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Quem conhece o histórico do analfabetismo no Brasil e as trajetórias dos programas de alfabetização para brasileiros e brasileiras em idade adulta, prontamente, reconhece a contribuição de Paulo Freire para a história da Educação Brasileira. Para entender sua importância para a história da alfabetização de adultos, convém comparar seu trabalho ao do Padre José de Anchieta (1534 – 1597). O trabalho deste como alfabetizador e catequizador, em 1980 rendeu-lhe o benefício da beatificação. Isso porque, supostamente, realizou o milagre de converter 3 pessoas ao cristianismo em um mesmo dia, após anunciar a elas o Evangelho que, impresso nas Sagradas Escrituras, era inacessível aos analfabetos. Trabalho esse que em 2014 sagrou-se com a sua canonização equipolente. Ou seja, pelos serviços prestados, Anchieta foi canonizado sem nenhum milagre comprovado. Então, acredito que, seria no mínimo coerente aos cristãos questionar de quais prêmios ou de que tipo de reconhecimento seria digno, um alfabetizador como Paulo Freire que, em um projeto ousado de 40 horas de duração conseguiu alfabetizar 300 agricultores, dando a eles o direito e o poder de, eles mesmos, decodificarem a LP, impressa tanto nas Sagradas Escrituras quanto em qualquer outro livro que lhes interessasse ter acesso?

Entendo que há situações que, mesmo sendo livres para escolher, temos poucas opções. No caso de aceitar reconhecer ou não a importância de Paulo Freire para a erradicação do analfabetismo, seja qual for o seguimento religioso, desde que valorize o desvendar das Sagradas Escrituras, por meio da sua leitura pessoal, temos apenas duas opções: aplaudir Paulo Freire, juntamente com as 29 universidades, nacionais e internacionais, que o premiaram em reconhecimento ao seu trabalho ou juntar-nos aos fazendeiros do Rio Grande do Norte que compararam seu projeto “as 40 Horas de Angico” a uma praga. Segundo eles, “a praga do comunismo”.

Talvez, aqueles fazendeiros pensassem no projeto de Paulo Freire como algo ruim, porque ver seus subalternos lendo, escrevendo e discutindo sobre o que liam, como se tivessem acabado de fazer uma grande descoberta científica ou tivessem aprendido a manusear um instrumento que, até então, os matinha limitados, soava como uma ameaça. Talvez tivessem com a razão, porque ver pessoas construindo pontes sobre boqueirões e transitando sobre tais pontes, ou mesmo ajudando outras a chegar mais longe, de fato representava uma ameaça aos projetos de qualquer latifundiário que lucrava às custas de trabalhadores, analfabetos, totalmente assujeitados aos seus patrões, como se fossem mudos e cegos aos seus direitos.

Preocupado com o alto índice de analfabetismo entre brasileiros adultos e com o modo como as políticas públicas para a Educação eram conduzidas em todo o território nacional, Paulo Freire buscou caminhos que se mostrassem mais eficientes para ressignificar a alfabetização de pessoas adultas no contexto brasileiro.

Esse nordestino, natural do estado de Pernambuco, ainda na adolescência tornou-se auxiliar de professor e, posteriormente, mesmo sendo graduado em direito, tornou-se professor de português. Disciplina esta que protagonizou o início da sua carreira como professor no Colégio Osvaldo Cruz, na capital do seu estado de origem. Também, fez carreira no Magistério Superior, na Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Pernambuco, onde ministrou a disciplina de Filosofia da Educação.

Mais tarde, ao lado de outros educadores, que como ele se preocupavam com o índice de analfabetismo entre brasileiros adultos, fundou o Instituto Capibaribe; local de onde pôde compartilhar ideias inovadoras sobre métodos de alfabetizar pessoas adultas.

Hoje, é mundialmente conhecido e reconhecido pelo trabalho prestado à educação de pessoas adultas no Brasil e em outros países. Trabalho esse que lhe rendeu 29 títulos de Doutor Honoris Causa, atribuídos por diferentes universidades da América e da Europa (FRAZÃO, 2019, online).

Sendo assim, quando se tratam de projetos de ensino que objetivam mudanças sociais impactantes, tais mudanças, ainda que fortemente almejadas por alguns seguimentos sociais, são combatidas por outros. Por isso, Paulo Freire trouxe à tona a necessidade de se pensar projetos para a educação das massas. Isso significa dizer que, em uma época em que muitos viam os trabalhadores do campo como homem-objeto, ele via a necessidade de um projeto de ensino que pensasse nos sujeitos, porém que não ignorasse os aspectos históricos, geográficos, sociais e culturais que caracterizavam o ambiente das interações e das relações desses sujeitos.

Nesse sentido, o trabalho de Freire (1967) representa um diferencial a ser observado nos projetos destinados às pessoas da EJA, em qualquer nível da Educação Básica.

