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3 QUESTIONANDO OS IDEAIS BASILARES DO JORNALISMO

3.4 OS PROBLEMAS NOS CONCEITOS

Os discursos de neutralidade, imparcialidade e objetividade servem para, em tese, autorizar os jornalistas a falarem sobre qualquer assunto e, inclusive, expressarem juízo de valor, uma vez que possuem legitimidade e são portadores da verdade incontestável não mais por terem acesso a toda a realidade, mas por propagarem a ideia de acesso a parte da realidade, de forma fidedigna, segundo Flávia Biroli e Luis Felipe Miguel (2012). Essa autorização permite que o discurso midiático se torne o portador de uma moral que atinge a todos como se fosse o bem comum coletivo. Assim, o jornalista se torna portador de um consenso inexistente, uma vez que não é possível ter um público homogêneo.

A discussão realizada por tais autores elucida um dos aspectos do ideal de objetividade, o de o jornalismo possuir a função de simular discursos hegemônicos fingindo não ter nenhuma pretensão. “Entendemos a objetividade como um dispositivo que tem papel central na legitimação de discursos hegemônicos no jornalismo, na apresentação de julgamentos como fragmentos de realidade transpostos para o noticiário” (BIROLI; MIGUEL, 2012, p. 25).

Biroli e Miguel (2012) também questionam a ideia de que as escolhas e enquadramentos feitos pelos jornalistas são realmente óbvios. “Outros recortes são possíveis, mas aquele que o jornalismo apresenta é o que se impõe como importante, tanto por seu impacto junto ao público quanto porque os jornalistas não vacilam na crença de que são dotados da capacidade de selecionar os fatos verdadeiramente dignos de relato” (BIROLI; MIGUEL, 2012, p. 25).

O jornalismo atua em um sistema de efeito da realidade na produção da notícia que caminha para apagar as disputas. “Nesse sentido, a verdade pode ser entendida como o resultado de um 'trabalho moral' que forja um consenso, permitindo que os julgamentos apareçam como fatos” (BIROLI; MIGUEL, 2012, p. 29).

Sob o pretexto da imparcialidade, muitos jornalistas, especialmente da grande mídia, estabelecem uma condição com a audiência de “intocáveis” e “intocados”, ou

seja, eles não possuem o autointeresse percebido no âmbito do público ou do cenário político. “Isso não os levaria a pensar da posição de ninguém, mas da posição de todos, produzida a partir do acesso privilegiado à totalidade” (BIROLI; MIGUEL, 2012, p. 30). Os jornalistas estão acima dos conflitos e sua voz parte de uma perspectiva dominante e universal. “O afastamento da própria individualidade e das perspectivas e crenças que a definem não levaria à ausência de valores, mas à mobilização de valores tidos como universais e, como tal, justos. Os valores que estão na base da seleção e compreensão dos fatos seriam os valores do público” (BIROLI; MIGUEL, 2012, p. 31). Os autores acrescentam que a voz imaginada pelos repórteres, que pensam transmitir, é a voz da hegemonia, de todos. “E não seriam, portanto, objeto de conflito ou disputa. A objetividade é, portanto, efeito de duas ficções simultâneas: a suspensão do jornalista como indivíduo socialmente posicionado e a transformação do público em coletivo moral homogêneo” (BIROLI; MIGUEL, 2012, p. 30). Há ainda a ocultação da influência da política editorial do veículo.

A visão homogênea e universal de que é possível ser a voz de todos, não leva em consideração os conflitos e, portanto, pode gerar ainda mais exclusão, uma vez que as divergências se tornam difusas. Por existirem relações assimétricas, a atuação do jornalismo como imparcial atua para legitimar as desigualdades de falas. Essa concepção também legitima a permanência de privilegiados, da classe dominante, enquanto a classe dominada é desfavorecida e continua sem espaço de fala. Além do mais, a crença na possibilidade de não tomar partido, por si só, já revela um partido. “(…) o jornalismo objetivo não deixou de ocupar a função de partido, mesmo que não se vincule a um partido político: representa interesses e perspectivas sociais específicos, estabelece mediações entre as instituições políticas e os cidadãos, procura impor visões de mundo e forjar consensos.” (BIROLI; MIGUEL, 2012, p. 40). Portanto, um pseudo-consenso, haja vista que produzido num processo de comunicação distorcido, excludente.

