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4 LETRAMENTO CRÍTICO, DISCURSO E APRENDIZAGEM DE LE: Implicações

6.3 Percepções dos Participantes sobre as Relações Sociais a partir do Tema da Aula: Do

6.3.1 Os Significados de Favela na Percepção dos Alunos: A Decodificação

descrição que os alunos fazem dos seus bairros aproxima os problemas do cotidiano da sua comunidade com a temática do texto trabalhado na turma. Este segundo grupo é composto pelos excertos 5 e 6. Os dois foram extraídos das transcrições da aula do dia 27/09/2017, na Turma 2. O terceiro grupo é composto por 3 excertos. Estes foram extraídos do que dois alunos expuseram para uma plateia de colegas do turno matutino no dia 24/10/2017 sobre a apresentação de uma dramatização sobre abordagem policial. Os excertos deste grupo dão evidências do modo como os alunos pensam, sentem-se e agem por conta das relações de poder nos diferentes grupos sociais.

Destaco que, por questões de ética na pesquisa científica e de respeito aos direitos de preservação da identidade dos participantes, todos os alunos receberam nomes fictícios. O mesmo ocorreu com a professora de inglês, a quem doravante vou chamar de Profin. Quanto à mim, por questão de praticidade, quando for interagir com algum dos participantes, identifico- me como Profpe (professora-pesquisadora).

Dito isto, passo aos excertos anunciados.

6.3.1 Os Significados de Favela na Percepção dos Alunos: a decodificação

A título de contextualização, os excertos 3 e 4 foram extraídos de uma sequência de interações entre os alunos e a professora após a leitura do vocabulário e da exploração das questões para chegar à decodificação do texto de inglês para português. E, por fim, chegarem ao conhecimento da temática do mesmo. A configuração inicial desta aula foi a mesma da Turma 1, como resumi nas 7 principais ações nas quais os alunos se envolveram, conforme descrevi logo após contextualizar o cenário do Excerto 2 (seção 5.2). Como expliquei, ali as interações se deram em torno da chamada e da correção.

No mesmo dia, na aula seguinte, na Turma 2, a configuração do cenário só começa a mudar quando a professora deixa o texto sobre a mesa, levanta-se e começa a conversar com os alunos na tentativa de ouvi-los mais de perto, porque havia muitas falas sobrepostas a respeito do lugar favela. Na ocasião, os alunos estavam respondendo à questão F (ANEXO A) da atividade relacionada ao texto. Essa questão exigia deles a compreensão do texto em português para respondê-la. O primeiro excerto desta sequência, o Excerto 3, inicia-se com a fala da professora de inglês.

Excerto 3: Aula do dia 06/09/2017- parte 1

Profin: O que precisou fazer lá? Kevin: colocaram as UPP

Profin: tá daquilo que o Ethan((nome fictício)) estava falando do governo roubar. não estou falando o governador o ((diz o nome do então governo do estado)).

Kevin: os caras de gravata. Bianna: e aquela prefeita lá?

Ethan: num dava merenda pros meninos. ela tirava merenda dos meninos para ir passear de jet ski olha só a bonita! Profin: agora gente vai entrar naquilo que o Ethan estava falando.

March: hein professora na rua perto lá de casa umas 10:30 acho que a senhora não passa sozinha não.

Profin: tem saneamento básico, esgoto, água...

Ethan: tem esgoto sim. a céu aberto. Aquela água correndo na rua, PENsa((risos).

Profin: pra gente melhorar um lugar só precisa da ação da polícia? Kevin: NÃO. tem que ter segurança, saneamento básico, saúde e

educação.

Profin:e a educação?

March: a educação lá é boa professora os meninos da escola lá que estudava quase nenhum sabia ler ((risos)).

Profin: aí eu te pergunto tu veio pra cá por que não tem EJA lá? March: tem EJA lá professora mas é perigoso.

Ethan: tem uma escola nova lá. mas eu tenho é medo de cair. Construíram tão rápido.

March : aquela raposa...raposo.

Profin: ah, o Amaral Raposo, fica lá né?

Ethan: eu mesmo que não entro lá eu tenho é medo de cair. Wilson: é favela mesmo professora((risos)).

Gim Natan: só tem muito é traficante. é doido, se entrar lá, por engano, morre.

Com se observa aqui, à medida que vão entendendo o vocabulário do texto em inglês e respondendo às questões sobre o mesmo, as interações dos alunos (às vezes simultâneas outras em resposta às perguntas retóricas da professora) revelam informações dos seus bairros, associando alguns bairros a uma visão negativa e pré-concebida sobre o conceito de favela. Visão essa que demonstra ser apoiada no que ouvem nos noticiários sobre pessoas que, pelo fato de não pertencerem ao lugar, acabaram mortas por traficantes dentro de favelas. Até aí reproduzem o discurso de outros (decodificação e discurso repetido). Porém, à medida que a professora vai fazendo a intertextualidade entre as situações do texto para as situações vivenciadas pelos alunos, as falas deles começam a se sobrepor.

As observações dos alunos demonstram que eles associam os problemas sociais das favelas aos descasos de governantes que ignoram as necessidades das pessoas. Reforçam isso com um caso recente, ocorrido no estado e noticiado na imprensa nacional. E, de maneira crítica, expõem o comportamento de uma governante que, para satisfazer suas próprias necessidades “tirava merenda dos meninos para ir passear de Jet ski”. Com isso, eles demonstram sua apropriação e ressignificação dos discursos (TAGATA, 2017). Com isso, o texto passou a ser “visto como conjunto de sentidos e apreciações de valor das pessoas e coisas do mundo” (ROJO, 2004, p. 3). Além disso, conforme princípios socioculturais, a mediação a partir do texto e da atuação da professora, propicia momentos de interação e troca colaborativa (LANTOLF, 2008).