Seu trabalho como alfabetizador e educador mostra que é necessário ver a educação como uma forma dos aprendizes manusearem diferentes instrumentos e de se tornarem capazes de construir pontes para irem aonde desejarem. Caso contrário, os benefícios da educação continuarão restritos às minorias alienantes que se acham no direito de impor sua vontade sobre as massas alienadas. Seguindo esta linha de raciocínio, ele diz que:

A educação das massas se faz, assim, algo de absolutamente fundamental entre nós. Educação que, desvestida da roupagem alienada e alienante, seja uma força de mudança e de libertação. A opção, por isso, teria de ser também, entre uma “educação” para a “domesticação”, para a alienação, e uma educação para a liberdade. “Educação” para o homem-objeto ou educação para o homem-sujeito (FREIRE, 1967, p. 36). Pensar um projeto de ensino que reconheça o papel do “homem-sujeito”, e que se distancie de uma educação para a domesticação de um “homem-objeto”, é reconhecer que as pessoas aprendem de diferentes formas e por diferentes motivos. É aceitar que o espaço da sala de aula é um espaço para liberdade de expressão. Por isso, tende a ser subversivo. Mas, no espaço escolar, a subversão dos aprendizes, historicamente, só representa perigo para quem sente que seus privilégios estão em risco.

Na verdade, o que Paulo Freire propunha como modelo de alfabetização, inicialmente, poderia parecer subversivo. Porque ali estavam implícitos comportamentos de sujeitos aprendendo a ler e a escrever sob a égide do dialogismo responsivo (BAKHTIN, 2002), interagindo, horizontalmente (FREIRE, 1967), como é próprio do processo de cooperação entre quem sabe mais e quem deseja saber também. Atitude propícia para a ampliação da ZDP dos aprendizes (VYGOSTKY, 1991) ou mesmo para romper barreiras impostas pela sua ZLM (LEWIN, 1945) por conta do modelo de relação entre os trabalhadores-alunos.

Paulo Freire, de forma implícita, ao ensinar trabalhadores a ler e escrever, propunha uma revisão no modelo dominante da relação patrões trabalhadores – uma relação dominadora e vertical. Porém, de maneira explícita, discorria sobre as necessidades de mudanças na

interação entre professores e alunos. Pois, o modelo que priorizava a fala do professor sobrepondo-se à fala e ao pensamento do aluno, sujeito assujeitado, por várias razões, se mostrava ineficiente à instrumentalização das mãos e da mente que objetivasse ser capaz de construir pontes para cruzar boqueirões e chegar a lugares fora da sua ZML. Por isso, ele inaugurou um movimento pedagógico que, para as maiorias dominadas era desafiador. E, para as minorias dominantes soava como confrontador.

Ao pensar na educação como forma de libertação das massas oprimidas (Pedagogia do Oprimido, 1970, Pedagogia da Esperança, 1992 e Pedagogia da Autonomia, 1996), Paulo Freire instrumentaliza pessoas que, até então, viam a leitura e a escrita como um boqueirão que as separava dos seus sonhos e realizações pessoais. Por isso, para elas, o movimento era desafiador, já que estavam passando por um processo de aquisição de conhecimento a respeito da estrutura social do mundo à sua volta e dos diferentes papéis que elas e os grupos desempenham nas relações sociais.

Com isso, inevitavelmente, elas passariam a ter consciência de si, do papel que desempenhavam e de outros papéis que poderiam tornar-se capazes de desempenhar. Talvez, por isso, esse novo modo de pensar e de fazer pensar causasse estranhamento e parecia subversivo e assustador para muitos. Inclusive para instituições de ensino e, até mesmo, para educadores.

Quando se trata de movimentação social, qualquer novo conhecimento que possa pôr em xeque a estrutura política e a social vigentes tende a ser fortemente questionado. Por outro lado, é curioso que a gênese das mudanças sociais só ganha força quando pessoas, insatisfeitas e conscientes de que podem e precisam fazer algo para mudar a situação, questionam essas estruturas. Por este viés, Paulo Freire, procurou mostrar que, muito mais do que aprender a assinar o nome, os alfabetizandos adultos necessitavam ser incentivados a pensar sobre como instrumentalizar-se para agir em favor das mudanças que desejavam para suas vidas.

Assim, a Pedagogia Freiriana consistia em ensinar como palavras faladas poderiam virar palavras escritas e como as palavras escritas podiam ajudar os aprendizes a mudar a si mesmos e mudar o mundo à sua volta. Com base nela, o professor agia como mediador do processo de alfabetização e incentivador do pensamento crítico dos aprendizes. Nesse processo, uma das estratégias era levantar questionamentos, envolvendo a relação entre as novas palavras e a sua vida.

Os questionamentos serviam ao propósito de fazê-los refletir sobre os usos dessas palavras no contexto extra escolar. Sendo assim, a Pedagogia Freiriana dialoga com a Teoria Sociocultural e a forma de interação entre o aprendiz e a língua escrita se aproxima das

características do Letramento Crítico, aqui entendido como diferentes formas de apropriação e usos de uma língua pelos seus aprendizes para fins de agir e interagir socialmente em diferentes contextos ou cenários, por onde almejam transitar ou onde pretendem inserir-se como protagonistas das suas próprias escolhas.

