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A privatização da água e o PTARSF

No documento Flavio Jose Rocha da Silva (páginas 159-165)

Taxa de mortalidade infantil

4 PROJETO DE TRANSPOSIÇÃO DAS ÁGUAS DO RIO SÃO FRANCISCO E A NOVA PROMESSA PARA O DESENVOLVIMENTO DO NORDESTE

4.1 A privatização da água e o PTARSF

Com 12% da água doce do planeta, o Brasil é detentor de um grande e valioso patrimônio hídrico.183 Sua distribuição acontece de forma desigual, pois 70% estão na região amazônica, detentora de pouco mais de 10% da população nacional (CASTRO e SCARIOT, 2005). No entanto, mesmo o Nordeste, região com o menor montante de água do Brasil (apenas 3%), possui mais de 70 mil açudes acumulando 36 bilhões de m³ de água.184 Com toda esta reserva hídrica, o país está na circunferência de interesse das multinacionais que lucram cada vez mais com o mercado da água.

Nas últimas décadas o discurso da escassez hídrica (real ou criado para vender grandes projetos ou privatizar a água), assim como a real privação do direito a este recurso natural, somados à realização de grandes obras de engenharia hídrica, fizeram com que emergissem vários conflitos tendo a água como protagonista de disputas entre populações, de um lado, e grupos econômicos e governos, de outro. Estes conflitos reverberam a afirmação anterior sobre o modelo de desenvolvimento imposto nas últimas décadas em áreas onde a água foi

182 Confira o documentário Transposição do Rio São Francisco e águas no Ceará: os cursos da privatização (FRENTE CEARENSE POR UMA NOVA CULTURA DE ÁGUA E CONTRA A TRANSPOSIÇÃO, 2007). 183“Vale destacar que, entre os seis países do mundo de dimensões continentais, o Brasil é o único sob condições dominantes de clima tropical úmido, resultando na maior descarga de água doce distribuída numa rede hidrográfica perene das mais extensas e densas, e na maior extensão de pantanais ou encharcados (38 áreas com 60 milhões de hectares de superfície total). (REBOUÇAS; BRAGA e TUNDISI, 2002, p. IV).

apropriada para manter grandes projetos de agricultura irrigada de grande escala. Estudiosos da temática dos recursos hídricos afirmam que não há falta de água para atender às necessidades humanas no NE, mas uma má distribuição da mesma (SUASSUNA, 2010; REBOUÇAS, 2002; GUIMARÃES JR., 2008). No entanto, os mananciais nordestinos não poderão atender a todas as demandas, principalmente a produção de agricultura irrigada do agronegócio.

No caso do Brasil, a Comissão Pastoral da Terra – CPT – divulga anualmente o relatório Conflitos no Campo – Brasil, no qual estão computados vários conflitos por água. Segundo este relatório, no ano de 2014 houve 127 conflitos no país relacionados com a água e com 42.815 famílias envolvidas (CANUTO; LUZ e COSTA, 2014, p. 99).185 O NE é detentor do maior número destes, com 37 conflitos, e o envolvimento de 4.182 famílias. A crise tem sua gênese relacionada, em alguns casos, à utilização da água doce de forma desordenada para a agricultura irrigada, resultando disto sua falta para algumas comunidades.

Uma das grandes controvérsias sobre o PTARSF é o fato de que ele dará vazão ao mercado da água no Brasil com a cobrança da água bruta.186 Além disso, o PTARSF terá 70% de suas águas transpostas destinadas à irrigação de grandes projetos de agricultura em grande escala para exportação e da carcinicultura, o que poderá gerar inúmeros conflitos pela sua utilização. Não que as águas do Velho Chico já não estejam envolvidas em conflitos diversos, mas o PTARSF desvelou para o país que, mesmo onde há água em abundância, a chegada do agronegócio, agora chamado por alguns de agrohidronegócio, acelera este processo.

A água, como elemento essencial à vida no planeta, tem sido foco de inúmeros conflitos ao longo da história humana. De acordo com Rebouças (2002, p. 16-17), “O controle dos rios, como forma de dominação dos povos que habitavam os setores hidrográficos de jusante foi praticada desde, pelo menos, 4 mil a.C. na Mesopotâmia.”

Coube ao Banco Mundial, a partir dos anos 1990, o papel de pressionar vários governos a mudarem suas leis para que empresas privadas tivessem permissão para atuar na

185 Disponível em <http://www.cptnacional.org.br/index.php/component/jdownloads/finish/43-conflitos-no- campo-brasil-publicacao/2392-conflitos-no-campo-brasil-2014?Itemid=23>. Acesso em: 04 jun. 2015.