Se o argumento da atribuição do jornalismo como espelho da realidade já não se sustenta, a suspensão de valores e julgamentos permanece presente entre acadêmicos, jornalistas e editores. Entretanto, “mantém sua força, também, o entendimento de que os julgamentos presentes no noticiário, quando são assim reconhecidos, correspondem a valores sociais compartilhados e não conflitivos. Seriam, assim, a expressão da opinião pública, codificada como bom senso

informado” (BIROLI; MIGUEL, 2012, p. 41). Os autores criticam a crença na separação entre fato e a opinião no jornalismo, sendo o primeiro superior, ou seja, a capacidade de descrever apenas fato em si ser sinônimo de um bom jornalismo.

Sobre a moral presente no jornalismo, os autores defendem que o sentido da objetividade atua não apenas como possibilidade de valor hegemônico universal: “objetividade e imparcialidade são, nesse sentido, dispositivos que permitem ocultar o trabalho moral realizado pelos jornalistas” (BIROLI; MIGUEL, 2012, p. 41).

Os valores sociais hegemônicos são basilares nos enquadramentos do jornalismo da grande mídia. “Em outras palavras, a matéria dos fatos são os julgamentos, e não o contrário. Naturalizados e objetivados, os padrões de valores assumidos pelo jornalismo são a base para posições que não aparecem como tomada de partido, mas como a expressão da própria realidade” (BIROLI; MIGUEL, 2012, p. 41). Luís Felipe Miguel e Flávia Biroli denunciam que, mesmo na condição de julgadores, os jornalistas construíram uma ideia de si mesmos como críticos imparciais. Portanto, esses profissionais “expressam posições políticas e valorativas específicas que são, no entanto, apresentadas como a expressão de uma crítica que resguarda valores que seriam os de 'todos nós'” (BIROLI; MIGUEL, 2012, p. 41). Os autores (2012) concluem que o jornalismo “dissimula, portanto, o fato de ser um ator político e funcionar, nesse sentido, como partido - independentemente de sua relação com partidos políticos específicos” (BIROLI; MIGUEL, 2012, p. 42).

Iris Young (2012) a partir de sua crítica ao conceito de imparcialidade, afirma que este tem suas origens no iluminismo ao buscar tratar todos os indivíduos como iguais. Sua ponderação afirma que a crença nesse ideal não leva em consideração as profundas desigualdades estruturais que prejudicam o processo de paridade entre os membros de um campo social. A comunicação, atuando nesse sentido, geralmente serve para reproduzir desigualdades sociais e econômicas.

A autora denuncia que isso não só não é possível como é capaz de servir a uma ideologia, a qual foi responsável por excluir durante a história vários indivíduos não considerados parte da unidade homogênea: mulheres, crianças, homossexuais, negros, entre outros como os pobres e assalariados. Iris Young faz uma grande reflexão sobre o cunho normativo que permeia a imparcialidade e separa o público do privado, como se fosse possível; e traz à tona a teoria do agir comunicativo, a partir da qual, há nitidamente um esforço de Habermas para separar do conjunto de normas universais, aquele que diz respeito ao bem comum influenciado por Kant e o

que diz respeito aos sentimentos, à categoria do privado. Esse tipo de compreensão não aborda, eventualmente, o tipo de privado que remete ao direito individual de tornar ou não público aquilo que diz respeito ao indivíduo em si.

Fundamentado na ideia de razão moral calcada no iluminismo, a imparcialidade, segundo Young, estabelece que diferença, particularidade e corpo sejam deixadas de lado em nome da universalidade que o “domínio público da política” exige. “Aqui, contudo, afirmo que o ideal moderno do público cívico é inadequado. O tradicional domínio público da cidadania universal tem operado para excluir pessoas associadas ao corpo e ao sentimento – principalmente mulheres, negros, índios norte-americanos e judeus” (YOUNG, 2012, p. 171).

Não é possível colocar em questão todos os pontos de vista. Young pondera que é problemática a crença na possibilidade de se partir de um lugar e, mesmo assim, incluir todas as vozes possíveis, uma vez que há posição social ou lugar de fala. Esse tipo de concepção poderá, perfeitamente, ser associado à expectativa de que, jornalistas coloquem em uma notícia, todas as vozes das demandas sociais, imputando ao jornalista o lugar de justo e imparcial conforme ela argumenta. Isso realmente não é possível. Young (2012) desconstrói a ideia de imparcialidade argumentando que esse ponto de vista diz respeito a uma proposição iluminista, calcada nos ideais republicanos, a partir da qual existe uma vontade geral onde as pessoas se distanciam do seu cunho valorativo. A autora argumenta que esse ponto de vista está fundamentado na concepção de separação entre o público e privado. Uma concepção que acredita ser possível, por exemplo, o indivíduo separar o “imparcial” e “universal” do bem comum e da vontade geral em relação aos desejos, corpos e sentimentos particulares.