A relação das ideias de Paulo Freire com a Teoria Sociocultural dá-se pelo fato de que a Pedagogia Freiriana vê o diálogo entre aprendizes e professores, no ambiente de interação, como um recurso indispensável à aquisição de um novo conhecimento. E quanto à relação com o Letramento Crítico ela se evidencia no fato de que, durante o processo de descoberta das letras e da sua codificação em palavras, o aprendiz participa de um jogo de perguntas e respostas que acabam culminando em uma forma de pensar criticamente.

Quanto ao jogo de perguntas e respostas, convém destacar que, no processo de alfabetização, na perspectiva da Pedagogia Freiriana, perguntar e responder não se tratava de apenas fazer o aluno responder às perguntas do professor, alienadamente. As respostas às perguntas eram incentivadas a revestir-se de criticidade, de forma que cada nova palavra representava muito mais do que o conhecimento sobre a codificação ou decodificação de sons e letras. Aqui convém lembrar que Freire (1967), falando sobre a importância dos questionamentos para a compreensão do mundo à nossa volta diz que o homem

No jogo constante de suas respostas, altera-se no próprio ato de responder. Organiza- se. Escolhe a melhor resposta. Testa-se. Age. Faz tudo isso com a certeza de quem usa uma ferramenta, com a consciência de quem está diante de algo que o desafia. Nas relações que o homem estabelece com o mundo há, por isso mesmo, uma pluralidade na própria singularidade (FREIRE, 1967, p. 40).

Fazendo correlações entre o homem, as relações sociais e, entre sua integração e interação na sociedade, Freire destaca a importância do homem aprender a ler o mundo para modificar a si mesmo e para tornar-se capaz de modificar o mundo à sua volta.

Assim, quanto à forma de perceber a importância da interação e do diálogo para as conquistas individuais e sociais dos seres humanos, os estudos e as ideias do brasileiro Paulo Freire dialogam com as ideias e os estudos do bielorrusso Lev Vygotsky (1991), assim como de outros que veem o ensino e a aprendizagem pelas perspectivas socioculturais e interacionistas. Para eles a interação e o diálogo são indissociáveis do homem sujeito em seu ambiente natural – o ambiente social. Portanto, o modo como os animais interagem com o meio e com outros da sua espécie é uma característica fundamental para diferenciar a espécie humana de outras espécies animais. Quanto a essa característica e sua importância na diferenciação entre pessoas e animais, Freire diz que:

Os contatos, por outro lado, modo de ser próprio da esfera animal, implicam, ao contrário das relações, em respostas singulares, reflexas e não reflexivas e culturalmente inconseqüentes. Deles resulta a acomodação, não a integração. Portanto, enquanto o animal é essencialmente um ser da acomodação e do ajustamento, o homem o é da integração. A sua grande luta vem sendo, através dos tempos, a de superar os fatores que o fazem acomodado ou ajustado. É a luta por sua humanização, ameaçada constantemente pela opressão que o esmaga, quase sempre até sendo feita — e isso é o mais doloroso — em nome de sua própria libertação (FREIRE, 1967, p.42).

Com base nessas palavras de Freire, posso inferir que as pessoas, mesmo tendo a interação como uma característica naturalmente humana, correm o risco de não agirem de forma reflexiva. Por isso, muitas podem não despertar para sua própria cultura. E, em consequências disso, em vez de interagir, horizontalmente com seus semelhantes, acomodam-se à situação e agem em conformidade com modelos de relações sociais pré-estabelecidos para seu grupo.

Aqui convém destacar que os modelos de relações que agregam pessoas, acomodadas ao ambiente, são, geralmente, elaborados e mantidos por aquelas pessoas que, tendo despertado para os fatores que as tornam mais fortes, conscientemente, apoderam-se desses fatores para assujeitar a sua própria espécie. É nesse embate que a escola pode representar lugar de luta pela humanização e de ruptura das barreiras que isolam pessoas em grupos mais e menos capazes.

Nesse sentido, seja no seio da escola ou no cerne dos projetos de ensino, a maneira como os conteúdos são abordados pode servir de ponte para uma conscientização, capaz de instrumentalizar pessoas para viverem de modo que não seja mais necessário pessoas lutarem para libertar-se da opressão de outras. Por este viés, no âmbito do ensino de línguas, é primordial criar condições para que os aprendizes sejam capazes de expressar seu pensamento e seus sentimentos com suas próprias palavras, porque “aprender a dizer a sua palavra é toda a pedagogia, e também toda a antropologia” que necessitamos para termos uma sociedade mais humanizada ( FREIRE, 1987, p.11).

Na perspectiva do ensino de línguas, isso implica saber escutar os destinatários da proposta, no que diz respeito ao que fazem com o que aprendem e como se sentirão se não conseguirem aprender o que gostariam. Também implica entender que, na ação de ensinar uma língua, seja ela estrangeira ou materna, está implícito o ato de preparar pessoas para agir em diferentes contextos e integrar-se às práticas sociais por onde transitam ou desejam transitar.

4 LETRAMENTO CRÍTICO, DISCURSO E APRENDIZAGEM DE LE: Implicações