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Os movimentos sociais do Nordeste e a resistência ao PTARSF

No documento Flavio Jose Rocha da Silva (páginas 184-196)

Taxa de mortalidade infantil

4 PROJETO DE TRANSPOSIÇÃO DAS ÁGUAS DO RIO SÃO FRANCISCO E A NOVA PROMESSA PARA O DESENVOLVIMENTO DO NORDESTE

4.4 Os movimentos sociais do Nordeste e a resistência ao PTARSF

Diante do quadro descrito no tópico anterior, a população impactada não encontra outros mecanismos de defesa a não ser através de sua própria organização, muitas vezes minada por parte do governo através de grandes campanhas midiáticas e as velhas promessas de que o PTARSF trará o desenvolvimento e empregos gerados direta e indiretamente com a obra. Os grupos que reclamam seus direitos são, muitas vezes, reputados como atrasados e discriminados pelo senso comum, bem como por grupos detentores de poder político e econômico, que afirmam estarem aqueles grupos caminhando contra a inexorável marcha do desenvolvimento. Seus detratores não percebem que “As comunidades envolvidas não são voltadas para o passado, tentando manter formas arcaicas de viver. Mas estão em processo evolutivo de adaptação permanente, buscando as formas mais adequadas de se projetar no futuro sem abrir mão dos seus valores e da sua cultura.” (LEROY, 2014, p. 105). Estes grupos resistentes podem ser classificados na linha do Ecologismo dos Pobres209 (ALIER, 2007), já que seus saberes e modos de lidar com seus territórios (territó-rios) estão sendo negados e é pelo direito de manter-se neles que eles lutam.

É verdade que os conflitos na região do Semiárido não são recentes ou começaram com este megaprojeto. Tão pouco a apropriação das suas riquezas naturais por parte de grupos econômicos é algo do momento presente. O que é novo é que estes grupos estão munidos para a sua defesa com a percepção de toda a problemática desencadeada na ordem socioambiental envolvida em grandes obras como o PTARSF, além de compreenderem os interesses econômicos que os motivam, baseados em experiências anteriores. Outro fato novo é que os atores sociais começaram a se organizar em redes, conectando as várias formas de resistência. São indígenas, atingidos por barragens, quilombolas, sem terra, vítimas do agrotóxico, pescadores artesanais, etc., que há décadas são vítimas de um processo de desterritorialização e/ou degradação do seu habitat. Estes movimentos sociais, marginalizados por séculos, vêm a público denunciar que a hegemonia do mercado, patrocinado pelo estado moderno, privilegia apenas alguns grupos com interesses nos recursos naturais abundantes em certas áreas do planeta e não contempla os setores mais pobres da sociedade.210

209 Confira O Ecologismo dos Pobres (ALIER, 2007).

210 Acselrad (2010, p. 109) afirma que “E os sujeitos copresentes dos conflitos ambientais são, com freqüência, aqueles que denunciam a desigualdade ambiental, ou seja, a exposição desproporcional dos socialmente mais

É extremamente necessário para os grupos questionadores do atual modelo de desenvolvimento unirem-se em rede no momento atual da nossa história. Com o avanço das novas tecnologias e o encurtamento das distâncias, os conglomerados econômicos exercem o monitoramento e o controle de vastas áreas do patrimônio natural de seus interesses, possibilitando que estes estejam ao seu alcance para futuros investimentos em diferentes áreas do planeta. A organização em rede é cada vez mais necessária como algo primordial para opor-se à avalanche midiática, econômica e política que alicerça estes conglomerados.

Embora as formas de resistência em redes não sejam algo novo na história das lutas sociais, uma característica diferencial básica é a forma não hierárquica como se organizam211 na atualidade. A criação destas redes não é fácil do ponto de vista da construção de uma pauta comum, intervenções, planejamento de ações, etc. Mas sem a sua atuação, o resultado dos protestos, denúncias, boicotes e outras ações de resistência teriam uma dimensão aquém do que vemos hoje, pois elas conseguem irradiar informações e propostas através das novas tecnologias e/ou em eventos organizados pelos movimentos sociais com mais capilaridade e rapidez.