Na fala dos alunos emergem informações que descrevem uma favela e, ao mesmo tempo, assemelham seus bairros de origem ao conceito deles sobre favelas. Ao fazerem associações entre o conceito que têm sobre favela e sobre as características dos bairros da cidade, revelam quais bairros da cidade consideram favelas e quais não.

A partir do que está posto no excerto 3, é possível inferir que o lugar favela, na percepção dos alunos, tem vários significados. Para eles favela é um lugar de conotação negativa, porque é:

a) lugar perigoso para pessoas estranhas à comunidade:

Gim Natan: se entrar lá, por engano, morre. b) lugar de bandidos:

Wilson: é favela mesmo professora((risos)). Gim Natan: só tem muito é traficante.

c) lugar que, para mudar, precisa que haja investimentos dos governantes: Profin: O que precisou fazer lá?

Kevin: colocaram as UPP

Profin: pra gente melhorar um lugar só precisa da ação da polícia? Kevin: NÃO. tem que ter segurança, saneamento básico, saúde e educação.

À medida que a professora provoca aos alunos com perguntas sobre o texto e conecta essas perguntas com a realidade deles, o tema do texto é debatido e os alunos vão fazendo inferências entre o conteúdo do texto e os bairros da cidade, com base no conhecimento de mundo que eles têm. O conhecimento do mundo de fora do texto, capacita-os a fazer comparações entre o lugar descrito no texto e o seu próprio lugar.

Assim, a atitude da professora de usar um tema gerador de reflexão e dar espaço para os alunos se expressarem sobre o conteúdo do texto, fez com que eles, além de compreender o conteúdo de inglês que estava escrito no texto, fizessem inferências sobre os problemas sociais,

apontados como resolvidos no texto lido, e os associasse com problemas sociais existentes no seu cotidiano, ou seja, puderam pensar criticamente (FREIRE, 1967). Com isso, a aula de LI entrou na dimensão crítica da língua (TAGATA, 2017). E os participantes se mesclaram ao discurso do outro e acercaram-se das palavras do texto conscientemente (ROJO, 2004).

Dessa forma, a partir do conteúdo do texto, os alunos tomaram conhecimento de que as coisas mudaram na comunidade da favela da Rocinha, depois que o poder público passou a investir em “segurança, saneamento básico, saúde e educação”. Enquanto falavam sobre as mudanças apontadas no local descrito no texto, das falas dos alunos emergem discursos que apontam para o modo como eles percebem o local favela e seus moradores. Ou seja, eles percebem as relações de poder nos grupos sociais ligados ao local descrito.

A intertextualidade que os alunos fazem entre o conceito de favela e as característica do lugar onde moram é suficiente para inferir que, para eles, há uma nítida relação entre um lugar antes desvalorizado que recebera investimentos, a favela da Rocinha, e um lugar que continua sendo tratado com descaso pelo poder público, o bairro da cidade onde o Ethan e o March moram. Nisso é possível notar que nos discursos de alguns participantes emerge “a constituição dos sujeitos”, como resultado dos “efeitos ideológicos” (FAIRCLOUGH, 2016).

Conforme se nota, nas suas falas eles reproduzem outros discursos. Porém, como uma forma de criticar o poder público. Um desses discursos diz que o lugar favela e os grupos sociais que vivem no lugar são tratados com descaso por parte dos governantes. Assim, eles, ao olharem o texto de forma crítica, foram capazes de formular novos discursos.

Os novos discursos da turma põem em evidência a (im)competência de quem tem poder para investir nas mudanças necessárias ao lugar onde vivem. Assim, a partir de uma leitura crítica e da intertextualidade como um recurso discursivo, os participantes apontaram problemas sociais que ainda existem no lugar onde moram. Isso poderia configurar-se na ação de denunciar que nesse lugar:

a) há governantes que usam o dinheiro público, inclusive da merenda escolar, para seu próprio benefício.

Biana: e aquela prefeita lá?

Ethan: num dava merenda pros meninos. ela tirava da merenda dos meninos para ir passear de jet ski olha só a bonita! b) Há muitas crianças, adolescentes e jovens que são analfabetos.

March: [...] os meninos da escola lá que estudava quase nenhum sabia ler ((risos)).

c) Há políticos que tratam a vida das pessoas com descaso, porque desviam dinheiro de verbas para construções de escolas; por isso, escolas construídas por eles estão sujeitas a desmoronar sobre os alunos.

Profin. tá daquilo que o Ethan estava falando do governo roubar. [...]

Kevin: os caras de gravata.

[...]Ethan: tem uma escola nova lá. mas eu tenho é medo de cair. Construíram tão rápido.

Como se nota ao entrar na discussão sobre o texto, Ethan e March fazem relações diretas entre os problemas já resolvidos na favela descrita no texto e os problemas não resolvidos do seu bairro. Mas, da mesma forma que os dois foram capazes de usar a intertextualidade para denunciar a realidade do seu bairro, seus colegas Wilson e Gim Natan, por outro lado, chegam à conclusão que esses colegas moram em uma favela. E, favela, como a turma já havia demonstrado antes, é um lugar de conotação negativa. Isso implica dizer que os alunos percebem as relações de poder de forma positiva para quem vive no centro da cidade ou em bairros nobres e de forma negativa para quem vive em locais socialmente desprestigiados, como é o caso da maioria das favelas para eles.

A percepção dos alunos sobre os bairros da sua cidade reflete-se no perfil social que eles constroem das pessoas que habitam esses bairros. No excerto 4 é possível perceber o que os alunos pensam sobre pessoas que moram em favelas.