186 Para Ribeiro (2008, p. 17), “Água é riqueza porque foi transformada em uma mercadoria em escala internacional, o que gera interesses de grandes grupos transnacionais que atuam apoiados por órgãos como o Banco Mundial e a OMC. Ela também gera riqueza ao ser usada como insumo produtivo na agricultura, indústria e geração de energia. Água é fonte de conflitos porque sua distribuição natural não corresponde à sua distribuição política.” Já segundo Petrella (2002, p. 54), “A agricultura (principalmente a irrigação) absorve uma média mundial de 70 por cento das provisões de água, uma porcentagem que aumenta para 80 a 90 por cento nos países subdesenvolvidos; isso equivale a uma média de 20 por cento para a indústria e 10 por cento para o uso doméstico e outros.”

área dos recursos hídricos. Em 1993, essa mesma instituição publicou e divulgou um documento intitulado Water Resource Manegement, um documento que introduz a visão mercadológica na questão do gerenciamento do recurso hídrico. A partir de então, esta instituição passou a trabalhar em várias frentes para a flexibilização das leis em vários países a exemplo do Brasil. Segundo Martins (2012B, p. 474),

Na concepção dos princípios da Lei das Águas, aprovada em 1997, são notórias as influências das bases de gestão preconizadas no documento do Banco Mundial. Entre os cinco princípios gerais da lei brasileira estão: a água como recurso natural limitado, dotado de valor econômico; a gestão dos recursos hídrico voltado para o uso múltiplo das águas; bacia hidrográfica como unidade territorial de gestão e a gestão descentralizada.

Durante os anos 1990, quando muitos países estavam sob o domínio do Neoliberalismo, a abertura de mercado era utilizada como um mantra por governos patrocinadores deste modelo econômico como tentativa de mostrar esta versão do capitalismo como a solução para todas as mazelas sociais. Quando alguma lei dificultava um interesse comercial das transnacionais, prontamente os referidos governos tratavam de modificá-la. Um exemplo, no Brasil, foi a criação da Lei das Águas no governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso.187 Em 1997, a Lei Federal n.º 9.433 instituiu a Política Nacional de Recursos Hídricos e criou o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos. Também se passou a exigir que cada estado da federação criasse uma Agência Estadual de Águas para reproduzir o modelo federal. A Lei das Águas citou as palavras cobrança ou termos a ela relacionados tais como compensação financeira, arrecadação, receitas provenientes e pagamento por treze vezes em sua publicação. Todos estes termos estão relacionados com a valoração econômica da água. Por outro lado, apenas uma vez a lei citou o termo conservação qualitativa do patrimônio hídrico brasileiro. O Ceará foi o primeiro estado do NE a aprovar uma lei de recursos hídricos em 1992 e começar a cobrança pela água em 1996 (AZEVEDO, 2010). Na bacia do São Francisco, a cobrança começou em 2010. Estava sendo instituída a “indústria da água” como uma sucedânea da indústria da seca. Ainda

187 “É preciso ressaltar que este embate teve vencedores e vencidos – que a política das águas foi forjada sob a hegemonia do modelo neoliberal, cuja tônica era a reestruturação dos estado burocrático e implementação de um modelo gerencialista de gestão dos recursos ambientais no país – sendo amplo o apoio do Banco Mundial à elaboração e implementação da Lei das Águas um dos elementos que substancia tal constatação.” (SANTOS e MEDEIROS, 2009, p. 87). Em 2004, O Banco Mundial organizou uma visita a um dos projetos de transposição do Rio Colorado. Participaram técnicos, deputados e senadores (KELMAN, 2010, p. 266).

durante este mesmo governo, foi criado o programa PROÁGUA Semiárido que, de acordo com Martins (2012, p. 475),

Financiado pelo próprio Banco Mundial, o Programa tinha como objetivo construir estratégias de gerenciamento das disponibilidades e as demandas de água na região semiárida brasileira, considerando não apenas a bacia hisdrográfica e os múltiplos usos da água, mas também analisando seu valor econômico ante o potencial de escassez e as demandas dos usuários.