No caso do PTARSF, a construção de uma rede de resistência foi a maneira mais eficaz encontrada pelos grupos de atingidos e opositores ao PTARSF para questionar as supostas benesses do projeto. A facilidade para a sua criação deu-se pelo fato de que a realização dos projetos de convivência com o Semiárido já acontecia anos antes do anúncio do PTARSF. Assim, vários Movimentos Sociais – MS –, Pastorais Sociais – PS –, ligadas à Igreja Católica e a outras igrejas cristãs, e várias Organizações Não Governamentais – ONGs – começaram a atuar em rede para contestar o discurso oficial sobre esta grande obra.

Embora os grupos que formam a rede que se opõe ao PTARSF tenham ganhado estrutura a partir de 2005, uma primeira tentativa de articulação surgiu ainda na década de 1990. Durante o governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso, foi anunciada a intenção de construção do canal de transposição das águas do Rio São Francisco. Vários MS, OS e ONGs realizaram, na cidade de Recife, o Seminário contra a transposição do rio São

desprovidos aos riscos das redes técnico-produtivista da riqueza ou sua despossessão ambiental pela concentração de benefícios do desenvolvimento em poucas mãos.”

211Segundo Escobar (2010, p. 63), “En sus mehores momentos, los movimentos de hoy, particularmente los movimientos antiglobalización y de justicia global, promueven uma nueva lógica de lo social basada em formas auto-organizadas y en grand part estructuras no-jehárquicas.” “Em seus melhores momentos, os movimentos antiglobalização e de justiça global promovem uma nova lógica social baseada em formas autoorganizadas e, em grande parte, em estruturas não hierárquicas.” (Tradução do autor).

Francisco, em 1994 (SILVA, 2010). O governo de então não seguiu com a sua intenção, o que certamente não motivou a continuidade desta rede.

No ano de 2004 aconteceu na cidade de Recife o I Fórum Social Nordestino – FSNE –, que possibilitou a interação de MS de todo o Nordeste. Era a primeira vez que um grupo tão amplo discutia o tema da transposição. Por causa da limitação do tempo do evento, era preciso encontrar meios de continuar a discutir esta temática. Além disso, o assunto transposição sempre dividiu lideranças dos MS, PS e ONGs no Nordeste, dada a sua secular promessa de solução para as desigualdades que imperam naquela região do país. Como resultado, uma das deliberações da Coordenação Colegiada do I FSNE foi continuar a discutir sobre a transposição utilizando as novas tecnologias. Fez-se a opção por uma videoconferência como o meio facilitador das futuras discussões, o que possibilitaria a participação no debate entre representantes dos MS e do governo para um melhor entendimento sobre a obra. O evento viria a acontecer no dia 2 de maio de 2005 por meio do Sistema Interlegis das Assembleias Legislativas de alguns estados nordestinos e contou com a participação de representantes de vários MS e do governo (SILVA, 2010).

Figura 34 – Propaganda dos movimentos sociais em apoio a Dom Cappio

Em 2005, o bispo católico Dom Luiz Flávio Cappio fez sua primeira greve de fome,212 com duração de 11 dias em protesto contra o PTARSF. Este ato abriu uma discussão nacional sobre a inviabilidade do projeto e motivou debates nos estados nordestinos, além de facilitar uma aproximação dos MS, PS e ONGs contrários ao projeto, o que resultaria na formação de uma rede opositora de forma mais articulada. Com a eleição em vias de acontecer naquele mesmo ano, o Presidente Lula prometeu parar a obra para debater a sua necessidade, o que não veio a acontecer.

Figura 35 – Propaganda dos movimentos sociais contrários ao PTARSF tenta chamar a atenção para a situação do Rio São Francisco

Fonte: Articulação Popular São Francisco Vivo (Panfleto distribuído nas comunidades).

212 Dom Luiz Flávio Cappio é o bispo católico da Diocese de Barra-BA. Entre outubro de 1992 e outubro de 1993, ele percorreu todo o trajeto do Rio São Francisco ao lado de outras três pessoas. Confira Rio São Francisco: uma caminhada entre a vida e a morte (CAPPIO; MARTINS e KIRCHNER, 2000) e Da Foz à nascente: o recado do rio (UNGER, 2001). Para detalhes sobre as duas greves de fome de Dom Cappio, confira Frei Luiz: um dom da natureza. Memórias afetivas do seu jejum em Sobradinho (Marques, 2008), Uma vida pela vida: o jejum de Dom Luiz Cappio em defesa do Rio São Francisco e de seu povo (VIAN, 2008) e Dom Cappio: rio e povo (MOREIRA, 2008). Ver também os documentários A greve de fome do Velho Chico (PRONZATO e CINTI, 2005) e Além do Jejum (PRONZATO e CINTI, 2008).