Há no conceito de imparcialidade uma dicotomia entre “universal e particular”, “público e privado”, “razão e paixão”. Para a autora, esse tipo de concepção é responsável por separar inclusive homens de mulheres e também por trazer a discussão para o Estado a partir da noção de burocracia estatal calcada no conceito de imparcialidade, em que os atores políticos da administração pública são capazes de atuar de forma imparcial sem levar em conta seus próprios interesses. Tal aspiração é impossível, porque o raciocínio moral deve revelar os contextos que particularizam as filiações dos atores sociais. O ideal de imparcialidade “mascara as formas pelas quais as perspectivas particulares de grupos dominantes reivindicam universalidade e colabora para justificar estruturas hierárquicas de decisão”

(YOUNG, 2012, p. 171). Portanto, a clivagem geral da imparcialidade entre atores numa hipotética igualdade de condições é um mito da ideologia liberal/idealista, pois não se pode ser imparcial quando interesses particulares poderosos usurpam o interesse coletivo, público.

Por conta de uma razão universal, Young afirma que há uma tendência a unificar, comparar e totalizar a identidade, não levando em consideração a pluralidade e heterogeneidade dos sujeitos, com experiências corporais e perspectivas distintas. “Podem ser comparados em certos aspectos, mas a semelhança não significa que sejam idênticos, e o semelhante só pode ser notado pela diferença. A diferença, no entanto, não é alteridade absoluta, ausência completa de relação ou atributos comuns” (YOUNG, 2012, p. 172). A autora conclui que, “a ironia da lógica da identidade é que, ao procurar reduzir o diferentemente semelhante ao mesmo, transforma o meramente diferente no outro absoluto” (YOUNG, 2012, p. 171).

Outro ponto colocado por Young (2012) é que, na busca pela imparcialidade, o desejo e a afetividade sejam expulsos, pois não há lugar para paixões e sentimentos em um ambiente que preze pela vontade geral, pela unidade, pela “única subjetividade moral transcendental”. Por conta dessa perspectiva, “como já leva em conta todas as perspectivas, o sujeito imparcial não precisa levar em conta outros sujeitos que não ele próprio, a cujos interesses, opiniões e desejos deve prestar atenção” (YOUNG, 2012, p. 175).

O desejo de unificar as diferenças gera exclusão, pois constrói uma categoria universal na qual os diferentes não se encaixam. “A diferença se torna, assim, uma oposição hierárquica entre o que está dentro e o que está fora da categoria, valorizando mais o que está dentro do que o que ficou de fora” (YOUNG, 2012, p. 175).

A razão moral universal exclui desejos e sentimentos, reduzindo-os apenas ao âmbito privado da subjetividade, mas os mesmos continuam latentes nos indivíduos. Sendo impossível estar numa condição imparcial, em que se deixe de lado suas particularidades. O ponto de vista é sempre situado.

A autora (2012) desconstrói a possibilidade de estabelecer uma empatia se os indivíduos estão situados em diferentes posições sociais. É preciso levar em consideração diferenças como raça, etnia, gênero e classe. Se os indivíduos

pudessem mesmo, com trajetórias diversas, estabelecer uma empatia completa não haveria distinção entre as posições sociais dos indivíduos.

Young (2012) reconhece que Habermas compreendeu da melhor forma possível uma razão moral voltada para a pluralidade dos sujeitos. Em seu modelo de ação comunicativa23, ele deixa claro que não é possível estabelecer tal comunicação se os sujeitos estiverem em uma situação de desigualdade24; o mesmo acredita na condição individual de qualquer pessoa atuar em condição de igualdade, sem que a partir de uma ação estratégica um determinado indivíduo atue para subordinar ou anular o outro.

A hierarquia necessita ser desestruturada e “as estruturas de decisão justas devem, portanto, ser democráticas, garantindo voz e voto a todos os grupos particulares envolvidos nessas decisões e por elas afetados” (YOUNG, 2012, p. 194). Portanto, a solução para a autora é que os democratas participativos reconheçam e promovam a inclusão do público heterogêneo, para que o mesmo possa ter espaço para expressar desejos e necessidades particulares (YOUNG, 2012).

