado; por sua vez, em determinadas condições, esse agente poderá atribuir a outras pessoas (terceiros) a responsabilidade enunciativa. Nessa configuração, encontram-se as vozes – entidades que

assumem (ou às quais são atribuídas) a autoria do que é enunciado no texto. Esse engajamento enunciativo contém traços subjetivos (afetivos ou avaliativos) que articulam o enunciado à realidade extralinguística, no contexto de uma dada situação de comunicação.

3.4.1 As vozes no discurso

A abordagem de Bronckart (1999, p. 150) para os mundos discursivos ancora-se na continuidade dos trabalhos de Benveniste e Weinrich. Partindo das concepções desses estudiosos, constrói sua própria abordagem tendo como objetivo descrever, de um lado, os mundos ou planos deenunciação, bem como as operações psicológicas em que se baseiam e, por outro, as configurações de unidades linguísticas “que traduzem” esses mundos em uma língua natural.

Como vimos, apesar de aparentemente ser o autor empírico, aquele responsável pela escolha do gênero, isto é, por aquilo que é dito, não podemos desconsiderar que “a atividade de linguagem, devido à sua própria natureza semiótica, baseia-se, necessariamente, na criação de

mundos virtuais” (BRONCKART, 1999, p. 151). Do mesmo modo, tem-se, de um lado, o mundo

representado pelos agentes humanos (neste se inclui o autor empírico) – o mundo ordinário – e do outro, o mundo virtual criado pela atividade de linguagem – o mundo discursivo.

Apesar das representações mobilizadas pelo autor, na hora de empreender uma ação de linguagem, localizarem-se no mundo ordinário (real), é no mundo discursivo (virtual) que se processam as operações de responsabilização enunciativa. Nesse aspecto, a voz do autor é

“apagada” e substituída por uma instância geral de enunciação, que, para Bronckart (1999), seria

o textualizador – a voz “neutra”, que pode se configurar em narrador, quando o discurso mobilizado for da ordem do narrar; e expositor, quando consistir na ordem do expor.

Nessa visão, os tipos de discurso são definidos no quadro do ISD como “formas de organização linguística, em número limitado, com os quais são compostos, em diferentes modalidades, todos os gêneros” (BRONCKART, 1999, p. 250). Esses tipos são: discurso interativo, discurso teórico, relato interativo e narração. Nessa perspectiva, “as vozes podem ser definidas como as entidades que assumem (ou às quais são atribuídas) a responsabilidade do que

é enunciado” (BRONCKART, 1999, p. 326). Como normalmente é a instância geral da

enunciação que assume o enunciado, essa pode colocar em cena outras vozes (secundárias), como:

a) voz do autor empírico do texto: voz que procede da pessoa que está na origem da produção textual e que intervém, como tal, para comentar ou avaliar alguns aspectos do que é enunciado. É a voz que cria os mundos discursivos do texto; b) vozes de personagens: vozes de seres humanos ou de instituições implicadas

na qualidade de agente, no percurso temático do texto:

Segmentos de texto na 1ª pessoa gramatical: fusão do narrador/expositor e da voz que põe em cena. Nesse caso, o narrador assume, de algum modo, seu personagem;

Segmentos de texto na 3ª pessoa gramatical: manutenção da distinção entre narrador/expositor e a voz secundária posta em cena.

c) vozes sociais: vozes de outros personagens, grupos ou instituições sociais que não intervêm como agentes no percurso temático de um segmento textual, mas que são mencionadas como instâncias externas de avaliação de alguns aspectos desse conteúdo temático.

Ao considerar que a distribuição das vozes no texto – a partir do conteúdo temático – visa “fazer visíveis” as instâncias responsáveis pelo que é proferido (dito, pensado, expresso), Bronckart (2006, p. 149) cita, ainda, duas formas de expressão das vozes: de um lado, as vozes diretas, presentes nos relatos dialogados (nos turnos de fala) e, portanto, sempre explícitas; por outro, as indiretas, contidas em qualquer tipo de discurso – geralmente implícitas – necessitando de uma maior atenção para sua identificação e inferidas somente durante a leitura do texto.

Quanto à polifonia das vozes em um texto, esta se traduz pela presença de várias e distintas vozes a se fazer ouvir, de maneira que podem referir-se a vozes de um mesmo estatuto (diferentes vozes sociais ou de personagens), ou então de combinações de vozes de estatuto diferentes (voz do autor, de um personagem, voz social etc.), havendo, por conseguinte, múltiplas combinações polifônicas (BRONCKART, 1999, p. 329).