Figura 36 – Propaganda dos movimentos sociais contra o PTARSF

Figura 37 – Propaganda dos movimentos sociais contra o PTARSF

Figura 38 – Propaganda dos movimentos sociais contra o PTARSF

Fonte: Articulação Popular São Francisco Vivo! (Panfleto distribuído nas comunidades).

Um evento crucial para a formação das redes que surgiriam no Nordeste em oposição ao PTARSF foi a “Caravana em Defesa do São Francisco e do Semiárido Contra a Transposição”. Segundo relata Lisboa (2010, p. 171),

A jornada, que teve início em Belo Horizonte no dia 19 de agosto de 2007, percorreu, em treze dias, onze capitais brasileiras, e mais quatro cidades do interior nordestino, promovendo debates em universidades, coletivas de imprensa, debates em rádios e televisão e visitas aos governadores dos estados.

Se por um lado não conseguiu parar a obra, por outro, a Caravana obteve atenção nacional para o tema. Foi recebida por alguns governadores, vários deputados estaduais e, mais importante, possibilitou a abertura de um debate amplo na sociedade sobre o PTARSF. Para este mesmo autor (Idem, p. 172),

A Caravana teve repercussão muito forte em todos os 11 estados percorridos, levando no último dia o Ministro Geddel Vieira Lima, da Integração Nacional, a ocupar rede nacional de televisão para contra-atacar nosso movimento. Fizemos o governo ficar na defensiva e alargamos os horizontes de milhares de pessoas.

A construção de um evento do porte da Caravana não se dá de maneira fácil. Segundo Lisboa (2010, p. 172),

A estratégia da Caravana buscou fortalecer e integrar os diversos movimentos contrários à transposição, não importando neste evento as motivações particulares de cada setor, para não deixar que posicionamentos ideológicos dividissem o front político de luta contra a transposição.

Organizada de forma horizontal e sem uma coordenação hierárquica, a Caravana contou com apoio de organizações locais nas cidades onde passou e não impôs uma agenda de visitas nestas cidades, deixando esta a cargo dos organizadores locais, reafirmando, assim, a lógica das novas redes em contraste com o centralismo das antigas organizações de esquerda (Escobar, 2010).

A estratégia surtiu o efeito desejado, pois além de criar o ambiente para um debate nacional sobre o projeto, possibilitou a criação e o fortalecimento de redes em alguns dos estados visitados que passaram a atuar a partir daquele momento. Este fato daria base para vários eventos e acontecimento que descreveremos a seguir.

4.4.1 A Conferência dos Povos do São Francisco e do Semiárido

A segunda greve de fome protagonizada por Dom Cappio aconteceu em dezembro de 2007 e durou 24 dias. Se o debate havia sido ampliado com a Caravana e a primeira greve de fome deste bispo, agora ele ganhava contornos políticos e midiáticos não esperados, já que figuras de renome nacional como a atriz Letícia Sabatella viajaram até a cidade de Sobradinho-BA para apoiar Dom Cappio. A escolha daquela cidade deveu-se ao fato de que sua população foi deslocada para a construção da Barragem de Sobradinho (considerada o coração do Rio São Francisco).

Sobradinho também foi, entre os dias 25 e 27 de fevereiro de 2008, a sede de um grande encontro de MS, PS e ONGs contrários ao PTARSF. A “Conferência dos Povos do São Francisco e do Semi-Árido” contou com a participação de 213 pessoas, representando 93 movimentos sociais e lançou a Carta de Sobradinho com denúncias e apontando caminhos para o Semiárido (Gonçalves et al, 2008). A Conferência deu impulso ao fortalecimento das redes estaduais e possibilitou um maior intercâmbio entre elas, já que contou com uma grande presença de representantes dos povos indígenas, remanescentes quilombolas, pescadores artesanais, estudantes, professores universitários, entre outros, de vários estados nordestinos e já envolvidos com a resistência ao projeto desde a passagem da Caravana.

4.4.2 A Articulação Popular São Francisco Vivo!

Formada por mais de cem entidades localizadas na bacia do Rio São Francisco, a “Articulação Popular São Francisco Vivo!” é uma rede que congrega povos indígenas, pescadores artesanais, movimentos culturais e juvenis, movimentos de mulheres, assentamentos rurais, remanescentes quilombolas e educomunicadores que têm em comum a relação com o Rio São Francisco. Além de promover debates, seminários e outros eventos, esta articulação tem como um de seus focos trabalhar com as mídias sociais com o intuito de atingir o maior número possível de pessoas devido à dimensão geográfica da bacia. Esta rede é o resultado de trabalho de alguns grupos desde os anos 1980.