Em 1999, o governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso promoveu, no Palácio do Planalto, o evento Seminário Água, o desafio para o próximo milênio. Em seu discurso, Cardoso afirmou, “Os recursos hídricos também custam dinheiro. É preciso ver quem paga.” (CARDOSO, 2004). Um ano mais tarde seria criada a Agência Nacional de Águas – ANA – pelo Decreto Lei Nº 9.984 de 17 de julho de 2000.188 Esta modificação propiciou uma mudança de atitude por parte do governo com relação a este bem natural comum, facilitando o caminho para a mercantilização da água brasileira.

A Política Nacional de Recursos Hídricos também definiu que a água tem múltiplos usos, o que abriu caminho para atalhos legais com relação a utilização do nosso patrimônio hídrico. Quem define a prioridade de uso em um manancial que tem múltiplos usos? Por lei, a prioridade deverá ser dada à dessedentação de seres humanos e animais. No entanto, serão os grupos política e economicamente mais organizados que gozarão desta preferência, principalmente onde o poder público se faz ausente ou é exercido por estes mesmos grupos. É assim que tem acontecido historicamente no Semiárido, demonstrando como o fio da espiral da privatização da água vai aumentando a sua extensão até culminar com o PTARSF.

188 Foi somente em 1934 que o Brasil teve a sua primeira lei para o ordenamento do seu patrimônio hídrico. O presidente Getúlio Vargas sancionou o Código das Águas pelo Decreto 24.643 daquele ano. Embora fosse um avanço para a época e deixasse claro que a água era um bem de todos os brasileiros, o decreto já a tratava com uma visão unidimensional quando tocava nos interesses do país com relação à geração de energia hidroelétrica, por exemplo. O governo só voltaria ao tema da água em 1977, com o Decreto 19.367, para instituir o Padrão de Potabilidade da Água. A Constituição de 1988 voltou a tratar do patrimônio hídrico brasileiro. Entretanto, muitas leis somente seriam regulamentadas anos mais tarde. Em 1989 o país passou a ter uma Lei de Proteção das Nascentes e Rios, através do Decreto 7.754. Vê-se pela carência de uma legislação, durante todas estas décadas, que o nosso patrimônio hídrico não era prioridade dos nossos legisladores e governantes. Para um histórico a respeito da legislação sobre as águas no Brasil, confira Código das Águas e legislação correlata (SENADO FEDERAL, 2010).

O discurso da escassez hídrica no Semiárido189 é uma das razões utilizadas como justificativa para a realização de grandes projetos como é o caso do PTARSF. Foi este discurso, alicerçado em grandes campanhas midiáticas, que viabilizou a criação das leis citadas anteriormente sem uma ampla discussão e/ou oposição dos grupos organizados.190 O apelo a uma possível falta de um bem essencial à vida ganhou vulto, pois é evidente que todos sabem da importância da água como elemento fundamental para a sobrevivência da vida no planeta. De fato, é a privatização que pode tornar um bem escasso, privando-o do acesso por parte da maioria da população. No entanto, há reais casos de escassez hídrica em localidades do Semiárido que podem ser solucionadas sem a realização de grandes obras como o PTARSF.

Deve um bem comum, essencial à vida de todos os seres do planeta, ser privatizado, valorado economicamente e administrado em sua distribuição por alguns poucos grupos econômicos?191 Há algumas décadas, se esta pergunta estivesse relacionada à água, certamente a resposta seria não. Porém, projetos como o PTARSF nos revelam que a realidade começa e ser modificada. Basta comprovar como vários documentos nos fóruns, congressos e encontros mundiais sobre a água (muitos deles patrocinados pelo Banco Mundial)192 respondem a um dos mais importantes dilemas do nosso tempo: como promover o acesso de todos os habitantes do nosso planeta à água potável? Nestes documentos, que têm um número expressivo de países signatários, está sempre impresso (de forma nítida e sem

189 Como afirma Siqueira (2005, p. 40), “No contexto do discurso ideológico, a escassez, posta de maneira genérica e abstrata como risco global e iminente, induz à aceitação de um elenco de propostas gerais visando tornar eficiente a gestão da água, bem como racionalizar seu uso. De maneira mais ou menos sutil, introduz-se, como consequência lógica, a justificação da mercantilização da água, na medida em que a escassez lhe agrega, necessariamente, valor econômico. Ressaltamos que há uma certa confusão entre os termos estresse hídrico e escassez. “O estresse hídrico é a pressão exercida pela falta de água enquanto a escassez representa a efetiva falta de água.” (RIBEIRO, 2008B, p. 71). O programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente “[...] define escassez hídrica quando a população de uma determinada região dispõe de menos de 1.000 m3 de água por ano nas reservas naturais (rios, lagos e águas subterrâneas). (Idem, p. 63). O mesmo programa “[...] definiu um valor mínimo para estresse hídrico em sua página eletrônica: menos de 1.700 m3per capita ao ano.” (Idem, p. 64). 190 Para um histórico da criação da Lei de Águas e da ANA, confira De bem comum a ouro azul (MARTINS, 2012B).