Ao encontro de Iris Young, Luís Felipe Miguel e Flávia Biroli criticam o fato de a imparcialidade e a objetividade estarem associadas a um ideal universal. “O discurso jornalístico assume, assim, uma perspectiva olimpiana. Ele é imparcial porque reconstrói o todo incorporando as diferentes partes. Mas é também capaz de falar em nome de valores universais – o progresso, a ética, a democracia” (MIGUEL; BIROLI, 2010, p. 68). E denunciam também que a imparcialidade como característica de um bom ou mau jornalismo não permite que seja discutido o

23 Este é um ideal, mas a situação ideal de fala concebida por Habermas não implica na ilusão utópica de que todos teriam as mesmas condições, mas como referência para aferir o nível de inclusão e/ou exclusão, no limite funcionando como critério para distinguir

semanticamente entre uma interação comunicativa dialógica, ética, ou quando não se pode deixar de reconhecer a relação comunicativa como uma violência, um esquema de

dominação em que o discernimento do dominado não é levado em conta.

24 Habermas diz que é na racionalidade comunicativa para o entendimento mútuo que os sujeitos reelaboram suas pretensões de validade, em que há normatividade construída pelo público a partir de discussões igualitárias sem exclusão, e sujeitos redimensionam o mundo

da vida. O autor acredita na possibilidade de os sujeitos construírem no processo dialógico

aquilo que consideram válido, em prol de uma vida com menos subordinação e opressão. Na ação comunicativa, o sujeito é capaz de elaborar suas questões e estabelecer um

diálogo mútuo. As desigualdades são reconhecidas por Habermas, ao ponto de ele defender que, em situações de crise, há a possibilidade de iniciativas externas à estrutura de poder se posicionarem contra as barreiras impostas e, a partir da participação da periferia,

conseguirem conquistar posições contrafactuais ou contra-hegemônicas, obrigando a mídia a reenquadrar seus posicionamentos (HABERMAS, 1997).

enquadramento, as tendências e os silenciamentos resultantes desta apreensão (MIGUEL; BIROLI, 2010, p. 69).

Os autores (2010) também consideram uma farsa a Fairness Doctrine, nos Estados Unidos, que estabeleceu a imparcialidade como regra entre os anos 1949 e 1997 no jornalismo do país, pois a atitude de ouvir os dois lados não leva em consideração determinados setores da sociedade. Nas notícias sobre política, por exemplo, ressoam vozes pertencentes aos maiores partidos e as informações divulgadas refletem o sistema partidário (MIGUEL; BIROLI, 2010, p. 60).

Miguel e Biroli (2010) defendem que, se a mídia é um espaço das diferentes perspectivas, ela deve escutar os vários lados em questão para que o público tenha acesso a distintos tipos de valores e consiga, por ele mesmo, formar a sua própria opinião. (MIGUEL; BIROLI, 2010, p. 64)

A imparcialidade, ao mesmo tempo em que é valorizada como qualidade do jornalismo e referência para a democracia e justiça, é colocada como fator de opressão pelos autores. “A imparcialidade, como valor-guia, colabora para a ocultação dos lugares de enunciação dos discursos e das redes de diferenciação que os caracterizam e fazem com que circulem por determinados espaços e sejam aceitos como verdadeiros” (MIGUEL; BIROLI, 2010, p. 66). Para Luís Felipe Miguel e Flávia Biroli, por exemplo, a exclusão da mulher do noticiário político ou a sua inclusão estereotipada gera silenciamento de sua voz naquele espaço.

Os autores veem problema na imparcialidade ser vista como valor para se chegar à objetividade. Na concepção deles, ouvir os dois lados não é suficiente para gerar uma comunicação plural, pois há distintos grupos sem espaço de fala. Quando a mídia fala em pluralidade não está falando de um “não lado”, mas de um lugar que evidencia determinadas falas. Tal posicionamento também não leva em consideração o conflito existente nas relações sociais, reforça a opressão e não questiona o porquê de certas vozes serem evidenciadas. (MIGUEL; BIROLI, 2010, p. 67)

De modo semelhante à perspectiva de Young, ao criticar a neutralidade e a imparcialidade, Luís Felipe Miguel e Flávia Biroli (2010) afirmam que tais ideais agem no campo ideológico. A imparcialidade, por exemplo, reflete o ideal de Estado neutro, o qual é suficientemente capaz de legitimar processos burocráticos e a hierarquia de poder, e transformar a perspectiva de grupos privilegiados em um ideal universal, corroborando assim, com a opressão de classes menos favorecidas.

Nesse processo, há unificação e totalização das perspectivas, e a pluralidade é negada. Não se admite diálogo com indivíduos contrários ao posicionamento vigente, e os mesmos são transformados no “outro absoluto”. (MIGUEL; BIROLI, 2010, p. 66)

A possibilidade de desenvolver um jornalismo não mais pautado nesses ideais consagrados pela grande mídia, de forma independente em termos de política editorial e de financiamento se tornou possível a partir da Internet e de formatos diversos de financiamento, conforme veremos no próximo capítulo.