4.4.3 Frente Cearense Por Uma Nova Cultura de Águas e Contra a Transposição do Rio São Francisco

Uma das primeiras redes a surgir para questionar o projeto de transposição foi a “Frente Cearense Por Uma Nova Cultura da Água e Contra a Transposição do Rio São Francisco”. Ela nasceu em 2005 e em 2007 lançou o documentário Transposição do rio São Francisco e águas no Ceará: os cursos da privatização (FRENTE CEARENSE POR UMA NOVA CULTURA DE ÁGUAS, 2007). Em 2008 publicou o livro A vida por um rio (GONÇALVES et al, 2008). À época da publicação do livro, esta rede contava com a participação de treze organizações, entre elas a ESPLAR – Centro de Pesquisa e Assessoria, a Comissão Pastoral da Terra – CPT, a Rede Brasil, entre outras. A “Frente Cearense Por Uma Nova Cultura da Água e Contra a Transposição do Rio São Francisco” também foi muito atuante na promoção de debates sobre o projeto e sua relação com a mercantilização da água em vários seminários e encontros.

4.4.4 Frente Paraibana em Defesa da Terra, das Águas e dos Povos do Nordeste

A “Frente Paraibana em Defesa da Terra, das Águas e dos Povos do Nordeste” nasceu a partir da necessidade de organizar a “Caravana em Defesa do São Francisco e do Semiárido e Contra a Transposição” na cidade de João Pessoa, em agosto de 2007 (SILVA, 2010). Em dezembro daquele mesmo ano, mais de trinta entidades que compunham a Frente lançaram um manifesto para explicitar à população paraibana por que eram contra o PTARSF. Depois de vários encontros após a Caravana, as reuniões tornaram-se mensais e aconteciam na cidade de Campina Grande-PB. Os grupos trocavam informações a respeito da obra na Paraíba e de articulações com as redes de outros estados. Membros da Frente Paraibana participaram de vários eventos dentro e fora da Paraíba e lançaram, em junho de 2010, o livro A resistência à transposição do rio São Francisco na Paraíba: histórias em defesa da terra, das águas e dos povos do Nordeste (MENEZES e SILVA, 2010), como uma forma de demonstrar que vários paraibanos eram contra a obra, ao contrário do que a mídia divulgava.

4.4.5 O Mutirão das Águas

O “Mutirão das Águas” aconteceu entre os dias 26 e 30 de novembro de 2009. Embora semelhante à Caravana em seu formato, este tinha outro objetivo. A obra já se encontrava em andamento há mais de três anos e era preciso saber o que estava acontecendo com as populações atingidas. O Mutirão contou com 53 pessoas que viajaram divididas em grupos pelo interior dos estados do Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba e Pernambuco. A intenção era coletar dados, principalmente sobre os atingidos pelo PTARSF. Os participantes partiram para regiões diferentes dos estados a serem percorridos para somente se encontrarem no dia 30 de novembro na cidade de Campina Grande-PB. Durante este dia, os dados da visita à obra e aos atingidos foram coletados e apresentados pelos grupos para toda a equipe. O final do Mutirão foi encerrado com um ato no centro daquela cidade.

Figura 39 – Cartaz do I Encontro dos Atingidos e Atingidas pelo PTARSF

Fonte: Articulação Popular São Francisco Vivo (Arquivo pessoal).

4.4.6 O I Encontro dos Atingidos e Atingidas pelas Obras da Transposição do Rio São Francisco

O “I Encontro dos Atingidos e Atingidas pelas Obras da Transposição” aconteceu entre os dias 17 e 19 de junho de 2010, na cidade de Campina Grande-PB. Além do

ineditismo em tentar organizar os atingidos pela construção de um canal, o Encontro tinha a intenção de trazer estas pessoas para que dialogassem sobre seus desafios e buscassem soluções em comum para os problemas que estavam enfrentando com as obras. Com ampla cobertura da mídia, os participantes lançaram um manifesto para denunciar como estavam sendo impactados e para chamar a atenção da sociedade e do governo federal sobre a situação dos que estavam sendo atingidos pelo PTARSF.

No documento Flavio Jose Rocha da Silva (páginas 184-196)