Com base nas concepções delineadas, notamos que a análise do gerenciamento das vozes é de fundamental importância nesta pesquisa, pois é ela quem nos permitirá verificar as vozes que se expressam no texto ao traduzirem opiniões, sentimentos, comentários e avaliações, assim como investigar se o professor é o autor empírico de seu próprio texto, agente da ação da linguagem que se concretiza no relatório. Bronckart (2006, p. 156) discorre sobre a distribuição e identificação das vozes, como “[...] uma oportunidade de se tomar conhecimento das diversas formas de posicionamento e de engajamento enunciativos construídos em grupo”. Assim, oferece a oportunidade de nos situar em relação a essas conformações enunciativas, interpretando-as, o que faz com que esse processo contribua, sem dúvida alguma, para a análise das representações dos indivíduos. Como vimos, as vozes referem-se às configurações discursivas e revelam, sobretudo, o posicionamento assumido (ou não) por seu enunciador, no qual encontramos as modalizações, conforme veremos a seguir.

3.4.2As modalizações no quadro do ISD

Acerca da acepção de modalização apreendida neste trabalho, entende-se que seus elementos pertencem à dimensão configuracional do texto e contribuem para o estabelecimento de sua coerência pragmática. São relativamente independentes da linearidade e da progressão textual, insinuando-se em qualquer nível da arquitetura textual. Conforme Bronckart (1999, p.

330) “são esses mecanismos enunciativos que contribuem para o estabelecimento da coerência

pragmática ou interativa do texto e orienta o destinatário na interpretação de seu conteúdo temático”. São marcadas por conjuntos de unidades linguísticas de níveis diferenciados, denominados modalidades, tais como: tempo verbal no futuro do pretérito, auxiliares de modalização, alguns advérbios, determinados tipos de frases impessoais, entre outros. Podem ser realizadas por unidades ou conjunto de unidades linguísticas e, de acordo com a função que expressam, categorizadas em modalizações lógicas, deônticas, apreciativas e pragmáticas. Vejamos, então, a distribuição abaixo:

As modalizações lógicas resumem-se a julgamentos sobre o valor de verdade das proposições enunciadas, apresentadas como certas, prováveis, possíveis, improváveis etc. Apoiadas no mundo objetivo, essas modalizações constituem avaliações baseadas “em critérios

(ou conhecimentos) elaborados e organizados no quadro das coordenadas formais que definem o mundo objetivo, e apresentam os elementos de seu conteúdo do ponto de vista de suas condições de verdade, como fatos atestados, [...], possíveis” (BRONCKART, 1999, p. 330). Temos como exemplo: é necessário, talvez, possivelmente, com certeza etc.

As modalizações deônticas avaliam o conteúdo temático à luz dos valores sociais. Apoiadas no mundo social, são avaliações que se pautam “nos valores, nas opiniões e nas regras constitutivas do mundo social, apresentando os elementos do conteúdo como sendo do domínio

do direito, da obrigação social e/ou da conformidade com as normas em uso” (BRONCKART,

1999, p. 331). Por exemplo: é lamentável, é inconcebível.

As modalizações apreciativas traduzem um julgamento mais subjetivo (fatos enunciados como bons, maus, estranhos na visão da instância que avalia). São avaliações que

procedem “do mundo subjetivo da voz que é a fonte desse julgamento, apresentando-os como

benéficos, infelizes, estranhos etc., do ponto de vista da entidade avaliadora” (BRONCKART, 1999, p. 332). Como em: bom,felizmente, lamentavelmente.

As modalizações pragmáticas introduzem um julgamento sobre as capacidades de ação (o poder-fazer), a intenção (o querer-fazer) e as razões (o dever-fazer) do agente. Elas

“contribuem para a explicitação de alguns aspectos da responsabilidade de uma entidade

constitutiva do conteúdo temático [...] em relação às ações de que é o agente, e atribuem a esse agente, intenções, razões [...], ou ainda, capacidades de ação” (BRONCKART, 1999, p. 332). Ex.: se tivesse falado, podiam fazer.

As modalizações podem ser identificadas nas marcas linguísticas expressas por verbos condicionais ou modais: querer, dever, poder, gostar, ser preciso, ser necessário. Podem ser expressas, também, por advérbios ou locuções adverbiais; orações impessoais ou adverbiais: infelizmente, com certeza, talvez, necessariamente. Além de orações impessoais ou adverbiais, como: é provável que, foi preciso que, seja necessário que.

Assim, diante da perspectiva da análise dos relatórios e em relação aos objetivos a que nos propomos, a análise das modalizações permitirá identificar valores, julgamentos, intenções, motivos etc., pois acreditamos que os elementos linguístico-discursivos expressos na atividade de linguagem – que é o texto – encontram-se validados e configurados nas coordenadas do mundo físico e do sociossubjetivo, logo, em representações construídas e materializadas

coletivamente. Portanto, no âmbito de nossa análise, vamos deter especial atenção às marcas enunciativas aqui elencadas, visto esclarecer os posicionamentos e as vozes presentes no texto (sociais, de personagens, do autor empírico, e ainda, a voz neutra).

Outra categoria que necessita de aprofundamento neste trabalho refere-se ao contexto de produção na situação de ação de linguagem da produção do relatório, considerando que é na especificidade dessa ação – desenvolvida pelos professores – que sustentaremos nossas análises. Essa ação reúne, integralmente, os parâmetros do contexto de produção e do conteúdo temático, como podemos ver a seguir.