191 Sobre este processo, confira “Hidroeconomia” (LANNA, 2002). Embora a cobrança pela água siga o modelo francês, este entrou em declínio nos últimos anos depois de várias denúncias de corrupção, que culminaram com a reestatização de algumas empresas distribuidoras de água naquele país. Para o caso da França, ver o documentário Quem controla a água (FRANKE e LORENS, 2010).

192 Entre os anos de 1997 e 2000 foram realizadas treze conferências mundiais e em 2003 foram cinco fóruns simultâneos sobre a água (PETRELLA, 2002). Para Martins (2012B, p. 471), “Um marco importante para que o Banco Mundial delineasse efetivamente um posicionamento acerca dos rumos da gestão da água foi a Conferência de Dublin sobre Água e Desenvolvimento Sustentável, realizada em 1992. Ao final da conferência, um posicionamento já defendido pelo banco tornou-se um dos princípios fundamentais constantes na Declaração de Dublin para o reconhecimento internacional da água como um bem econômico.”

subterfúgios linguísticos) que a água tem um valor econômico e que se for privatizada não será mais acessível a todos.193

É bem verdade que nem sempre a água foi pensada como um bem comum ao qual todos possuem o direito de usufruir. Esta concepção é algo muito recente na história da humanidade. A posse da água sempre foi muito importante para manter a hegemonia política e militar, principalmente onde ela não é abundante, como é o caso do Semiárido nordestino. Alguns grupos humanos perceberam que a posse dos mananciais era também a posse do espaço territorial, como se comprova com a expulsão dos povos originários das margens do São Francisco.

A Indústria da Água ou hidronegócio como última fronteira a ser desbravada pelo capitalismo é uma realidade vivenciada por várias populações em todo o mundo.194 É nesse sentido que a realização do PTARSF se encaixa perfeitamente no processo de mercantilização da água. Quanto custará a água transposta e quem por ela pagará? Críticos do PTARSF falam que esta será a água mais cara do país e impossibilitará que pequenos agricultores tenham acesso a ela em suas pequenas propriedades. Além disso, a produção de frutas e de camarão para a exportação é o que os estudiosos da questão hídrica chamam de exportação de água virtual.195 Ao exportar estes produtos, o NE está exportando água. Uma ironia, se atentarmos para o fato de que durante décadas este é um lugar conhecido pela necessidade de construção de megaprojetos justificados pela escassez hídrica.

Em princípio o PTARSF será administrado pelo governo em conjunto com os estados receptores. Porém, existem casos como o do Projeto Especial Chavimochic, no Peru (AZEVEDO, 2012) em que o canal foi administrado inicialmente pelo governo e depois passou para a iniciativa privada.196 A julgar pelo que já está acontecendo com os campos de irrigação administrados pela CODEVASF e pelo DNOCS é possível que o mesmo possa

193 Petrella (2002, p. 51) ressalta que uma das primeiras afirmações do documento resultante da Segunda Conferência do Fórum Mundial da Água, realizada entre 17 e 22 de março de 1999, em Haia, foi que “A água é um recurso escasso, um bem vital econômico e social. Como petróleo ou qualquer outro recurso natural, deve ser submetido às leis do mercado e aberto à livre competição.”

194 Confira El Convenio Azul; la crisis global del agua y la batalla futura por el direch al agua (BARLOW, 2008).

195 Há várias bases de cálculo para se chegar aos resultados da chamada exportação da água virtual. Uma delas é a Waterfootprint. Confira em http://www.waterfootprint.org/.

196 “Desde agosto de 2003, Chavimochic é administrado por um órgão executivo desvinculado do governo regional de La Libertad e conta com autonomia técnica, econômica, financeira e administrativa. Tem participação de investidores privados que ocupam uma área total de 26. 893ha irrigados dos quais 8.500ha se encontram em produção para cultivos para exportação.” (AZEVEDO, 2012, p. 348).

acontecer a este projeto com as chamadas Parcerias Público-Privadas197 – PPPs –, eufemismo para privatização. No final, corre-se o risco de se repetir a velha receita de tonar públicas as despesas e privatizar os lucros.

No documento Flavio Jose Rocha da Silva (páginas 159-165)